quinta-feira, 17 de abril de 2014

Memórias da emigração "a salto" contadas na primeira pessoa (Parte II)


Era invisível a actividade feminina, não paga, no meio rural. Isso servia o ideal de família acarinhado pelo Estado Novo — notou Carolina Leite na tese Eva, depois do paraíso/ Modos de habitar e identidade no percurso migratório, defendida na Universidade do Minho em 1998 —, mas tinha um reverso. A ideia de mulher submissa e devota tornava-as, pelo menos à partida, insuspeitas…. 
De todo o país saía gente, cada vez mais gente. Já não iam tanto atrás do sonho transatlântico, como nos anos 1950. Sonhavam com o Luxemburgo, com a Alemanha, com a França — sobretudo com a França. Era perto, tinha fronteira permeável, volta e meia vinha de lá alguém a contar histórias, como o primo de José.
Desde os anos 1940 que os esforços de reconstrução da Europa exigiam abundante mão-de-obra. Numa primeira fase, muito contribuiu o Leste para suprir a escassez de braços para tanto desenvolvimento técnico e industrial. Com a construção do muro de Berlim, em 1961, o Sul podia assumir maior papel. 
As autoridades francesas facilitavam a entrada e a regularização de indocumentados portugueses. Depois das vagas italiana e espanhola, julgavam estar perante os últimos imigrantes europeus, explica Marta Nunes Silva, a fazer doutoramento na Universidade Nova de Lisboa sobre Emigração clandestina e Mundo Rural entre 1957 e 1974. Os portugueses pareciam-lhes mais assimiláveis do que os magrebinos, sobretudo argelinos, que iam chegando. 
Era “dúbia” a postura do Estado Novo. Apesar de em 1963 ter assinado com França um acordo de migração de trabalhadores, Portugal dificultava os processos de autorização de saída. Não por acaso, diz a historiadora. Travava uma guerra no ultramar, mas importava-lhe manter boas relações com França, que até lhe vendia material bélico. E dava-lhe jeito trocar mão-de-obra excedentária por capital estrangeiro.
Se o regime quisesse mesmo suster o fluxo, teria vigiado mais as fronteiras e tratado de perseguir melhor os infractores. A polícia política — escreveu Victor Pereira, no livro A Ditadura de Salazar e a Emigração, que está a chegar às livrarias — mais queria “perseguir os militantes comunistas para proteger o país da ‘subversão’ ou ‘combater a rebelião em África’ para defender o Império do que vigiar a fronteira e a saída de milhares de camponeses”.
O Estado Novo não se esforçava para frear a saída dos homens, mas obrigava-os a um esforço tão grande que pouquíssimas mulheres se atreviam a partir. “A masculinização da emigração e a separação temporária do núcleo familiar asseguravam o envio de divisas dos trabalhadores para Portugal e a manutenção de uma estratégia migratória orientada para o regresso”, escreveu o historiador.
Entre 1960 e 1974, um milhão e meio de portugueses, um sexto da população residente, saiu de Portugal. O movimento de saídas chegou a ultrapassar os cem mil anuais — em 1969, 1970 e 1971. A França registou a entrada de 293.758. Regularizou a presença de outros 325.974. 
Esvaziavam-se povoações no Minho, em Trás-os-Montes, na Beira Alta, nas ilhas. “As redes ganharam ainda mais espaço nas aldeias, alargaram-se ainda mais da fronteira para o interior”, narra Marta Nunes Silva no livro Os Trilhos da Emigração — Redes clandestinas de Penedono a França, lançado em 2011. Nem só os homens aproveitavam a geografia de Melgaço para ganhar algum, como já se viu. Perto do marco de fronteira n.º 1, lá onde o rio Trancoso encontra o rio Minho e Portugal começa, labutava a Raquelinda Pereira, pequena, franzina, de sobrancelhas arqueadas, um nariz que é uma graça.
Sempre andou na lida, sempre foi “governadeira”. Nem agora, aos 81 anos, quase confinada à casa, tira a bata. Instalou-se ali, no lugar de Cevide, para melhor fazer o seu contrabando. Aos sete anos, já ia com os irmãos à vila buscar uma barra de sabão para passar aos galegos. Trazia-a às costas, “toda contente”, numa “mochilinha” que lhe fizera a “mãezinha”. Com isso, já “ganhava um pouquinho”. 
“Viciei-me nisso”, diz a mulher, já curvada, desdentada, no seu português cantado. Parece-lhe que passou “de tudo quanto havia” de cá para lá, de lá para cá, conforme as necessidades de um lado ou de outro. E, um dia, era já uma “adultona”, pôs-se a passar gente. 
Não era uma originalidade. Na raia luso-espanhola, muitas redes de emigração clandestina eram extensões de redes de contrabando. Quem passava azeite, café, amêndoa, não podia passar gente? Eram os mesmos caminhos, os mesmos códigos, a mesma necessidade de escapar às autoridades, como observa o sociólogo Albertino Gonçalves, investigador da Universidade do Minho com várias publicações sobre esta matéria. Dali até saíra volfrâmio com destino à Alemanha nazi.   
Raquelinda não era de medo, era de antecipar manhas alheias. Comprou uma pistola de pequeno porte e elevada potência. Uma 6.35 mm. “Gostava muito dela.” Não a largava. “Havia que ter respeito. Aqueles homens todos sem a gente conhecer… Alguns eram maus.” “A gente não lhes podia confessar medo.” 
Iam os moços à frente, por ali abaixo. O que ela queria era que “fossem direitinhos, como as ovelhas quando se botam num rebanhinho”. Tinham de ir por carreiros, tantas vezes estreitos, por vezes íngremes. “Tinham de passar por onde calhava.” Lembra-se de os ouvir resmungar: “Isto é que é o caminho?” Empunhava a pistola, se necessário fosse. Dizia-lhes: “Vamos! É por aqui. Vamos!” 
Parece fácil agora que, ali, no lugar de Cevide, a fronteira é uma ponte e a casa da Guarda Fiscal é uma casa de férias. Quando o rio Trancoso ia minguado, dava para saltar de penedo em penedo. Quando engrossava, era o diabo. Impunha-se andar pela margem acima. O que lhe valia é que não faltava para onde. Melgaço tem 39 quilómetros de fronteira fluvial, 22 quilómetros de fronteira seca. 
Um padre de Braga enviava-lhe homens. Por vezes até lhos trazia. A notícia propagava-se de boca em boca: “Ai a Raquelinda põe na França.” E lá lhe apareciam mais homens, jovens, pouco escolarizados, sobretudo nortenhos. “Havia camionetas e comboio de Monção para baixo.”
Andava a “adoçar o bico aos polícias”, para que eles não a tivessem no seu ponto de mira, e mesmo assim arriscava-se a ser fechada numa cela, sem ver sol nem lua. Uma vez, um dos homens “perdeu-se do rebanho” ou arrependeu-se de o seguir e quis voltar para casa, já nem sabe. Em vez de se sumir no campo de milho, entregou-se à Guarda Fiscal. “Paguei-as todas eu!” Sentou-se com as duas ajudantes no banco dos réus. “Tivemos uma querela com os juízes. Tivemos toda a noite no tribunal. Nós chorávamos. Nós fazíamos tudo para que nos dessem a mínima pena.”
Cumpriu 23 meses de prisão e pagou 18 contos de multa. Esteve primeiro na cadeia de Monção. “Havia lá cada rato! Grandes, com rabo comprido! Ai! Quem estava lá tinha-lhes medo.” Pediu transferência para Melgaço. Sempre ficava melhor. Os “paizinhos” iam visitá-la com o “filhinho” dela, ainda pequeno.
Não dava para enriquecer. “Era uma vida triste e alegre, de ganhar dinheiro mas também de o perder. Era um jogo”, resume. “Pagavam conforme podiam, coitados. Alguns eram pobres, não podiam pagar. Alguns iam pedir emprestado e depois pagavam juros. E, pronto, fiquei sem muito dinheiro porque não mo deram. Foram-se embora! O que quiseram foi apanhar-se na França. Depois, adeus.”
A reacção das autoridades ao auxílio à emigração clandestina era mais severa do que ao contrabando. Dizia-se que fazer contrabando “era crime, mas não era pecado”. Na imprensa, sujeita à censura prévia, os passadores eram tomados por mafiosos. O regime usava-os como bodes expiatórios do êxodo. Tentava, escreve Victor Pereira, “preservar, a qualquer preço, a imagem de Épinal do povo bom e inocente”.
A Raquelinda não picavam os remorsos, como as pulgas. “A gente ia por aí acima de cara a Castro [Laboreiro], a gente via essas casas de palha por cima. Plantava fogo às vezes naquelas casas. Era uma desgraça. Ardia gente e tudo! Depois começaram a ir para França. Toda a gentinha a mandar um dinheirinho para cá. E toda a gente a governar-se bem. Começaram a fazer casas. Agora quem vai de cara a Castro [Laboreiro] vê cada casa… cada casa importante. Tudo à conta do emigrante, dos aventureiros que fomos nós, que nos arriscámos a ir para a prisão!” 
Quando saiu da prisão, falou com o espanhol a quem antes entregava os homens para que os guiasse até outro, que os haveria de ajudar a saltar a fronteira franco-espanhola. Pediu-lhe: “Põe-me na França lá donde uns parentes meus.” E ele levou-a — e às duas ajudantes — de carro. Sorte a dela que já decorria 1965. Até então, poucas mulheres se tinham atrevido a ir “a salto”. Ir “a salto” implicava passar muito tempo com desconhecidos, em idade viril, em casebres e camiões. O povo falava muito. Mulheres houve que perderam “a honra” pelo caminho. 
Naquele ano, os espanhóis acordaram com os franceses a facilitar a entrada e estadia dos portugueses em Espanha e a sua passagem para França. Em Espanha, bastava-lhes apresentar um documento de identificação para receberem um salvo-conduto que lhes permitia permanecer no país 30 dias. Com isso, podiam ir até à fronteira franco-espanhola: os agentes franceses atribuir-lhes-iam um certificado de controlo, que teriam de apresentar para regularizar a sua situação.
A masculinização da emigração e a separação temporária do núcleo familiar asseguravam o envio de divisas dos trabalhadores para Portugal e a manutenção de uma estratégia migratória orientada para o regresso”
Queixavam-se os espanhóis de gastos com detidos portugueses que Portugal pouco punia. E estavam cansados os franceses do estado deplorável em que lhe chegavam os portugueses. A uns e a outros parecia ajuizado diminuir a necessidade de passadores em Espanha e dispensá-los na fronteira com a França. Na gare de Hendaia (Irún) instalou-se um centro de acolhimento de migrantes.
Portugal reagiu. Em 1966, intensificou a pena de auxílio à emigração clandestina. O que antes ia até dois anos de prisão passou a ir de dois a oito. Vida mais arriscada para engajadores, transportadores e passadores. Viagens mais cómodas para clandestinos, que passaram a usar mais o comboio, a camioneta ou o carro. Um incentivo ao reagrupamento familiar e à emigração de mulheres solteiras, como Raquelinda. 
A presença das mulheres intensificou-se. Essa tendência foi em crescendo até 1968, ano em que saíram mais mulheres com documentos em ordem do que homens.
Naquela época, era vulgar motoristas prestarem serviços a engajadores e passadores. Nas suas investigações, a PIDE e a guarda esforçavam-se por perceber até que ponto eles estavam envolvidos nas redes de auxílio à emigração clandestina, até porque o veículo reverteria para o Estado. Alguns tornavam-se autónomos. Seixo, que tantos homens conduzira até Raquelinda, foi um deles. 
Vivia na freguesia de São Gregório, como Raquelinda. Mal se casou com a sobrinha, Lurdes Durães, meteu-a no negócio. Era uma rapariga de face rosada, olhos castanhos, ternos, magra como um pau de virar tripas. “Quarenta quilos era o meu peso”, diz ela. Óptimo para o disfarce. “Usava uma cinta para levar os passaportes falsos.” Quem os fazia era o padrinho dela, exímio na arte de copiar. Punha o nome e os carimbos de saída de Portugal e de entrada em Espanha. 
Eu olhei, dei com os olhos do senhor novo [carabineiro]. Ele viu tanta aflição, tanta aflição na minha cara que deitou a mão ao ombro do outro e disse: ‘Vamos embora, deixa-os ir’.”
Lurdes ia com o marido buscar gente “a Monção, a Paredes de Coura, a Braga, ao Porto, aonde fosse”, e entregava-a a um passador, perto de casa. O homem esperava-os à hora combinada nas casas de banho, atrás da escola. Não havendo guarda, desaparecia em menos de um ámen. Havendo, fazia tempo por ali. O casal apanhava-o no outro lado da fronteira e transportava-os até Ourense, de onde seguiam, de camioneta ou comboio, até à fronteira franco-espanhola.
O taxista chegava a ir a Espanha duas vezes no mesmo dia. Estava convencido de que levantaria mais suspeitas se viajasse sozinho. “Onde ides?”, perguntava o guarda. “Vamos ali buscar pão.” Quando tiveram o filho, ia o bebé ao colo da mãe. “Onde ides?” “Ai, vamos com ele ali ao médico.” 
Quando iam a Monção buscar gente, serviam-se do palácio de Brejoeira, faustosa construção com 18 hectares de vinha, oito de bosque, três de jardim. Seixo estacionava no fim do muro. Ao vê-los ali, havia quem parasse a perguntar: “Precisa de alguma coisa?” Para se livrarem disso, encenaram um enjoo. “Eu saía, ia para aquele terreno devoluto como se me encontrara mal.”
Era cada susto. Um dia, passaram uma rapariga de Paredes de Coura, forte, alta, tão alta que quase não cabia no carro. Vestia um casaco de “uma malha muito fininha, forrado com esponja”, de um azul tão forte que fazia doer os olhos de Lurdes, e trazia uma mala recheada, “como se fosse para férias”. Abriram-lha, tiraram de dentro o que podiam levar. Arrumaram tudo dentro de uns sacos.
— É Inverno, a mulher vai ter frio, veste o casaco dela — terá dito Seixo à mulher.
— Está bem.
Naquele dia, quando o marido foi mostrar os passaportes, o polícia de serviço puxou conversa com ele. À porta, a fumar um cigarro, estava o chefe. Atirada a beata, aproxima-se dela: “Levas um casaco muito bonito!” Ela tremeu como varas verdes. 
Tantas vezes andava ela com o coração aos pulos. Nenhuma como quando levou duas raparigas dos Arcos de Valdevez. Ali em Frieira, para lá da casa de Raquelinda, costumavam estar dois carabineiros. Apareceram “um senhor de bastante idade e um rapaz novo”. Lurdes gosta de olhar para as pessoas nos olhos, mas aqueles não. Ficava virada para a frente, “direitinha”, como uma criança amedrontada. O marido abriu a gaveta do tablier, tirou os passaportes de ambos e entregou-os. 
— E elas? — perguntou o mais velho, de olho nas raparigas que iam no banco de trás. 
— Elas são nossas vizinhas, iam ao médico a pé a Ourense e nós tivemos pena delas e demos-lhes boleia” — respondeu ele.
O mais velho ordenou-lhes que saíssem do carro e que os acompanhassem ao posto. Lurdes até pensou que o seu coração ia rebentar. “Eu olhei, dei com os olhos do senhor novo. Ele viu tanta aflição, tanta aflição na minha cara que deitou a mão ao ombro do outro e disse: ‘Vamos embora, deixa-os ir’.”
Seixo sabia o que era a prisão. Antes de se casar, fora preso pela PIDE e levado para o Porto, onde amargara 45 dias. Um cliente fora detido na fronteira franco-espanhola e denunciara-o. A notícia viera por ali abaixo. Passara o regato com duas crianças da família. Negaram tudo. Negar era a sua única defesa. 
Quando a luz eléctrica chegou à aldeia, em 1969, talvez 1970, Lurdes e o marido mudaram de vida. Abriram um café, mesmo ao pé da PIDE. Compraram um segundo táxi. O motorista contratado para o conduzir ainda transportou alguns clandestinos, mas poucos. O contexto era outro. 
Salazar caíra da cadeira de lona, no Forte de Santo António, no Estoril. O país vivia a Primavera Marcelista. Logo em 1969, a emigração clandestina deixou de ser crime — passou a contra-ordenação punível com multa, a não ser que se estivesse a escapar ao serviço militar. Qualquer interveniente na emigração clandestina sujeitava-se então a 18 meses de prisão — mais se ganhasse dinheiro com isso.
No café de Lurdes, o chefe da PIDE sentava-se sempre na mesma mesa, de costas para o balcão. Se entrasse um desconhecido, ela adivinhava ao que vinha. Punha-se a olhar para ele. Esticava o dedo médio e o indicador e levava-os ao ombro. Nem todos decifrariam tal gesto, mas, se para ali ficassem, quietos, com ar de quem nem sabia o que fazer, o PIDE levantava-se e saía. Se tivessem dinheiro, Lurdes chamava-lhes o passador. Se não, ensinava-lhes o caminho. 
Não acredita Lurdes que enganava a polícia. “As pessoas não eram parvas, fechavam os olhos porque queriam.” O historiador Victor Pereira também está convencido de que a corrupção não explica tudo o que se passava na fronteira. Muitos agentes conviviam desde pequenos com aquela realidade, alguns tinham “entre os seus mais próximos, passadores, contrabandistas ou emigrantes clandestinos”, alguns até já tinham feito parte do negócio antes de entrar na polícia.

Portugal era um país pobre, conservador, rural, de certo modo feudal. Os “senhores das terras” defendiam com unhas e dentes a política oficial de enclausuramento. Em Melgaço, chegaram a fazer manifestações a exigir que a PIDE combatesse melhor a emigração clandestina. 

Para ver a parte I da reportagem, clique em http://entreominhoeaserra.blogspot.pt/2014/04/memorias-da-emigracao-salto-contadas-na.html

Texto extraído de:
- Reportagem "Passadoras de Homens e outras aventureiras" de Ana Cristina Pereira, Adriano Miranda e Mariana Correia Pinto, do jornal "Público" da edição de 13 de Abril de 2014.

1 comentário:

  1. eu fui uma das passadas a monte com a minha mae e irmao e irmas en 20 de junho 1970 ! tinhamos 13/11/8/5 anos !foi un senhor (muito grande ) que nos levou atravez montes vinhas et rio e deixou nos logo a tras da fronteira e fomos para las vendas!! o senhor do taxi chegou logo e fomos para ourense !! bem ajam essas pessoas! e desde esse dia estou en França !nunca me esquecerei .....passar por cimas das pedras desse rio (trancoso?)

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