quinta-feira, 29 de maio de 2014

O "falar" das gentes de Melgaço no início do século XX


Em Remoães (Melgaço), o quotidiano em 1929...

O etnógrafo José Leite de Vasconcelos, fruto das suas visitas a várias aldeias de Melgaço, traça algumas das caraterísticas que identificou no modo de falar das gentes de Melgaço:
"Do exame que fica feito da "fala" de Melgaço, mostra-se que ela, em parte, conserva um estado muito arcaico da língua portuguesa, o qual é ainda hoje comum ao galego. Por exemplo,  sons como  ou canchuvia ou chubia, entre muitas outras. Em parte, apresenta fenómenos que se tornaram há muito, ou sempre foram, caraterísticos deste último idioma. Por exemplo, na conjugação de verbos: terminações em che na 2º pessoa do pretérito perfeito, pretéritos fortes em –o- , dixê ou dixen, -abámos na 1ª pessoa plural do imperfeito, -ano na 3ª pessoa do plural do pretérito perfeito, érades ou fáçadesveiga-te, é correspondente à nossa conjunção “e”, beiçóm ou beiçon, gando “gado”.
Daqui veio o escrever no século XVI de João de Barros segundo o qual os habitantes de entre o Lima e Minho “são quasi como galegos, e da mesma linguagem e traje”.
A própria gente do povo de Melgaço afirma por todo  o concelho “que a sua fala é quasi galega”. A uma mulher montanhesa ouvi uma vez a seguinte expressão: “Somos do Monte, falamos assi”. E em algumas localidades, como Paderne, onde os fenómenos de carácter galego não se manifestam tanto como noutras, zomba-se destas, arremedando-as: eu dei-che! tu foche! eu fuiche alá (eu fui lá”), eu binche! (eu vim). Sobretudo dizem isto das freguesias raianas com a Espanha, isto é, da raia: Chaviães, Paços e Cristóval. Em todo o caso, pesando bem as coisas, muitos galeguismos que parecem típicos, podem considerar-se portugueses, ou submetidos às leis gerais do português.
Os arcaísmos e galeguismos melgacenses explicam-se por ter Melgaço vivido, até tempos relativamente recentes, em grande afastamento dos principais centros de atividade e cultura portuguesa, e porque, sendo o galego e o português uma mesma língua, e não havendo no oriente do concelho fronteiras naturais, o trato familiar e quotidiano entre as gentes de cá e as de lá não deixa perder certos caracteres iniciais, e permite transmissão mútua de fenómenos. De facto, existem também em terra galega, embora em área muito circunscrita, fenómenos característicos do do falar português.
Quando se trata de regiões vizinhas, é às vezes impossível fazer classificação linguística rigorosa. Tanto pode considerar-se uma fala como pertencente ao grupo A ou ao grupo B. Ninguém entre Elvas e Badajoz confundiria o falar de Espanha como  falar de Portugal. Mas quem é que na raia seca de Melgaço separaria nitidamente em certos casos o falar popular da Galiza do falar popular do Minho?
Os caracteres do dialecto de Melgaço são, como se viu, tão notáveis, tomados no seu conjunto, que, pelo lado do arcaísmo, posso assentar que, assim como a linguagem de Arrifes, nos Açores, forma o grau mais evolucionado do Português, assim a de Melgaço forma o grau mais antigo. Pelo lado do galeguismo, ela estabelece, dentro do dialecto geral interamnense (dialecto falado entre Minho e Douro), transição do português para o galego.
Aqueles caracteres, porém, vão-se modificando ou perdendo. Se ainda há quem fale segundo as normas locais, há muitos indivíduos que, falando ou querendo falar segundo as normas do português corrente, deixam apenas perceber fenómenos locais avulsos, ou até pertencentes ao minhoto geral ou ao baixo-minhoto. Não raras vezes acontece, quando um popular fala com uma pessoa de fora do concelho, empregar uma expressão culta, por exemplo, sou, ao passo que, se falar com um seu natural, dirá som ou .   

Para as modificações e perda de dialecto contribuem, como é natural, as relações cada vez mais íntimas que, por causa da abertura de estradas, instituição de escolas, e outros melhoramentos de vida social, se estabelecem continuamente, já entre as populações rurais e a vila, já entre o concelho todo e o resto da nação. Vemos isso claramente com dois exemplos. O concelho de Castro Laboreiro, que existiu durante muito anos independente, foi extinto por Decreto de 24 de Outubro de 1855, e desde então os castrejos começaram a ir mais vezes à nova vila sede de concelho do que iam antes. Na freguesia de Paderne, lugar do Peso, ficam  as célebres águas minero-medicinais conhecidas por “Águas de Melgaço” exploradas há uns anos para cá. Isso faz com que não só vão ali com frequência pessoas de várias freguesias do concelho vender comestíveis, senão que também lá concorram forasteiros de todo o Portugal, e muito de Espanha. Em qualquer dos casos apura-se o dizer, isto é altera-se a feição do dialeto.  

Extraído de: VASCONCELLOS, José Leite de (1928) - Linguagem Popular de Castro Laboreiro.  in Opúsculos, Vol. II – Dialectologia (parte I),Imprensa da Universidade, Coimbra.

sexta-feira, 23 de maio de 2014

A casa "Bon Marché" de Prado em 1920 e a emissão de moeda

A casa "Bon Marché" ficava em Prado e tinha sido fundada em 1914. O seu proprietário era Cândido Augusto Esteves. Como podemos ver neste postal de 1920, comercializava desde fazendas, couros e calçado entre outros artigos.
Uma particularidade desta casa era ser emissora de papel moeda. De facto, nesta época, a emissão de dinheiro para circulação não era exclusividade da entidades públicas. Era frequente as Câmaras Municipais, as Misericórdias e algumas casas comerciais emitirem valores equivalentes a dinheiro para circulação local. 
Esta situação excepcional justifica-se pela conjuntura em que o país vivia. De facto,  embora Portugal tivesse entrado em 1916 na I Grande Guerra, essencialmente por motivos que se prendiam com a manutenção do estatuto e da integridade das colónias no pós-guerra, e em 1918 se encontrasse entre os Aliados vitoriosos, o fim da guerra não veio minorar as dificuldades financeiras nem acalmar a agitação social do país.
O aumento do custo de vida era contínuo e a valorização do metal durante o conflito levou a que diversas instituições, emitissem, entre 1917 e 1922, papel-moeda de baixo valor – as cédulas. Estas cédulas vinham facilitar os trocos e substituir as moedas, entretanto quase desaparecidas de circulação devido ao ávido aforro metálico da população.






Cédula de 2 centavos de 1920 da casa "Bon Marché" de Prado

Cédula de 4 centavos de 1920 da casa "Bon Marché" de Prado

terça-feira, 20 de maio de 2014

Castro Laboreiro, 1903 - Dois castrejos à conversa (Parte 3)

Castro Laboreiro, no início do século XX

Leia a parte final da conversa entre o Tio Francisco e o seu vizinho. Falam de coisas do antigamente, do Tomás das Quingostas e de dois outros castrejos das suas lembranças, homens de coragem: um tal tio Tato do Rodeiro e um tal tio Nelo Cotarelo de Queimadelo...

“Diz o vizinho: - É d’antes diç ca habia homes mui balentes. Diç que um tal tio Tato do Rodeiro que agarrou um lobo pela garganta, è que o afogou, è que lhe pegou nua perna ó cabalo grande do Tomás das Quingostas (o ladróm mais balente d’estas alturas!), è que o segurou, è que o cabalo a querê’lo coucear, è ele agarrado á perna, è que tirou c’o cabalo ó chão, mais despois o Tomás que o mataba c’um tiro, se nom fugisse.
Diz o tio Francisco: - Esse tio Tato eu já nom conheci, mais diç q’andou com meu abô pelos fiandeiros, é dua beç que s’abriu ua sepultura na igreija é que lá aparecêrum os ossos d’ele, q’erã mui grossos, mui grossos, è que todos deziã q’erã os dele. Eu nom sei. Quem fezo a casa do Nelo Cotarelo de Queimadelo foi ele, è diç que foi ele só, é ele só é que botou aqueles côtos todos arriba; diç que nom queria que ninguém o ajudasse. É olha q’ela tem lá bôs côtos… 
Diz o vizinho: - Pois huje nom hai d’esses homes; só hai p’raí uns froucinhos que nom balem nadinha. Só som bôs p’ra tapar um buraco co’eles!
Diz o tio Francisco: - É ós pois, que bá um home dezer-lhe que nom balêm nada, ca lh’esmoqueteã a cara, ou pelo menos tira-lhe um berro como um burro…
Diz o vizinho: - Tio Francisco, bou-me comer o cardo, cá j’hã-de ser horas, è a minha Maria nom m’as garda, ca cando tal, tamém s’enrista p’ra mim como um demonho! Intóm digo-lhe adeus até de manhã, se Deus quijer. Olhe q’as noites estão frias. Intóm o milhor é meter-se um home na cama.

Diz o tio Francisco: - Pois intóm, até demanhã, se Deus quijer. È cando te parecer, bem perqui, cà eu tenho-che múito que dezer, cá tamém já che tenho uns anos, è eles nom passã sem s’aprênder algo.»


Para ler a primeira parte deste diálogo, clique em
 http://entreominhoeaserra.blogspot.pt/2014/05/castro-laboreiro-1903-dois-castrejos.html


Para ler a segunda parte deste diálogo, clique em 


Extraído de: VASCONCELLOS, José Leite de (1928) - Linguagem Popular de Castro Laboreiro.  in Opúsculos, Vol. II – Dialectologia (parte I),Imprensa da Universidade, Coimbra.

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Castro Laboreiro, 1903 - Dois castrejos à conversa (Parte 2)

Castro Laboreiro, no início do século XX

Continua aqui a conversa entre dois castrejos: o tio Francisco e um seu vizinho. Este trabalho foi obtido a partir de um texto elaborado em 1903 por Manuel Domingues, abade de Melgaço e natural de Castro Laboreiro. O mesmo foi enviado pelo clérigo a José Leite de Vasconcelos.
Na primeira parte, os dois castrejos falam dos rigores do tempo e das dificuldades da vida por estas bandas...

“Diz o Tio Francisco: ”- Intom bamos-che passando estes dous dias que temos neste mundo, c’ò pior é-che no outro, c’àqui sabemos os cardos que comemos, é no outro nom ch’o sabemos.
Olha qu’um tio de meu abô, que ch’era crego, era cura do Senhor Reitor, diç que dizia muitas bezes, sentado ali naquele canto, qu’era o sitio d’ele, qu’inda habia de bir o tempo qu’òs homes habiã de boar e òs ferros qu’habiã de falar; è olha, ele indo nom biu, mas nós já bemos. O camboio diç que passa aí pela beira do Rio Minho, arriba e abaixo, que corre que desaparece; é aí em Melgaço diç que se manda ua parte, indas que seja p’ra Lisboa, por um ferrinho è por um arame que bai d’aqui até lá.
Intom nom sei que che diga, nom sei p’r’ónde caminhamos, assi com tanta finuria. Estas cousas, já se sabe, tamém o Demonho há-de ter nelas a sua parte è quinhóm, cà cabeça dos homes só nom fazia todo.
É assi bai andando o mundo! O que ch’êu digo é que agora nom hai a religiom d’outro tempo. Ora, que soubesse o Senhor Reitor belho que alguém nom ia á minsa algum dia de domingo, chamabò lá, dezia-lh’as todas!
Parece que sabia todo, parece c’adebinhaba. É se lhe puxassem pela idêa, Deus nos libre! c’escastanhaba um lá dentro d’aquela casa, é batia àquelas botas, que lhe chegabã ó joelho, naquele sobrado, que parece c’alagaba aquela casa. E fosses tu lá com rètólicas, cá che puxaba as orelhas!
Mais, meu amigo, naquele tempo habia-che grã é patacos é herba é gando é res; é todo andaba gordo é bonito: é huje é miseria a mais miseria! Eu sempre oubi dezer que com Deus é co’o lume nom ch’hai chanças.

Diz o vizinho: - Olhe, tio Francisco: é d’antes diç qu’habia muito dinheiro, é qu’a gente andaba sempre com fartura. É huje qu’hai?

Diz o Tio Francisco: - Nom que d’antes aqui nesta freiguesia só ch’habia as botas do Senhor Reitor, uas botas que lhe chegabã ó giolho, e só as lebaba p’rá igreija cando dezia a minsa, è demais nom ch’habia outras em toda a freiguesia; è um ano o Nelo dos Coutos, que já nom binha de Castilha hai quatro anos, trougo uas botas comàs do Senhor Reitor, è nom ch’as podo rumper, cà era o espelho dos outros todos; cando se saía da minsa, todos reganhabã o dente, d’ele se querer cumparar ó Senhor Reitor. É huje, huje nom hai cã nim gato que nom tenha uas botas è um chapéu è um relógio. E às mulheres fazia uns abarqueiros que lhe duraba dous anos, è huje já che trajêm çapatos è çoques com brochas marelas, è òs abarqueiros jòs nom querem, jós nom hai, è já hai panos de seda, è d’antes só habia capelas p’rá cabeça, è nom se bia um pano, nim de seda, nim dos outros nessa igreija. É aí che stá a razóm porque che nom hai dinheiro, porque o gastã nessas chincharias.»



Para ler a primeira parte deste diálogo, clique em


Extraído de: VASCONCELLOS, José Leite de (1928) - Linguagem Popular de Castro Laboreiro.  in Opúsculos, Vol. II – Dialectologia (parte I),Imprensa da Universidade, Coimbra.

sábado, 10 de maio de 2014

Castro Laboreiro, 1903 - Dois castrejos à conversa (Parte 1)

Castro Laboreiro, início do século XX
(Foto: Torre do Tombo)

Em 1928, José Leite de Vasconcelos, “pai” da antropologia moderna em Portugal, publicou um trabalho sobre a linguagem popular falada em Castro Laboreiro . Esse trabalho parte de um texto enviado em 19 de Novembro de 1903 pelo Abade de Melgaço, Manuel José Domingues, natural de Castro Laboreiro, para o investigador. Nesse texto é feita uma tentativa de transpor o castrejo falado para a escrita.
O dito texto reproduz um diálogo travado entre dois populares castrejos. Um velho, que está sentado ao lume e um indivíduo mais novo que o foi visitar, e o trata respeitosamente por tio.
No texto, representa-se a linguagem castreja com toda a natureza e pureza, “pelo menos como os velhos então a falavam”.  Desconhece-se se este diálogo é verídico ou é fictício.

- Deus lhe dia boas noites tio Francisco! Intóm est’á ó lume, ei! É ele huje sabe, cá faz um frio que parece Janeiro, com’é.
 - Isto um bélho tem de star sempre’ó lume, cá lá ó frio nom pode star! Intóm stou p’ràqui ó  borralho p’ra tê’los pés quentes.
 - Cecais qu’estaria milhôr na cama porqu’ò calor da cama é milhôr.
 – Mais na cama nom se póde estar sempre, c’àté dói o corpo è os ossos: è em canto a gente póde lebantar estas pernas, bai-s’erguendo.
 – Pois eu huje fui guiá’la auga á Porteleira, é bi-me mal co’a nebe: todo era escorregar, escorregar, que dei cada caída, c’até me parcia que nom me lebantaba, nim binha pr’ó eido!! É apareceu-m’o condanido do lobo no caminho, que p’ra me librar d’ele, bi-m’entr’à cruz e o caldeirinho, è pensei que era huje a minha última.
 - Sume-t’artelo! Eu t’arrenego! Àbrenúncio! Que demonho de bicho! Cá faç tanto mal perí! Só com obelhas tem comido tantas, tantas, c’àté nom sei como lhe nom cái o rabo co’as unturas que dá ás tripas!
- Veigam-che cantos hai no outro mundo! C’ó demonho do lobo até me fezo pôr rouco a berrar eu ú, ú, ú; mais ninguém m’oubia. Olhe cá pensei que lhe daba üa cêa àquele condanido. Eu bém chamaba é berregaba, mais ninguém me falaba! O escomungado parece qu’adebinhaba que estabámos ali só os dous, p’ra juntá´los coletes.
 – Pois graças a Deus qu’escapache d’esta enfeita.
– È que tal? Hai herba nos campos estiano?
 – A cousa regula pelos outros anos: nim hai muita, nim hai pouca, hai um remédio p’ra gobernar, é ir tendo mã dos ossos ás baquinhas, cá as minhas pequeninhas estiano sóm bem castigadas do frio.
 – Sóm, sóm! Olha qu’este ano bai frio, qui-eu já conto dous carros è nom me lembro de tanta frialdade: só é por eu ser bélho, è senti-lo mais!
 – Olhe q’o ano bai sequeiro. A minha Maria tamém se queixa, q’às berças estiano já secárum todas co’a giada, é que nom hai com que faze’lo cardo: è a gente sem cardo parece que nom quéce por dentro.

 – Ai intóm nom sô eu só que conheço isso, é porque é berdade, qu’o ano bai coelheiro; mais olha nom ch’hai mal que nom traga bem. O frio no seu tempo tamém ch’é bô, cá já meu abô dezia qu’[em Janeiro sube ó outeiro: è chora, se bires berdegar, è canta se bires terrear]. Olha c’ó ditado dos bélhos sai-che certo, por qu’olhà giada matos bichos qu’andã nos campos, p’ra que despois nom coma os fruitos e à nobidade toda.» 


---------------(CONTINUA)------------------

Extraído de: VASCONCELLOS, José Leite de (1928) - Linguagem Popular de Castro Laboreiro.  in Opúsculos, Vol. II – Dialectologia (parte I),Imprensa da Universidade, Coimbra.

terça-feira, 6 de maio de 2014

A revolta dos melgacenses contra os franceses e os alfaiates do concelho (1808)



Decorria o ano de 1808. Portugal sofria a segunda invasão francesa comandada pelo marechal Soult. Na obra de José Hermano Saraiva, este fala-nos como Melgaço foi a primeira praça portuguesa a revoltar-se contra os invasores franceses: "Em Melgaço, a revolta contra os franceses declara-se a 9 de Junho, a aclamação do príncipe é marcada para o dia seguinte, porque não existe na vila nenhuma bandeira portuguesa. O primeiro acto revolucionário consiste por isso na convocação dos alfaiates para confeccionarem as bandeiras que devem ser hasteadas na cerimónia solene da restauração. Na torre do castelo arvora-se a insígnia da guerra, e pouco depois corre o rumor de que o juiz de fora a mandara arriar. Isso provoca o furor dos camponeses, que assaltam a vila dispostos a matar o magistrado. A notícia não tinha fundamento. Em muitos lugares se verifica a mesma desconfiança popular contra as autoridades legitimas.
No dia seguintes, vieram também incorporados o Corregedor de Milmanda, o Abade de Esteriz e outras pessoas distintas da Galiza; e sendo dia de feira em Melgaço, e por isso de um numeroso concurso, os portugueses se unem aos espanhóis, e em presença do Juiz de Fora, que os observava no próprio campo da feira, soltam alegres vivas ao Príncipe Regente e detestações violentas contra Napoleão e seus delegados. Imediata ao campo da feira está a porta da vila, sobre a qual se achavam cobertas as Armas Reais; o povo as descobre num momento; passa depois a fazer o mesmo às da casa da Câmara e da fonte da vila; e para que a obra não ficasse imperfeita, o Corregedor de Milmanda com uma partida dos seus foi também descobrir as fonte de S. João da Orada, que ficavam em alguma distância. Tomás José Gomes de Abreu, Jacinto Manuel da Rocha Pinto, o Capitão mor João António de Abreu e o Doutor Miguel Caetano foram dos primeiros, e mais activos, que trabalharam nesta empresa, mas tiveram muitos outros companheiros que mostraram o maior patriotismo."

Extraído de: SARAIVA, José Hermano - História de Portugal.

domingo, 4 de maio de 2014

A Igreja da Misericórdia (vila de Melgaço): referências históricas e notas arquitetónicas

Igreja da Misericórdia (vila de Melgaço)
(Foto de Vitor Oliveira)

A Igreja da Misericórdia resultou da adaptação de uma outra igreja pré-existente, com invocação de Santa Maria do Campo.
Trata-se de uma igreja de fundação medieval onde se instalaria a Confraria da Misericórdia, sendo a única do distrito que conservou a sua antiga estrutura. Na fachada sul, conserva dois cachorros românicos, testemunhos de uma anterior capela, provavelmente do séc. XIII, e o paramento incorpora duas inscrições, uma muito erosionada e outra, do séc. XIV, com a inscrição "LAVOR M A / DOMINGO D S", indicando, possivelmente, Domingo Dias (?) como hipotético arquitecto de uma remodelação do templo. O frontispício segue a tradição românica mas foi muito reformulado no século XVIII, época da modinatura dos vãos e quando também se deve ter prolongado e alteado a capela-mor. O corpo do Consistório apresenta um aparelho distinto e menos cuidado que o da igreja, em alvenaria irregular que originalmente deveria ser rebocada, e com pilastras nos cunhais que, tal como a "loggia", corresponde a uma remodelação do edifício. O coro-alto forma planta em L com longa tribuna, sobre mísulas decoradas, albergando interessante cadeiral dos Mesários. As mísulas são muito semelhantes às da Misericórdia de Valença. Os retábulos laterais confrontantes são maneiristas, de tipo nicho, e o outro do lado do Evangelho é barroco, de transição entre o estilo nacional e o joanino, e com frontal de altar já rococó. A capela-mor tem uma interessante caixa de esmolas pintada, no espaldar, com cena de Senhor carregando a cruz, e no pavimento duas tampas sepulcrais epigrafadas, do século XVIIulo XVIII. Na sacristia, sobre o arcaz, encontra-se um oratório, em talha, de alguma qualidade artística. A Bandeira representa a Visitação. Junto à entrada principal da igreja encontram-se dois sarcófagos antropomórficos com tampas de secção pentagonal com volume em quatro águas. Juntamente com a Misericórdia de Valadares, era a única no distrito que não possuia hospital no século XIX.
Deixo aqui algumas referências históricas ao longo do séculos acerca deste templo. No século XII, existe uma referência documental à existência de três igrejas na vila de Melgaço: a igreja de Santa Maria do Campo, a de São Facundo e a de Santa Maria da Porta. Em 1258, a igreja de Santa Maria do Campo foi integrada no padroado real. Em 1320, a mesma foi taxada em 30 libras. Em 1432, a 2 Julho, há a confirmação do bispo de Tui sobre o padroado da igreja de Santa Maria do Campo, pertencente a leigos, sendo, à data, a apresentação do abade feita por Geraldo Miguel e seu filho Geraldo, moradores no castelo de Melgaço. O pároco apresentado, Rui Lourenço, já era reitor da igreja de São Facundo, na vila. Em 1453, a 20 Agosto, foi elaborado um diploma que anexa à igreja a de São Fagundo à de Santa Maria do Campo. Em 30 Agosto, a apresentação da igreja pertencia ao administrador perpétuo no espiritual e temporal do bispado de Tui na parte de Portugal, que nesta data apresentou Álvaro Rodrigues.
No século XVI, o padroado já pertencia ao arcebispado de Braga. É do início deste século que data a fundação da Santa Casa da Misericórdia de Melgaço. Entre 1514 e 1532, no sensual de D. Diogo de Sousa, a igreja de Santa Maria do Campo rendia ao arcebispo 78 reais. Nas mãos deste prelado, Lopo da Cunha renunciou a igreja de Santa Maria do Campo, juntamente com as outras onde era abade.
De 1517, data a confirmação dos Estatutos da Santa Casa de Misericórdia de Melgaço. Em 1523, a 5 Fevereiro, o abade da Igreja de Santa Maria do Campo foi substituído por Aires da Costa, que, poucos dias depois, também renunciou. Em 23 Abril, foi nomeado António de Castro, Clérigo de Ordens Menores para a Igreja de Santa Maria do Campo.
Em 1531, é publicado o alvará real entregando à Confraria da Misericórdia de Melgaço o Hospital de São Gião existente na vila. Em Dezembro de 1564, foi publicado o diploma de extinção da igreja de Santa Maria do Campo pelo arcebispo de Braga, Frei Bartolomeu dos Mártires.
Em finais do século XVI, é registado em tombo a mudança da igreja de Santa Maria do Campo para a Misericórdia. Em 1591, a 2 Fevereiro é feito o contrato entre a Misericórdia, sendo provedor Gil Gonçalves Leitão, e António de Figueiroa para este pintar o retábulo e fazer a bandeira, hoje já desaparecida, e grades, pelo preço de de 56.5000 reais. Recebeu apenas 43.520 reais em dinheiro, dada a falta de recursos da Misericórdia, pelo que se decidiu "dar-lhe em satisfação do remate de pagua huma cruz que a Casa tinha a qual foi pesada nesta vila na feira por hos hourives de Salvaterra que a ela costumão vir e pesava doze mil novecentos e oitenta reis".
A obra de imaginária do retábulo foi feita por Pero Lopes, por 26.200 reais. Em Outubro é feito um pagamento a António de Figueiroa 1400 reais por pintar o púlpito e a coluna das galhetas da igreja. Em 1619 um documento refere que os Irmãos da Confraria deveriam mandar buscar a telha à antiga igreja de São Fagundo para que, com ela, pudessem retelhar a Igreja da Misericórdia.
Em 1641, o Desembargador Gregório de Balcacem de Morais, Visitador e Reformador Geral das Fronteiras do Reino, procurou estabelecer um acordo com a Santa Casa da Misericórdia para ela tratar dos feridos de guerra. O provedor, no entanto, alegando o estado de pobreza da instituição, escusou-se a tratar gratuitamente os soldados e a fornecer-lhes remédios sem pagamento.
Em 1672 e 1673, era provedor Pero Gomes de Abreu Magalhães, altura em que tiveram origem os sermões quaresmais pregados na vila até finais do século XIX através do acordo deliberado pela Mesa em 12 Fevereiro 1673.
Em 1676, foi feita a remoção das tábuas do antigo retábulo-mor para a Matriz da vila e foram construídos novos retábulos pelo entalhador de Valadares Jácome de Araújo. De facto, as antigas tábuas do retábulo-mor e a sua talha encontram-se actualmente na Igreja Matriz de Melgaço, na Capela dos Almeidas no lado do Evangelho. As tábuas representam Cristo ressuscitado, São Pedro, Imaculada Conceição e São Sebastião, Apresentação da Virgem no Templo e Apresentação do Menino no Templo. Na predela figuram as cenas, em baixo- relevo, da Visitação e da Anunciação, da autoria de Pero Lopes. Também da predela é a representação da Adoração dos Magos, tendo no reverso a legenda "Mizericordia de Melgaço" e que, segundo Vítor Serrão, se inspira, de modo simplificado, numa estampa de Jerónimo Wierix do "Evangeliarium Imagines", do Padre Jerónimo Nadal, de 1591.
Em 1692 ou 1693, foi eleito provedor Francisco de Araújo Sarmento, mas que por razão desconhecida foi preso, deixando a misericórdia um pouco à deriva. No século XVIII provavelmente o edifício sofreu uma remodelação. Foi feito o aumento das "capelas de Missas", substituição dos paramentos velhos e usados por outros novos, aquisição de alfaias para as procissões, mas devido à penúria em que vivia, recorriam constantemente às Misericórdias vizinhas de Valadares e Monção a fim de lhe emprestarem balandraus (capas).
Em 1740, embora o capital fosse de 3.521.000 reis, as esmolas dadas pela Misericórdia aos pobres não eram muito abastadas. Diariamente dava-se a António Gomes, entrevado numa cama, 10 reis e a Francisco Quintela 7,5 reis. Em 1741, a 19 Março, são suspensas as esmolas, devido às poucas possibilidades da Confraria. Em 1758, a 24 Maio, a vila não tinha hospital, mas apenas Misericórdia que tinha de renda 400$000. Em 1769, o padre Manuel Esteves da Costa ofereceu à Misericórdia uma lâmpada de prata, à romana, para alumiar o Senhor da Cruz.
No século XIX, foi construído o retábulo-mor. Em 1838, o Administrador Geral do Distrito de Viana do Castelo afirma que a maioria das Misericórdias estavam muito mal administradas, o que originava a perda de muitas dívidas e foros, em resultado do desleixo e pouco zelo das Misericórdias. Em 1839, o Administrador envia um comissário contabilista para reformar todas a sua escrituração e examinar os erros de liquidação e desleixo. Em 1840 ou 1841, sob a alçada de José Manuel Gomes de Abreu, a Mesa ruiu várias vezes; compraram-se as mãos e as cabeças precisas para se armarem as figuras das personagens necessárias para a procissão dos Santos Passos, a fim de evitar pedidos a outras misericórdias. Em 1846, são feitas várias obras na igreja por se encontrar bastante danificada. Em 1849, a 20 Novembro, João Correia dos Santos Lima, negociante na vila de Melgaço, procurador de Joaquim Maria Osório, natural da vila e morador no Grão Pará, Brasil, entregou na secretaria da Misericórdia a promessa feita pelo dito Osório ao Senhor dos Passos "uma tunica d'orbão de seda roxa, uma corda amarela e uma cabeleira preta, tudo novo e acondicimado em caixão de pau". Em 1863, a Misericórdia tinha 12 857$868 reis de fundos, sendo 138$040 em domínios directos, 12 519$828 em capitais mutuados e 200$000 em alfaias, jóias e móveis; tinha 627$015 reis em receitas ordinárias, sendo 4$902 em dinheiro e 622$113 em juros de capitais mutuados. Tinha ainda como despesas obrigatórias 300$000 reis, em encargos pios.
Em 1943, sendo Provedor Dr. Augusto Cesar Esteves, as mulheres passaram a ter o direito de se inscreverem como Irmãs da Misericórdia. Em 1944, era capelão o páraco da vila António de Jesus Rodrigues, o primeiro a exercer funções de páraco da vila e capelão da Misericórdia, pois até então a Confraria sempre teve os seus próprios capelães.
Em termos arquitetónicos, esta igreja possui uma planta longitudinal, composta por nave única e capela-mor rectangulares, sacristia e Consistório, rectangulares, adossados a este e sineira e "loggia", rectangular, percorrendo a fachada norte. Volumes escalonadas, com coberturas diferenciadas, em telhados de duas e três águas. Fachadas, com paramentos em cantaria de granito em fiadas pseudo-isódomas, na igreja, e em alvenaria irregular de granito, na sacristia e Consistório, percorridas por cornija saliente. Fachada principal, orientada a oeste, em empena com cornija saliente, tendo, no remate, cruz sobre acrotério e cunhais sobrepujados por pináculos; portal de arco apontado, de duas arquivoltas, assente em impostas lisas, encimado por janelão, de brincos, com verga abatida sublinhada superiormente por cornija saliente, e sineira de uma ventana, em corpo rectangular adossado a norte. Fachada sul com três janelas rectangulares e corpo saliente de altar, na capela-mor, e janela e porta rectangulares na sacristia e Consistório. A fachada este, com pilastras nos cunhais, tem escadaria, pétrea, de um lanço, de acesso ao Consistório, porta rectangular no 1º piso e janela rectangular e porta de verga abatida no 2º piso. Fachada norte, com pilastras nos cunhais do Consistório e da "loggia", apresenta janelas rectangulares no Consistório e janelos rectangulares horizontalizados nos arrumos, sendo percorrida, no terço anterior, ao nível do 2º piso, por "loggia", com porta de verga recta, em ferro forjado, no primeiro piso.
O interior é rebocado e caiado, tendo ligado ao coro-alto, do lado da Epístola, formando um L, tribuna assente em trave de madeira, sobre mísulas pétreas decoradas com dupla voluta e motivos fitomórficos, e balaustrada de madeira. O guarda-vento é em madeira e pia de água benta no sub-coro. Lateralmente, do lado do Evangelho, porta de verga recta com frontaleira e púlpito rectangular sobre mísula pétrea, com balaustrada de madeira. A capela-mor, definida por sanefa, em talha dourada e branca, com as insígnias da Misericórdia ao centro, apresenta-se sobrelevada e com acesso por quatro degraus, sendo cerrada por teia em ferro forjado; tem, do lado do Evangelho, capela de arco pleno, moldurado, sobre pilastras dóricas, albergando retábulo de talha dourada e branca, e, confrontantes, dois altares em talha dourada e branca. Retábulo-mor, em talha dourada e branca, albergando, centralmente, Crucifixo, e inserindo, ê esquerda, porta de acesso ê sacristia. Pavimentos em lajes de granito, na capela-mor, e soalhado, na nave. Tectos de perfil curvo, em madeira. Sacristia, com acesso exterior a partir a fachada sul e da fachada este, com paredes em aparelho de alvenaria irregular de granito, com as juntas tomadas e caiadas e rebocado e pintado de creme, com pavimento lajeado e com tecto cimentado e caiado. Consistório, com acesso a partir de pequeno átrio lajeado, no topo da escadaria, com paredes em aparelho de alvenaria irregular de granito, com as juntas tomadas e caiadas e rebocado e pintado de creme, com pavimento em mosaico cerâmico e com tecto cimentado e caiado.

Informações extraídas de:

ALMEIDA, Carlos Alberto Ferreira de, Alto Minho, Lisboa, 1987, p. 179; BARROCA, Mário, Necrópoles e sepulturas medievais de Entre Douro e Minho, Porto, 1987, p. 360 - 361, ROCHA, J. Marques, Melgaço de ontem e de hoje, Braga, 1993, p. 229; BARROCA, Mário, Epigrafia Medieval Portuguesa, vol. II ( tomo 2 ), Porto, 1995, p. 1648 - 1649; SERRÃO, Vitor, Sobre a Iconografia da Mater Omnium: a pintura de intuitos assistenciais nas Misericórdias durante o século XVI, in OCEANUS, nº 35, Julho / Setembro, Lisboa, 1998, pgs. 134 - 144; idem, André de Padilha e a Pintura Quinhentista entre o Minho e a Galiza, Lisboa, 1998; CERDEIRA, Amélia Esteves, Santa Casa da Misericórdia de Melgaço: Cinco Séculos ao Serviço das carências de um povo, in I Congresso das Misericórdias do Alto Minho, Viana do Castelo, 2001, p. 270 - 282; FONTE, Teodoro Afonso da, As Misericórdias do Alto Minho - perspectiva Histórica e actualidade, in I Congresso das Misericórdias do Alto Minho, Viana do Castelo, 2001, p. 96 - 117; ALMEIDA, Carlos A. Brochado, O sistema defensivo da vila de Melgaço, dos castelos da reconquista ao sistema abaluartado, Melgaço, 2003; ESTEVES, Augusto César, Obras Completas, vol. 1, tomo 1, Melgaço, 2003; DOMINGUES, José, Padroado Medieval Melgacence (Santa Maria da Porta, Santa Maria do Campo e São Fagundo), in Boletim Cultural de Melgaço, s.l., 2004, pp. 63-114.