domingo, 29 de junho de 2014

Castro Laboreiro no conto "Tramóias d' Esta Vida" (1863) de Camilo Castelo Branco



Balbina tinha desaparecido de casa da mãe há anos. Ninguém sabia nada dela. O seu tio, regressado do Brasil, ouviu dizer que um soldado a tinha avistado para os lados de Castro Laboreiro, no Alto Minho. Resolve então viajar às serras do Laboreiro...
"Chama-se este homem João Moreira, e vem do Brasil, para onde foi menino. É natural de Esposende, e irmão da defunta Serafina da Tenda, tio, portanto, de Balbina Rosa.
Havia saído da terra natal cinquenta anos antes. Escreveu aos pais alguns anos. Depois, morreram os pais, ele casou, trabalhou, enriqueceu para os filhos, e esqueceu-se da Pátria e da irmã, que deixara. Serafina julgava-o morto, e os seus patrícios esqueceram-no.
Quando estava rico e velho, morreu-lhe a mulher, e, no breve termo de um ano, seus três filhos. Lembrou-se então de Esposende e da irmã. Estava só, amargurado, contemplador melancólico de sua inútil riqueza.
Veio, então, para Portugal em busca de família, e envergonhado de, só à hora do desamparo, procurar sua irmã. Sabem o mais. Parou defronte da casa onde nascera; e, como visse uma mulher representando quarenta anos, pensou consigo que não podia ser aquela. "Morreu, certamente!", disse João Moreira entre si, com dor, com um desapego mortal da vida, e arrependimento de se ter alongado dos ossos de seus filhos, que ao menos conhecia, para se avizinhar das cinzas deslembradas e desconhecidas de seus pais e irmã. 
Nisto cismava o brasileiro, quando a inquilina, ou proprietária da casa paterna lhe disse que a taverneira tinha morrido. Agora vamos em cata dele ao Alto Minho. Vai o leitor pasmar-se daquelas bem-aventuradas margens do Lima. Entra comigo em Viana, na louçã namorada do oceano, naquela esquiva formosa que vacila entre deixar-se amar das ondas, que lhe beijam os pés, ou dos arvoredos que lhe enramam a fronte. Agora, vamos neste barquinho rio acima até Ponte do Lima. Não se me fique arrobado neste ondear de esmeralda que a viração balança, que receio me deixe ir sozinho em procura do brasileiro. Aquilo são bosques, que escondem moitas arrelvadas, e meandros de fontes, e amores de aves, e amores de damas castelãs, que por ali se escondem mais conhecidas das estrelas que nossas, e mais conhecidas ainda dos faunos ilustrados do sítio que das estrelas.
Aqui estamos na velha Ponte. Iremos por terra a Valença, que é um ir sempre ao debaixo de abóbadas de verdura. Cá está a fortaleza, fazendo carrancas a Tuí, à decrépita Galiza, que o rio Minho separa de nós, como cordão de limpeza entre a orla do ridente Portugal e a testada dos nossos sujos vizinhos, sujos, como galegos que são.
Sujos!, e ladrões lá na sua cafraria? Isso então é coisa para tamanho espanto que só não há-de espantar-se do que são lá, quem souber como eles são ladrões cá.
Aqui vamos na peugada de João Moreira, que procura o vinte e três da quarta companhia, José Torto de Esposende. Declara José Torto que, indo a escoltar uns presos da vila dos Arcos para outro ponto, vira uma pastora no caminho, a tornar à manada uma cabra que se desgarrara, e cuidara ele ver Balbina; mas tendo ouvido dizer que ela se deitara ao rio, não acreditara os seus olhos. Ajuntou que se persuadira ser ela, vendo-a voltar o rosto, e apertar o pé a fugir por um outeirinho abaixo; e ele então a chamara pelo seu nome, e ela mais corria.
Acrescentou que deu quatro pinchos no declive da serra, e a pilhara, obrigando-a a confessar que era Balbina, e não tivera tempo de lhe ouvir mais nada, porque o cabo da escolta o chamara, ameaçando-o, por cuidar que ele perseguia a moça desatinadamente.
Ouvida a narrativa, João Moreira procurou o comandante do regimento, conversou largamente com ele, e obteve que o vinte e três da quarta o acompanhasse à serra.
Este homem, que assim se empenha em descobrir Balbina, quer o leitor saber quem é, donde vem, e que tem ele que ver com a pastora da serra do Laboreiro?
Chegaram ao romper da manhã do segundo dia de jornada aos montados de Entrime, e do píncaro mais levantado descortinaram em redor os rebanhos que iam subindo das póvoas escondidas nas gargantas da serra. Foram à fala com o primeiro pastor, que avistaram, e descobriram que havia em Castro Laboreiro uma rapariga ao serviço de um lavrador, vinda de longe, e chamada Francisca. Os sinais desta Francisca exactamente condiziam com os de Balbina. Devia ser ela. Dali baixaram ao outeiro onde o soldado a topara, e, por felicidade de todos, ao dobrarem o cotovelo de um barrocal, entreviram, através da ramagem de uns carvalhos, a pastora, sentada à borda de um regato, que devia ser um braço da ribeira das Várzeas [designação dada ao rio Trancoso na época], a qual por ali se infiltra na aridez daqueles algares.
- E ela mesma! - disse o José Torto.
- Fique você aqui - ordenou o brasileiro.
João Moreira acercou-se de Balbina, que, ao vê-lo, se erguera surpreendida e timorata.
- Bons-dias, menina - disse o irmão de Serafina.
- Deus lhe dê os mesmos - balbuciou a pastora.
- Venho buscá-la.
- Buscar-me?! - exclamou apavorada a moça, relanceando os olhos como quem procurava socorro.
- Parece - tornou João Moreira - que a minha velhice é bastante para que a moça me não tema. Se quer quem lhe acuda, está ali o nosso patrício José Torto. Não o vê acolá?
Balbina reparou, e disse:
- O senhor é de Esposende?!
- Sou.
- Nunca o vi; ele sei que é; mas o senhor...
- Sou de Esposende, sou irmão de Serafina, sou tio de Balbina.
A rapariga deixou cair o fuso da mão, e abriu a boca, tingindo-se de um escarlate precursor da perda dos sentidos.
O brasileiro prosseguiu:
- É teu tio que te procura. Não tenhas pejo de mim, nem remorso da tua desgraça. Tua mãe já deve ter-te perdoado. Beija a mão de teu tio. Serafina algumas vezes te falaria do irmão ingrato ou morto. Veio à hora que a Providência divina ordenou. Venho buscar-te, Balbina. Daqui irei a teu amo; ele mandará novo pastor ao seu rebanho, e tu não voltarás a casa dele.
Balbina ouvia; mas, querendo falar, sentia a língua soldada ao céu da boca.
- Então, minha sobrinha, responde: quem é teu amo? -volveu o brasileiro.
A moça disse o nome do dono do rebanho, e permaneceu no espasmo.
- Ensina-me o caminho mais perto - instou o tio.
A pastora deu alguns passos até assomar ao alto de um teso, donde se avistava o lugarejo, e disse:
- Aqui por este fojo abaixo vai mais depressa.
- Diz adeus às tuas cabrinhas, que eu volto já, filha.
E, acenando ao guia, desceram à aldeia, guiando-se pelo trilho dos rebanhos.
Correu assim grande parte do diálogo entre o brasileiro e o lavrador:
- Há quanto tempo é sua criada a moça que vossemecê diz chamar-se Francisca?
- Há quatro anos e três meses.
- Tem sido boa serva?
- Como não há outra em todo o Laboreiro; mas eu não sei donde ela é..
- Nem eu lho pergunto, amigo. A sua criada deixou de o ser. Vai retirar-se comigo. Mande vossemecê tomar conta do seu gado.
- Pois ela vai?! E vossemecê quem é?
- Sou o legítimo dono daquela rapariga.
- Dono? E ela quer ir?!... É o que vamos saber. Isso lavra mais fino cá, meu amiguinho. Eu vou lá à serra, e irá comigo um dos meus filhos.
- Pois, sim, convenho: isso é prova de que vossemecê é um amo honrado, e zelador de suas servas.
- Pudera, não! Eu sei cá se vossemecê a leva furtada!...
- Se a levasse furtada, não vinha aqui dizer-lhe que a furto. Acha vossemecê que um velho destes anos anda pela serra do Laboreiro a furtar pastoras?
- Enfim, nós lá vamos, e tenha paciência. Isto cá lavra mais fino.
O lavrador pegou da foice encavada, o filho pôs ao ombro uma caçadeira, e saíram, caminho do outeiro, em que Balbina, àquela hora, estava orando. Chegaram à beira dela.
- Francisca - disse o velho -, este homem diz que tu queres ir com ele. Queres ou não?
- Sim, senhor - respondeu a moça.
- É teu parente ou adrente?
- E meu tio.
- Tio! - exclamou o José Torto.
- Balbina! - disse João Moreira comovido. - Quis ouvir essas palavras do teu coração. Foi tua mãe que tas disse. Senhor lavrador, estão esclarecidas as dúvidas.
- Podemos ir?
- Ainda não - respondeu o lavrador -, vamos fazer contas. Eu tenho cá as soldadas todas desta rapariga.
- Aplique-as aos pobres da sua aldeia. Adeus, amigo! -disse o brasileiro.  
- Se nos não tornarmos a ver, até ao Dia do Juízo. O filho do montanhês sentou-se, atravessou a espingarda sobre as pernas, e baixou a cabeça a chorar.
João Moreira reparou; o velho também, e disse:
- O rapaz chora porque lhe tinha amor de dentro. Queria casar com a moça; e, se não é marido dela, foi porque a moça não quis, saberá vossemecê.
- Era outro o seu destino - disse o brasileiro, e voltando-se à sobrinha perguntou:
- Amavas este moço, Balbina?
Balbina abaixou os olhos, e disse:
- Não, senhor: era amiga dele, porque me tratava bem.
- Era outro o seu destino... - repetiu o tio.
- Vamos, que o Sol aperta... Acharei nalguma destas povoações quem me venda uma cavalgadura?
- Eu não vendo; - disse o lavrador - mas aí está uma mula, sendo necessária. Vão vossemecês descendo até à estrada,, que eu lha mando sair à bouça da tia Andresa. A rapariga sabe onde é.
- Obrigado, bom velho. Eu me farei lembrado pelo seu favor - concluiu o brasileiro.
E apartaram-se.
O ancião entregou a guarda do rebanho ao filho, dizendo-lhe:
- Não fiques agora aí a chorar, Bernardo! Um homem é um homem!
O moço empinou-se no viso de uma colina, e viu desaparecer a pastora. Que alma de poeta sofreu já ai cruz de saudade tão dolorosa? Que lágrimas se secaram naquelas penedias broncas! O desventurado lançou-se por terra, e escondeu a face nas urzes. As tuas lágrimas, ó traspassada alma, podia vê-las o Céu, que eram puras!
Eles lá vão.
Ninguém mais falará de ti, pobre solitário das montanhas!
Vai chorar à margem desses regatos! As flores silvestres te dirão que as lágrimas de Balbina as fizeram reviver em suas hastes ressequidas. Afaga esse cão que lhe lambia as mãos. Aí tens a rês que se aninhava no regaço dela. Longo tempo chorarás, amante cristão; e o suicídio nunca te há-de lembrar; a luz do facho civilizador nunca te mostrará o boqueirão da caverna onde se abismam os cobardes!
Ela lá vai!... Se alguma vez a vires, dirás contigo:  

- Parecia-se com esta fidalga uma pastorinha que eu amei, e ainda agora amo, nas minhas serras do Laboreiro!"

Extraído de: CASTELO BRANCO, Camilo (1863) - Conto "Tramóias d' Esta Vida" in Noites de Lamego. LIvraria de António Maria Ferreira, LIsboa.





terça-feira, 24 de junho de 2014

Os primórdios do Convento de Paderne

Convento de Paderne no início do século XX

Houve em Paderne, em tempos um mosteiro de cónegos regrantes de Santo Agostinho, fundado pela condessa Dona Paterna, viúva de D. Hermenegildo, conde de Tui, numa sua grandiosa quinta, que, com outras propriedades e aldeias aqui possuía. Fez esta fundação, para aqui se recolher com as suas quatro filhas e outras nobres donzelas de Tui, que as quiseram acompanhar. Antes de adotarem a regra de Santo Agostinho, este convento era beneditino.
Em 6 de Agosto de 1130, estando todas as obras terminadas, foi sagrada a igreja e o mosteiro por D. Payo, bispo de Tui, que, também no mesmo dia o dedicou ao Divino Salvador. Mandou para confessores e capelães das cónegas, sete clérigos de “boa vida”. Os mesmos, em 1138, fizeram-se regulares, vivendo em comunidade.
A condessa  mandou-lhes fazer claustros, dormitórios, celas e mais oficinas, do lado a sul da igreja, que os dividia das freiras, que ficavam do lado norte. A fundadora, a condessa D. Paterna, foi a primeira prioreza das freiras, e D. Ramiro Paes, o primeiro prior dos religiosos.
A povoação tomou o nome de Paterna (que depois evoluiu para Paderne) porque ao convento se dava o nome de mosteiro da Paterna.
A condessa faleceu a 6 de Janeiro de 1140 e foi sepultada numa capela que estava ao lado do Evangelho, na capela-mor (a qual depois serviu de sacristia aos cónegos) com uma figura sobre a tampa em meio relevo. Junto a ela estava também em meio relevo, a estátua de um guerreiro que era provavelmente o conde D. Hermenegildo.
Sucedeu-lhe no priorado, a sua filha D. Elvira, à qual D. Afonso Henriques doou o couto de Paderne em 1141 com a jurisdição cível que nele tinha. Nesta doação, diz o monarca, que lhe fizera pelos bons serviços  que as freiras lhe tinham feito quando ele estava sitiando Castro Laboreiro mandando-lhe mantimentos e alguns cavalos, sendo um deles muito formoso para o serviço do próprio rei.
Sabe-se que já durante o século XIII, o convento de Paderne adota a regra de Santo Agostinho. Nem os próprios cronistas dos crúzios podem saber, apesar de todas as investigações, quando deixaram de haver freiras neste mosteiro. Sabe-se apenas que em 1248 já aqui só havia frades, tendo então por Prior D. João Peres, grande partidário de D. Afonso Henriques. Por isso, este rei fez ao convento grandes doações e lhes deu grandes privilégios nesse ano.

Este mesmo Prior, D. João Peres, sendo a igreja velha muito pequena, a fez demolir em 1264, construindo a atual que foi sagrada por D. Egídio, bispo de Tui, em 6 de Agosto desse mesmo ano.


Informações extraídas de: 
- PINHO LEAL, Augusto Soares A. B. (1875) - Portugal Antigo e Moderno (Volume VI). Livraria Editora de Mattos Moreira & Companhia, Lisboa.

sexta-feira, 20 de junho de 2014

A Misericórdia de Melgaço e a Procissão dos Penitentes no século XVI e XVII



Uma das principais cerimónias organizada pela Misericórdia de Melgaço em tempo de Páscoa era a procissão da Quinta Feira Santa, dos Penitentes ou dos Fogaréus, largamente difundida nos séculos XVI e XVII. Com antecedência, os irmãos reuniam-se e distribuíam os principais lugares da procissão e tomavam medidas para a sua realização. Na véspera, ornavam-se a igreja e as capelas da vila.
No dia, no final da tarde os "salta na criba", também designados de farricocos, andavam pelas ruas fazendo barulho com as matracas. Este ritual tem uma origem bastante antiga. Em tempos antigos, conforme a mentalidade de então, havia pessoas que percorriam as ruas chamando os pecadores públicos à sua reintegração na Igreja, depois de arrependidos e perdoados. Era a forma ao tempo, de entender a misericórdia para com os pecadores, aos quais tinha sido aplicada a indulgência. Actualmente, atribui-se-lhe um significado substitutivo e residual, de chamamento dos Irmãos da Misericórdia para a procissão da noite. O uso das ruidosas «matracas» para este efeito foi instituído em anos remotos para substituir o toque dos sinos, que nos dias maiores da Semana Santa ficavam silenciosos.
Às 20 horas, saía da igreja a procissão com todos os irmãos da Misericórdia, uns de opa preta, outros de fato preto em símbolo de luto. À frente ia o escrivão com a bandeira da Confraria, ladeado por dois mesários, cada um com tocha acesa ou com pinhas a arder (daí chamar-se procissão dos Fogaréus). Atrás vinha o provedor do ano findo com o crucifixo (quando estava ausente ou não podia comparecer, era o provedor em exercício), ladeado por dois irmãos com tochas acesas. Depois seguia o andor do "Ecce Homo" acompanhado por duas ou quatro lanternas acesas. Os penitentes entrecortavam as insígnías da Paixão do Senhor, que eram conduzidas por irmãos da Misericórdia entre a bandeira e o crucifixo. Os irmãos envergando opas e portando tochas acesas, contornavam o centro da vila, onde se juntavam encabuçados, depois de andarem pelas ruas do percurso e muito à frente da procissão cantando, em voz de falsete, os mexericos e segredos da terra de um ano inteiro. Caminhavam a seguir os capelães da Misericórdia, de sobrepeliz e atrás, de fato preto, os irmãos que não tinham capa e os homens estranhos à confraria, segurando todos eles velas na mão direita. Os padres rezavam a ladainha de todos os santos e o grupo ia respondendo. Durante o caminho e enquanto durava a procissão, os penitentes martirizavam-se. As mulheres, proíbidas de participar nestes ajuntamentos nocturnos, ficavam em casa, acendendo velas à passagem do cortejo. A procissão entrava primeiramente na capela de Santo António do Campo da Feira de Dentro, onde estavam dois irmãos. Depois seguia para a igreja de Nossa Senhora da Orada, onde mais dois irmãos pediam. Regressava, passando pela Matriz, para visitarem o Santíssimo Sacramento, e terminava na Misericórdia. O provedor mandava lavar e tratar com mezinhas as feridas dos penitentes, confortando-as com vinho, marmeladas e outros doces. A cerimónia terminava com o proferimento de um sermão.

Informações extraídas de:
- ARAÚJO, Maria Marta Lobo (2005) - Pedir para distribuir: Os peditórios e os mamposteiros da Misericórdia de Melgaço na época moderna. Boletim Cultural de Melgaço, Câmara Municipal de Melgaço;
- www.monumentos.pt.

domingo, 15 de junho de 2014

A vida nas aldeias raianas de Melgaço na reportagem "Viagem pela raia" do jornal Público

Posto da Guarda Fiscal de Cevide em 1942
(Foto publicada no grupo do FB "Amigos de Cevide)

Na edição de hoje do jornal PÚBLICO, vem publicada uma reportagem intitulada "Viagem pela raia". Os repórteres visitam comunidades fronteiriças portuguesas e procuram estórias de antigamente e testemunhos de como é viver na raia hoje. Da reportagem, retirei alguns extratos sobre a vida na fronteira, ontem e hoje, na nossa terra falados na 1ª pessoa...
"Com o fim da fronteira entre Portugal e Espanha, esfumaram-se guardas, despachantes, funcionários de casas de câmbio e suas famílias. As escolas perderam alunos; os comércios, fregueses; os centros de saúde, utentes. Desapareceu o contrabando e a candonga. Houve quem alertasse para o risco de ver “uma linha de vida transformar-se numa faixa desertada”. Será tudo culpa de Schengen? O que é a fronteira agora?
Na freguesia de São Cristóval, em Melgaço, perto do marco de fronteira número 1, Lurdes Durães podia ficar dias inteiros a contar estórias. A mulher, de ágil memória nos seus 73 anos, costuma dizer que nasceu no meio do contrabando: “Depois da guerra civil, aos espanhóis fazia falta sabão, unto, toucinho e outras coisas de comer.” O pai dela “tinha um comerciozito a dois ou três quilómetros”. A mãe dela via espanhóis a entrar e a sair de uma loja ao lado de casa. Saltavam as pedras do rio Trancoso e subiam pelos terrenos dos avós de Lurdes. Era ela ainda bebé quando a mãe arrumou a mobília num canto da sala, de uma tábua fez um balcão, mandou vir “unto, toucinho, sabão — as coisas que os espanhóis vinham buscar” — e pôs-se a vender.
A ninguém causava remorso o contrabando. Aquilo até podia ser crime, mas não seria pecado, dizia-se em Melgaço. Quem era o lesado? O Estado. O que era o Estado? Ali não se via Estado a não ser na sua forma repressiva. Estava Lurdes casada havia um mês quando o marido lhe disse:
— Temos de ir a Ourense!
— Agora, nesta hora, que estou a fazer o comer?
— Já vimos! Vamos e vimos depressa.
Puxou-a da cozinha para a sala, para que ninguém ouvisse o que tinha para lhe dizer, nem visse o que tinha para lhe mostrar.
— Tens de levar este ouro.
— Como vou levar isso tudo?
— Ao pescoço.
Eram muitos fios de ouro. Tantos que Lurdes nem sabe. Anuiu, um tanto assustada. Colocou “para aí 20 ou 30 fios” ao pescoço e meteu os restantes na carteira. Estava uma verdadeira minhota. Dir-se-ia prontinha para ir às festas de Nossa Senhora da Agonia, em Viana do Castelo.
— E se nos prendem? — perguntou.
— Não! O ouro é teu. Ninguém te pode proibir de o levar. Podem assaltar a casa. Andas sempre com ele.
“Eram as nossas desculpas”, conta ela, sentada na cozinha da casa que ainda agora habita. O apurado conhecimento do terreno e o suborno pago aos guardas não explicam tudo. Toda a gente se conhecia. No contrabando andavam familiares, amigos ou vizinhos dos guardas. Nas décadas de 1960 e 70, alguns, como Lurdes e o marido, até misturavam contrabando com auxílio à emigração clandestina. “Tínhamos esconderijo no carro e levávamos uns quilinhos de café.”
O 25 de Abril de 1974 não acabou com o contrabando. Lurdes e o marido ainda fizeram muito negócio depois da Revolução. Levavam louça, cerâmica. Traziam televisores, aparelhagens. Tanto susto apanhou. Tantas vezes se sentiu à beirinha do fim. E, mesmo assim, tem pena que tudo tenha acabado. “Devia voltar outra vez. As aldeias estão a ficar sem gente. A gente das cidades não quer vir para as aldeias. O que vem fazer? Os nossos novos têm de emigrar ou de ir para as cidades…”
“A fronteira hoje separa muito pouco”, diz Manoel Baptista, presidente da Câmara de Melgaço. É um ponto de ligação entre povos que se encontram para as coisas simples da vida, como tomar um copo ou comer, ou fazer projectos comuns.” Ali, por exemplo, aliaram-se para limpar as margens do rio Trancoso e para intervir no abastecimento de água em Castro Laboreiro.
Quem sabe como se relacionarão as novas gerações? Ainda não há os transportes transfronteiriços de que tanto se fala. Quem cresce na fronteira já não tem de contentar-se com os canais de televisão espanhóis, como acontecia em muitas terras quando Portugal e Espanha entraram na União. Muita gente sai para estudar. As redes de sociabilidade dos jovens “vão sendo estruturadas cada vez mais longe da fronteira e os referentes culturais são cada vez mais distintos”, observou Eduarda Rovisco ao debruçar-se sobre a raia em Idanha-a-Nova e Castelo Branco.
Não é sempre assim. Acontece viver-se quase em cima da fronteira. Ao domingo à tarde, idosos de São Gregório, na zona mais a norte de Portugal, vão aos cafés do outro lado jogar às cartas. E é espanhol o padeiro que a cada manhã lhes entrega o pão. Mesmo assim, houve quem barafustasse ao saber que o Governo vendeu a um espanhol, por ajuste directo, a antiga caseta da Guarda Fiscal e 60 metros quadrados de terreno. 
Que dizer de tudo isto? Talvez seja preciso recomeçar viagem, como escreveu Saramago no final da sua: “É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na Primavera o que se vira no Verão, ver de dia o que se viu de noite, com sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que nunca mudou de lugar, a sombra que aqui não estava.”     

Extraído de: Reportagem "Viagem pela raia" da autoria de Ana Cristina Pereira e Adriano Miranda publicada na edição de 15 de Junho de 2014 do jornal "Público".

A revolta da Abrilada (1824) e a construção da Capela do Santo Preto (Rouças - Melgaço))

Capela do Santo Preto (Roussas - Melgaço)

Quem sobe para Roussas pela estrada, depara com uma velha capelinha, situada debaixo duma curva do Coto do Preto e recatada do olhar indiscreto do caminhante.
Para a contemplarmos melhor, temos de descer por um caminho, que ladeia um pequeno muro no meio do qual se encontram uns degraus. Subindo-os fica-se defronte da capela de Nossa Senhora da Conceição ou do Santo Preto, como é vulgarmente conhecida.
À nossa direita, está um outro muro, que veda o rossio de uma modesta casa rústica. Este curioso conjunto resiste heróico às garras demolidoras do tempo.
Vasculhando os artigos e livros de Augusto César Esteves, descobre-se um interessante apontamento sobre esta capela. O autor relaciona a origem desta capela com um episódio da História de Portugal conhecido como a Abrilada que ocorreu em Abril de 1824. Tratou-se de uma revolta liderada por D. Miguel e tinha como objetivo derrubar o regime liberal bem como o rei D. João VI e voltar a instaurar uma monarquia absolutista em Portugal.
A este propósito, Augusto César Esteves escreve o seguinte: “A este movimento ficou-se a chamar-se Abrilada e embora o não pareça, tão longe da terra onde aconteceu a revolta, em Melgaço alguém se preocupou com a tentativa de deposição do rei (...) Podem mesmo outros apresentar a vida nesta terra como decorrendo em calmaria não revolta pelas paixões humanas e até alheios à política geral. Mas um facto existe, contudo, demonstrativo da Abrilada ter incutido receios no ânimo dos melgacenses.
É o caso da construção da capela de Nossa Senhora da Conceição no sítio do Coto do Preto, na freguesia de Roussas. É uma capela edificada pelo Prior de Castro Laboreiro, Reverendo João Manuel de Sousa e Silva, natural daquele lugar.”
Na escritura lavrada em 12 de Julho de 1824 pode ler-se: “... com a obrigação do doante (o reverendo) satisfazer cada ano enquanto vivo, uma missa pelo bem de Sua Magestade Fidelíssima que Deus guarde e uma outra missa pela dinastia da Sereníssima Casa de Bragança e três conforme a tenção do doante...”
E por isso se vê também, como o bom do padre era homem inteligente, pois soube achar um meio consentâneo com o seu ofício de cura de almas sem deixar de lado a sua fé política de simpatia para com o rei D. João VI.

Desta forma, a capela do Santo Preto foi mandada construir pelo dito reverendo solicitando a proteção divina para o rei e para o regime político liberal. Contudo, as suas preces não seriam satisfeitas durante muito tempo. Dois anos mais tarde, em 1826, o rei D. João VI viria a falecer e iria aqui começar uma crise sucessória. O herdeiro do trono era D. Pedro, ao tempo imperador do Brasil, mais tarde D. Pedro IV de Portugal. Estes acontecimentos conduziriam a uma uma guerra civil que iriam por o país a ferro e fogo...


Extraído de: DOMINGUES, Maria de Jesus & SILVA, Armando Barreiros (1989) - Heráldica Melgacense - Associativa, de Domínio e Eclesiástica. Cadernos da Câmara Municipal de Melgaço (nº5), CMM, Melgaço.

terça-feira, 10 de junho de 2014

Cubalhão (Melgaço), por volta de 1904 - Cantiga popular da tradição oral

Recanto de Cubalhão (Melgaço)
(Foto de Elcorty)

Trata-se de uma cantiga popular recolhida em Cubalhão (Melgaço) por volta de 1904. Numa das suas visitas à nossa terra, o investigador José Leite de Vasconcelos, de passagem por Cubalhão ouviu esta cantiga da boca de umas mulheres e registou-a no seu caderno de apontamentos:

"Una belha qu’eu arrinjei,
Q’ até já usava touca,
Era das pernas caneja
E tinha um tanto de mouca.
Credo, cruzes, canhota!
Era o que me faltaba!
Casar-me c’una tabaqueira,
Que nim pa rapé ganhaba.
Eu sô binho, tu ês auga,
Ó pê de mim, tu que ês?
Já tês oubisto dijer
Que ninguém xiquêr l’imbarra nos pês.
É ditado bem antigo,
Sempre tenho oubisto dijer:
-- A fazenda qu’anda d’arrasto
Já pouco balor pode ter."

Extraído de: VASCONCELLOS, José Leite de (1928) - Linguagem Popular de Castro Laboreiro.  in Opúsculos, Vol. II – Dialectologia (parte I),Imprensa da Universidade, Coimbra.

sexta-feira, 6 de junho de 2014

O edifício do antigo Hospital da Misericórdia de Melgaço: referências históricas

Edifício do antigo Hospital da Misericórdia de Melgaço

Em 1860, o Provedor Frei António Joaquim de Santa Isabel Monteiro teve a ideia de construir um hospital, nomeando-se uma comissão composta por cinco elementos para fazer cumprir e custear as despesas. A ideia foi, no entanto, abandonada.
Mais tarde, em 1863, o Frei António voltou à carga e reuniu a Mesa com o objectivo de fixar as jóias a pagar pelos irmãos aquando da sua entrada na confraria e também para que fosse escolhida uma comissão executiva a favor do projectado hospital. Em 1864, a 12 Março, é conhecida essa comissão, sendo provedor José Cândido Gomes de Abreu, comerciante da terra, com grande espírito empreendedor, que logo começou a advogar a construção do hospital escrevendo a amigos, conhecidos, deputados do Círculo e a todos os que pudessem apoiar a causa.
Em 1867, o Governador Civil de Viana do Castelo envia alvará ao administrador do concelho de Melgaço autorizando a Misericórdia a incluir no seu orçamento 10% das receitas para a construção e manutenção do hospital, devendo também reorganizar e reforçar a comissão. Era ainda pedida uma relação dos donativos até então oferecidos e das contas da Santa Casa. Em 1872, a 3 Abril, o Provedor José Cândido propôs aos irmãos da Mesa um voto de louvor ao "Exmº Snr. António Correia Caldeira, representante do Círculo de eleitores por en catorze de março findo ter representado na Câmara dos Senhores Deputados da Nação um projecto de lei para à Misericórdia ser concedido gratuitamente um terreno pertencente ao Ministério da Guerra para nele se construir o Hospital da Caridade.
Em 1873, a 16 Julho, concretiza-se a assinatura da escritura de doação do terreno no interior da praça da vila pelo Ministério da Guerra. Em 1874, a fim de obter fundos para as obras, José Cândido levou os irmãos a reduzirem o número de missas fixado para os sufrágios pelos irmãos falecidos. Em 1875, inicia-se a construção do hospital, sendo Provedor José Cândido Gomes d'Abreu. Na cartela alusiva ao início da construção da fachada lateral direita lê-se:

"FOI LANÇADA A PRIMEIRA PEDRA PARA ESTE EDIFÍCIO EM (?) DE FEVEREIRO DE 1876, SENDO PROVEDOR DA MISERICORDIA JOSE CANDIDO GOMES D'ABREU."

Como a enfermagem era exercida por religiosos, o Pe. Francisco Castro, natural da freguesia de São Paio e abade de Riba do Mouro, pediu ao provedor para mandar fazer dentro do hospital uma capelinha privativa para o pessoal e doentes internos, pagando ele todas as despesas da obra. Devido a este gesto foi nomeado irmão da Confraria em 2 Janeiro 1893, ficando isento do pagamento da jóia de entrada. Em 1892, a 16 Outubro, é feita a inauguração do Hospital da Caridade, com mais de 300 pessoas de todo o concelho e vizinhos percorrendo demoradamente as enfermarias e outras dependências.
Em 1893, a 16 Abril, é inaugurada a capela, com celebração da primeira missa pelas 6H00 da manhã. Mais tarde, em 1944, em Outubro, as freiras que prestavam serviço no hospital queixavam-se à Mesa de não terem a assistência religiosa estabelecida no contrato. Para atender à reclamação, estabeleceu-se um contrato com o novo capelão Pe. Justino Domingues para que, além das missas que alternadamente eram celebradas na Igreja da Misericórdia e no Convento, fosse também dita na capela do hospital missa num dos dias da semana, pagando-se o vencimento de 1.200$000 anuais divididos em quatro prestações. Ficava ainda responsável pelas cerimónias da Semana Santa e a Festa de Nossa Senhora da Misericórdia. Por essa altura, é feita a inauguração da enfermaria de partos.
Por volta de 1944 ou 1945, é feita a realização da primeira e segunda Festa de Oferendas para a Santa Casa, tendo-se comprado roupas, louças, móveis, utensílios, aparelho de radiotermia e raios ultra-violetas.
Em 1948, a 10 Outubro, é feita inauguração das instalações de Raio X, oferecidas por um grupo de amigos da Misericórdia residentes no Brasil. Em 1949, é criada uma enfermaria para tuberculosos. Em 1954, a Misericórdia celebra acordo com Instituto de Assistência Nacional aos Tuberculosos com o objectivo de criar em Melgaço uma "consulta dispensário", a fim de poder dar apoio médico aos tuberculosos. Em 1960, é feita a compra de ambulância, a primeira em Melgaço. Em 1961, tendo deixado de haver internamento de tuberculosos na Quinta de Eiró, os idosos passam do edifício do Hospital para aquela quinta. Nesta data, o hospital tinha apenas três médicos. Em 1962, no mês de Setembro, é publicada uma circular da comissão Inter-Hospitalar do Porto informando que o Instituto da Assistência à Família iria fornecer insulina, seringas e o pagamento da aplicação de injecções aos diabetes mais necessitados e ainda um subsídio para a sopa dos pobres.
Em 1975, após nacionalização dos bens, a Misericórdia perde o hospital. 

Informações recolhidas em:
- ESTEVES, Augusto César (2003) Obras Completas, vol. 1, tomo 1, Melgaço;
- ROCHA, J. Marques (1993), Melgaço de ontem e de hoje, Braga, 1993;
- Melgaço, Revista Municipal, nº 35, Abril 2005.
- www. monumentos.pt.