domingo, 15 de junho de 2014

A vida nas aldeias raianas de Melgaço na reportagem "Viagem pela raia" do jornal Público

Posto da Guarda Fiscal de Cevide em 1942
(Foto publicada no grupo do FB "Amigos de Cevide)

Na edição de hoje do jornal PÚBLICO, vem publicada uma reportagem intitulada "Viagem pela raia". Os repórteres visitam comunidades fronteiriças portuguesas e procuram estórias de antigamente e testemunhos de como é viver na raia hoje. Da reportagem, retirei alguns extratos sobre a vida na fronteira, ontem e hoje, na nossa terra falados na 1ª pessoa...
"Com o fim da fronteira entre Portugal e Espanha, esfumaram-se guardas, despachantes, funcionários de casas de câmbio e suas famílias. As escolas perderam alunos; os comércios, fregueses; os centros de saúde, utentes. Desapareceu o contrabando e a candonga. Houve quem alertasse para o risco de ver “uma linha de vida transformar-se numa faixa desertada”. Será tudo culpa de Schengen? O que é a fronteira agora?
Na freguesia de São Cristóval, em Melgaço, perto do marco de fronteira número 1, Lurdes Durães podia ficar dias inteiros a contar estórias. A mulher, de ágil memória nos seus 73 anos, costuma dizer que nasceu no meio do contrabando: “Depois da guerra civil, aos espanhóis fazia falta sabão, unto, toucinho e outras coisas de comer.” O pai dela “tinha um comerciozito a dois ou três quilómetros”. A mãe dela via espanhóis a entrar e a sair de uma loja ao lado de casa. Saltavam as pedras do rio Trancoso e subiam pelos terrenos dos avós de Lurdes. Era ela ainda bebé quando a mãe arrumou a mobília num canto da sala, de uma tábua fez um balcão, mandou vir “unto, toucinho, sabão — as coisas que os espanhóis vinham buscar” — e pôs-se a vender.
A ninguém causava remorso o contrabando. Aquilo até podia ser crime, mas não seria pecado, dizia-se em Melgaço. Quem era o lesado? O Estado. O que era o Estado? Ali não se via Estado a não ser na sua forma repressiva. Estava Lurdes casada havia um mês quando o marido lhe disse:
— Temos de ir a Ourense!
— Agora, nesta hora, que estou a fazer o comer?
— Já vimos! Vamos e vimos depressa.
Puxou-a da cozinha para a sala, para que ninguém ouvisse o que tinha para lhe dizer, nem visse o que tinha para lhe mostrar.
— Tens de levar este ouro.
— Como vou levar isso tudo?
— Ao pescoço.
Eram muitos fios de ouro. Tantos que Lurdes nem sabe. Anuiu, um tanto assustada. Colocou “para aí 20 ou 30 fios” ao pescoço e meteu os restantes na carteira. Estava uma verdadeira minhota. Dir-se-ia prontinha para ir às festas de Nossa Senhora da Agonia, em Viana do Castelo.
— E se nos prendem? — perguntou.
— Não! O ouro é teu. Ninguém te pode proibir de o levar. Podem assaltar a casa. Andas sempre com ele.
“Eram as nossas desculpas”, conta ela, sentada na cozinha da casa que ainda agora habita. O apurado conhecimento do terreno e o suborno pago aos guardas não explicam tudo. Toda a gente se conhecia. No contrabando andavam familiares, amigos ou vizinhos dos guardas. Nas décadas de 1960 e 70, alguns, como Lurdes e o marido, até misturavam contrabando com auxílio à emigração clandestina. “Tínhamos esconderijo no carro e levávamos uns quilinhos de café.”
O 25 de Abril de 1974 não acabou com o contrabando. Lurdes e o marido ainda fizeram muito negócio depois da Revolução. Levavam louça, cerâmica. Traziam televisores, aparelhagens. Tanto susto apanhou. Tantas vezes se sentiu à beirinha do fim. E, mesmo assim, tem pena que tudo tenha acabado. “Devia voltar outra vez. As aldeias estão a ficar sem gente. A gente das cidades não quer vir para as aldeias. O que vem fazer? Os nossos novos têm de emigrar ou de ir para as cidades…”
“A fronteira hoje separa muito pouco”, diz Manoel Baptista, presidente da Câmara de Melgaço. É um ponto de ligação entre povos que se encontram para as coisas simples da vida, como tomar um copo ou comer, ou fazer projectos comuns.” Ali, por exemplo, aliaram-se para limpar as margens do rio Trancoso e para intervir no abastecimento de água em Castro Laboreiro.
Quem sabe como se relacionarão as novas gerações? Ainda não há os transportes transfronteiriços de que tanto se fala. Quem cresce na fronteira já não tem de contentar-se com os canais de televisão espanhóis, como acontecia em muitas terras quando Portugal e Espanha entraram na União. Muita gente sai para estudar. As redes de sociabilidade dos jovens “vão sendo estruturadas cada vez mais longe da fronteira e os referentes culturais são cada vez mais distintos”, observou Eduarda Rovisco ao debruçar-se sobre a raia em Idanha-a-Nova e Castelo Branco.
Não é sempre assim. Acontece viver-se quase em cima da fronteira. Ao domingo à tarde, idosos de São Gregório, na zona mais a norte de Portugal, vão aos cafés do outro lado jogar às cartas. E é espanhol o padeiro que a cada manhã lhes entrega o pão. Mesmo assim, houve quem barafustasse ao saber que o Governo vendeu a um espanhol, por ajuste directo, a antiga caseta da Guarda Fiscal e 60 metros quadrados de terreno. 
Que dizer de tudo isto? Talvez seja preciso recomeçar viagem, como escreveu Saramago no final da sua: “É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na Primavera o que se vira no Verão, ver de dia o que se viu de noite, com sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que nunca mudou de lugar, a sombra que aqui não estava.”     

Extraído de: Reportagem "Viagem pela raia" da autoria de Ana Cristina Pereira e Adriano Miranda publicada na edição de 15 de Junho de 2014 do jornal "Público".

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