quarta-feira, 30 de julho de 2014

A terrível epidemia de tifo em Castro Laboreiro (1913 - 1914)

Equipa da Cruz Vermelha em Castro Laboreiro em 1914

Há cerca de 100 anos atrás, Castro Laboreiro foi martirizada por uma terrível epidemia de tifo de tipo exantemático. Esta doença provocou em cerca de seis meses 76 mortes numa terra que já tinha sido flagelada em 1897 por uma outra epidemia. 
Os primeiros casos de tifo aconteceram nos últimos meses de 1913. A doença rapidamente se propagou na freguesia graças à facilidade de contágio e precárias condições de higiene. A este respeito diga-se que o tifo exantemático, provocado pela Rickettsia prowazekii, que é um agente patogénico altamente contagioso.
Durante vários meses, as populações viram-se completamente abandonadas à sua sorte sem qualquer tipo de assistência médica. Assim se explica o elevado número de mortos registados nesta epidemia.  
Na época, esse flagelo até foi um assunto falado na Câmara dos Deputados em Lisboa. Conta-se que em Janeiro de 1914, um padre chamado Fontinha alerta os deputados que lavrava em Castro Laboreiro uma epidemia terrível que já tinha provocado quatro mortos até àquele momento (informação muito longe do número real). Mas não foi suficiente para comover as galerias nem os ministros, que passaram rapidamente ao assunto seguinte.
Após meses de desespero, apenas em finais de Janeiro de 1914 é que chega a Castro Laboreiro uma equipa médica da Cruz Vermelha de Viana do Castelo para ajudar a combater esta epidemia. Já tinham morrido cerca de 60 pessoas até esse momento.
A equipa da Cruz Vermelha partiu de Viana às 8 horas do dia 26 de Janeiro e era composta apenas pelas ambulâncias e o pessoal médico considerado indispensável para as primeiras intervenções junto dos casos mais aflitivos. De comboio seguiu o restante pessoal, bem como todos os materiais e equipamentos que permitiriam montar um hospital de emergência na região. Não foi fácil o acesso à freguesia assediada pela epidemia, como refere o relatório elaborado pela Cruz Vermelha “Depois de uma pequena refeição tomada na vila de Melgaço, todo o pessoal que de Viana partiu em automóvel se pôs em marcha para Castro Laboreiro, onde chegou às 20 horas e trinta minutos extenuadíssimo, tendo atravessado uma extensão de 18 Km’s em manhosas cavalgaduras, por caminhos escabrosos e cheios de despenhadeiros”. Assim se justifica que para  vencer um percurso de 145 Km’s entre Viana e Castro Laboreiro fossem necessárias 12 horas.
Na região, à chegada, a coluna de socorro é recebida com manifestações de apreço e viva esperança, na expetativa de que se poria fim a uma epidemia que dizimava em média 2 a 3 pessoas por casa. Porém, a comitiva expedicionária sabia o quanto seria difícil a sua tarefa, já que depararam com um quadro demasiado desolador, assim definido no relatório da Cruz Vermelha: “A freguesia de Castro Laboreiro tem, segundo informações dadas pelo pároco, cinquenta quilómetros de área, dos quais quarenta são de raia seca, confinando com 11 freguesias espanholas e 3 portuguesas. Tem 3500 habitantes mas habitualmente só 2500 residem lá. Os restantes emigram para vários pontos em busca de trabalho. Este canto de Portugal é tudo quanto há de improdutivo, e a sua população é da mais atrasada e abandonada. A região somente produz centeio e batatas. O povo desconhece os mais rudimentares princípios de higiene, raríssimas vezes se lava, vive em promiscuidade com os animais em choupanas cobertas de colmo, sem compartimentos, todo o dia cheias dum espesso fumo, sob uma atmosfera irrespirável e dorme vestido num misto de idades e sexos sobre palha deitada numa espécie de masseira. As pessoas mais ilustradas da freguesia – o professor e quatro padres – em pouco desmancham este conjunto lastimoso.”
Apesar deste quadro dramático, a equipa da Cruz Vermelha não esmoreceu. Urgia fazer o necessário para controlar a epidemia e estancar o número assustador de mortes diárias. Assim, no dia imediato ao da sua chegada, logo pela manhã, acompanhados pelo professor da freguesia (Prof. Mathias de Sousa Lobato, conhecido como o Leão das Montanhas) a servir de guia, partiram na direção dos diversos lugares onde se conhecia o maior número de enfermos, tendo para o efeito que palmilhar por caminhos íngremes com afastamento de até cerca de 15 Km’s. E as piores previsões foram na íntegra confirmadas: dos 60 doentes visitados, 35 estavam atacados de febre tifóide, a quem foram ministrados os primeiros tratamentos. Porém a erradicação do mal passava por outra medidas, especialmente no isolamento dos doentes e desinfecção das suas pobres habitações. Tarefa nada fácil, dadas as condições de profunda miséria em que as populações viviam e a falta de um espaço condigno que pudesse servir temporariamente de hospital.
Desde tempos imemoriais que as populações portuguesas sempre dispuseram de condições de culto suficientemente condignas. Castro Laboreiro também não fugia à regra e no lugar das Cainheiras contava com a capela da Boavista. Apesar da sua área escassa, aí propôs a Cruz Vermelha a instalação do seu primeiro hospital, dado ainda não ser possível instalar o hospital de campo que se aguardava que chegasse ao local. Não foi fácil vencer a resistência do povo, pois considerava a instalação do hospital na capela uma ofensa a Deus. Convenceu-os o argumento de que até a Virgem da capela abençoaria os doentes, motivo para que a cura fosse mais célere. Não deu espaço para uma grande enfermaria, mas sempre foi possível instalar sete dos doentes mais graves. Diz-nos o relatório da Cruz Vermelha que os doentes ficaram sob estreita vigilância, mas com grande sacrifício de quem por eles velava, como menciona o mesmo “ficaram velando estes doentes, o enfermeiro de 1ª classe Alexandre Ramos, maqueiros José Francisco Barbosa e Alvares dos Reis, serventes Hermenegildo Gonçalves Viana e Carlos Baptista Viana, que na primeira noite de serviço tiveram por dormitório um palheiro próximo e para calcular o frio que passaram basta dizer-se que uma só manta era o agasalho de cada um. Estas mantas, as únicas que por casualidade existiam à venda um duas lojas de Castro Laboreiro, custaram 9 escudos. Numa venda próxima à capela-hospital, comeu o pessoal duas péssimas refeições pelo convidativo preço de 6 escudos.”
O tempo, com baixíssimas temperaturas, era o maior inimigo de quem no terreno tudo fazia para controlar a peste instalada e, ao fim de cinco dias teve que deslocar os doentes da capela-hospital para que estes não morressem de frio. Em casa, apesar das precárias condições, sempre estariam mais acautelados, até porque o seu estado de saúde, mercê dos tratamentos ministrados, era já satisfatórios.
Entretanto, na vila de Melgaço, também já se encontrava todo o material que permitiria a instalação de um hospital de campanha em Castro Laboreiro. A epidemia estava longe de ser vencida...


Leia a segunda parte deste artigo em AQUI - PARTE II

Informações extraídas de:
 Ilustração Catholica, nº 47, de 23 de Maio de 1914 Ano II, Braga;
- MARQUES, Ricardo (2013) - Portugal no ano da Grande Guerra, Oficina do livro, Lisboa.
- MEIRA, Gonçalo Fagundes (2013) - A cruz vermelha de Viana e a epidemia de Castro Laboreiro em 1914 in: Cadernos Vianenses, Tomo 47, Câmara Muniicipal de Viana do Castelo, Viana do Castelo;
- SEQUEIRA, José de Magalhães (1918) - Higiene e Profilaxia do Tifo Exantemático. tese de Doutoramento apresentada à Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. Tipographia Mendonça, Porto.

sexta-feira, 25 de julho de 2014

A habitação tradicional de Castro Laboreiro: algumas notas

Em Castro Laboreiro, noutros tempos 
(Foto de data desconhecida)

Como em todas as sociedades de tecnologia primitiva e onde o meio natural se apresentava muito pouco diversificado quanto a materiais utilizáveis, também na antiga sociedade castreja, qualquer das realizações materiais, levadas a cabo pelo homem, trazia impressa a marca do ambiente em redor. O sentido de equilíbrio que o artesão sempre realiza em toda a sua obra, permitiu também que aqui existisse uma adequação formal da casa à natureza que a cercava. Por tanto, nas antigas construções de Castro Laboreiro, estiveram presentes estas duas marcas naturais, que ao fim e ao cabo se resumem numa só: a marca do equilíbrio entre a obra e a natureza.
Efectivamente, os únicos materiais empregues na construção foram o granito arrancado ao chão e às rochas; a madeira que crescia nas matas; a palha de centeio que o homem produzia e a urze que espontaneamente se criava em profusão. Quanto à própria estrutura, não ia além de um modelo simples de linha direita, de área estritamente necessária ao abrigo da família, dos animais e da alfaia agrícola e ao armazenamento das colheitas.
A casa era pois uma peça de tal maneira integrada na paisagem, pela cor e pela forma, que cada um dos lugares, composto de muitas dessas casas, quando visto de longe, configurava uma das variadíssimas formações rochosas em que se capricha a natureza de Castro Laboreiro. Ainda hoje este quadro é-nos sugerido pelos pequenos conjuntos de habitações de tal tipo existentes em lugares outros que não a vila, embora já destacados do meio natural por força do contraste que a este oferecem as novas construções, que surgiram no seu interior ou à sua volta.
Curiosamente, e reportando-nos ainda a esse tempo, a única marca imediatamente visível da acção do homem sobre a natureza devia ser a que era formada pelas manchas coloridas dos barbeitos cultivados sempre em zonas distantes da área habitada. Esses, sim, contrastavam pela macieza dos seus verdes e pela geometria dos seus contornos, coma cor parda cinzenta dos grandes e irregulares rochedos, erguidos à volta de Castro Laboreiro.
Mas se a estrutura da casa se harmonizava com a natureza e satisfazia por outro lado necessidades de abrigo, não satisfazia de madeira eficaz as exigências de comodidade das pessoas que a habitavam, embora tais exigências se reduzissem àquele mínimo determinado pelas próprias condições em que decorria a sua existência.
Na verdade, ninguém em Castro Laboreiro que tivesse experimentado o desconforto destas habitações, a elas se refere sem ser em manifesto repúdio pelas condições de vida que a tal obrigavam. Contudo, não se aceita o quadro desumanizado que nos foi deixado por José Augusto Vieira, na sua obra «O Minho Pittoresco» (1886): «Anexo a este interior, o que há de mais sórdido, de mais negro pelo fumo, e de mais anti-higiénico, ficam as cortes para os gados». Vista assim, a casa mais nos parece um «covil» para animais selvagens que propriamente um abrigo para os homens. Com outros olhos a viu José Leite de Vasconcelos no seu artigo «Excursão a Castro Laboreiro» (trabalho de campo em 1904), publicado na Revista Lusitana, vol. XIX. Nela, o investigador faz um relato sem qualquer tipo de animosidade e refere-se sobretudo ao interior da casa castreja nestes termos  A cozinha consta de: lareira, borralheira, especie de camara para recolher o borralho, coberta por uma lage que se chama copeira ou pilheira; escanos, postos ao lado da lareira, para se sentarem; almario, simples prateleira para louça; masseira; fumeiro ou ‘’caniço’’, pôsto superiormente á lareira, para ahi se enxugar a roupa; arcaz, caixa para guardar os cereaes.
   Os Crastejos servem-se, mais ou menos, de pratos de madeira, tanto para comerem, como para conservarem a comida. Eu vi d’estes pratos. Tambem se usam cuncas ‘’malgas’’ ou ‘’tigelas’’ da mesma substancia; d’antes todos comiam nellas, hoje porem só as crianças. Consta-me que esta ‘’loiça’’ se fabrica na Galliza, e se exporta de lá para o Alto-Minho. Ha colheres de madeira, que se chamam igualmente cuncas. A fórma masculina cunco applica-se a uma gamella de pau para se bater a massa do pão antes de ir para o forno.
Para iluminação das casas, os mais pobres fazem uso de guiços, que são pedaços de urzes secas (gândaros), de queirogas sêcas e de tojos secos, descascados do tempo, e que se accendem á maneira de vela: sustentam-nos na mão, ou espetam-nos num buraco da parede; de vez em quando esmoucam-nos, quebrando no chão a parte carbonizada, para os reaccenderem. Com os guiços concorrem vantajosamente candeias de lata, suspensas em seu velador, como é geral no Norte e Centro do país; outr’ora havia-as de ferro e alimentavam-nas de sil ou banha de porco.
   Terminarei aqui a parte descritiva, mencionando a cama, palavra que significa propriamente ‘’leito de madeira’’; assim se diz: ‘’o carpinteiro faz uma cama’’. A cama consta de um caixão grande, com quatro banzos ou pernas, que terminam superiormente em pirâmides. Os mais pobres ahi dormem sobre palha, envolvidos numa manta de burel (sem enxergão ou lençoes); de travesseiro serve um farrapo. Num dos banzos da cabeceira enrola-se o rosario em que rezam.”

Castro Laboreiro em 1915

Informações extraídas em:
- GERALDES, Alice (1979) - CASTRO LABOREIRO E SOAJO. Habitação, Vestuário e Trabalho da Mulher. Serviço Nacional de Parques, Reservas e Património Paisagístico. Lisboa.
- VASCONCELOS, J. Leite de (1916) - Excursão a Castro Laboreiro in: Revista Lusitânia, Lisboa.

- VIEIRA, José Augusto (1886) - O Minho Pittoresco, tomo I, edição da Livraria de António Maria Pereira- Editor, Lisboa.

quarta-feira, 23 de julho de 2014

As origens da Paróquia de Chaviães: De Santa Seculinha a Santa Maria Madalena

Igreja paroquial de Chaviães dedicada a Santa Maria Madalena
(Foto de J. Braga)

Na paróquia de Chaviães, o templo cristão mais antigo de que temos conhecimento era uma igreja dedicada a Santa Seguinha. A dita igreja encontra-se documentada desde 1177.
Santa Seguinha ou Seculinha é um orago pouco comum nas igrejas medievais Portuguesas, mas Pierre David encontrou-o noutras igrejas da diocese de Braga. Segundo o mesmo autor, refere-se à Santa Segolène de Albi, uma Santa Francesa do séc. VII, adaptada como padroeira de igrejas portuguesas a partir do séc. XI. A escolha desta invocação em Chaviães talvez se relacione com o facto do Mosteiro de Fiães ter, na Idade Média, monges franceses, e ter várias propriedades e direitos em Chaviães, o que aliás deu ocasião a vários litígios entre a Igreja e o mosteiro que se tentaram solucionar por um acordo realizado mais tarde em 1246, revelando-nos também o quanto a Igreja de Chaviães e este mosteiro entre si.
A construção desse templo dedicada a Santa Seculinha deverá estar relacionada com o movimento de criação de igrejas ao longo dos séculos XI e XII, altura em que “toda a vila ou aldeia procurou ter a sua ecclesia(...). Em 1183, metade da igreja de Chaviães pertencia a D. Afonso Henriques que, então, faz doação dela à vila de Melgaço.
A atual igreja de Chaviães conserva importantes vestígios românicos. Dessa época, preserva-se o corpo da igreja, ainda que este tenha sofrido acrescentos e algumas mudanças na época moderna.
Em 1320, foi determinada a taxa a pagar ao rei D. Dinis pelos benefícios eclesiásticos do reino, aí se concluindo os que estavam dependentes do bispado de Tui como acontecia com a igreja de Chaviães. Desse documento, se depreende que a igreja paroquial de Chaviães era então a mais rica paróquia do termo de Melgaço, o que provavelmente justifica a sua cuidada obra ao gosto românico.
Nesta igreja, reencontramos aspetos arquitetónicos e escultóricos semelhantes aos de igrejas próximas de Paderne e Orada, embora, em Chaviães, esses modelos tenham sido seguidos de uma forma menos rica e mais ruralizada. A atual igreja parece assim datar da segunda metade do século XIII.
Conhecemos os rendimentos para o Arcebispo de Braga das igrejas do termo de Melgaço no início do século XVI, algures entre a localização da comarca eclesiástica de Valença no Arcebispado de Braga (1514) e o fim do Arcebispado de D. Diogo de Sousa (1532). Nessa época, Chaviães não era, para o Arcebispo, a mais rendosa das igrejas do termo de Melgaço. Em 1545 – 1549, é feita nova avaliação dos benefícios da Comarca de Valença, verificando-se a mesma situação.

Também no século XVI, Chaviães aparece como sendo do padroado do Duque de Bragança, como consta do tombo de 1547 que volta a ser copiado em 1592. O Censual de D. Frei Baltasar Limpo (1551 – 1581) dá-nos indicações, quer sobre o padroado da igreja de Chaviães, quer sobre a mudança de orago que se viria a verificar. De facto, toda a documentação referida indica como padroeira da igreja “Santa Segoinha” mas o Censual de Frei Baltasar Limpo no capítulo “Terra de Melgaço, annexas im parpetuum” refere a anexação perpétua de Santa Maria Madalena de Chaviães a “Sancta Seculinha de Chaviães”. No capítulo dedicado aos benefícios da Terra de Melgaço, “d’ apresentação dos padroeiros”, refere-se “Chaviães, Sancta Seculinha do Duque de Bragança. Tem anexa pertétua Santa Maria Madalena de Chaviães por doação que lhe fizeram padroeiros leigos”. A anexação das duas igrejas talvez explique que, da junção de ambas e dos dois oragos, um fosse caindo no esquecimento – Santa Seculinha – passando a igreja a ser conhecida como sendo de Santa Maria Madalena.

Extraído de:
BESSA, Paula (2003) - Pintura Mural na Igreja de Santa Maria Madalena de Chaviães. Boletim Cultural de Melgaço, Câmara Municipal de Melgaço, Melgaço.

sábado, 19 de julho de 2014

No Hotel Ranhada (1915), em dia de visita do Arcebispo de Braga às Termas do Peso

Capela do Hotel Ranhada, no dia da visita do Arcebispo de Braga

A publicação "Ilustração Catholica", na sua edição de 21 de Agosto de 1915 dá-nos conta de uma visita pastoral do Arcebispo de Braga a Melgaço. O dia 26 de Julho foi passado nas Termas do Peso e no Hotel Ranhada, tendo inclusivamente sido celebrada missa na capela do dito hotel. 
Na notícia podemos ler que "O Sr. Arcebispo de Braga veio a estas termas no dia 26 de Julho, e os hóspedes do Hotel Ranhada, na sua maioria, receberam o ilustre príncipe da igreja com as homenagens devidas não só ao alto cargo que exerce como, também, ás virtudes excelsas que possui.
Vieram muitas pessoas de longe e a estrada que passa em frente aos hotéis regorgifou, então com esfrugidora animação. Senhoras distribuiram, não só em nome dos hóspedes daquele hotel, como de outros, comida e outras ofertas a um grande numero de pobres da localidade.
Uma banda de musica fez-se ouvir. Chegado D. Manuel Vieira de Mattos logo se dirigiu à capela do Hotel Ranhada para ali consagrar e reservar o Santíssimo Sacramento. No coro, as mesmas senhoras fizeram ouvir-se em coros cuidadosamente ensaiados. O beija-mão foi concorridíssimo.
Findo este, numa dependência do hotel, o Sr. Dr. Queiroz Ribeiro, com a facilidade da palavra que Ihe é timbre, pôs em destaque as qualidades morais e mentais do Sr. Arcebispo, que agradeceu comovidíssimo.
À noitinha, Sua Excelência o Arcebispo, acompanhado de amigos e de grande numero de clero, de Monção e Melgaço, retirou-se. 
Às 8 horas, o Sr. Dr. Queiroz Ribeiro, em mesa á parte, no Hotel Ranhada, reuniu alguns amigos dando-lhes um jantar confeccionado sob os cuidados do hoteleiro Sr. Guerreiro Ranhada, servido com vinhos finíssimos da lavra do oferfanfe. Houve brindes."

A última pessoa à esquerda de pé é o Sr. António Maria Gerreiro Ranhada, dono do Hotel Ranhada

Extraído de: "MELGAÇO - Visita Pastoral de Sua Ex. Rev., o Arcebispo Primaz" in: Ilustração Catholica, nº 112, de 21 de Agosto de 1915 Ano III, Braga.

terça-feira, 15 de julho de 2014

O Solar e a Quinta do Reguengo (Paderne): algumas notas históricas e arquitetónicas.

Solar e Quinta do Reguengo (Paderne - Melgaço)
(Foto: SIPA)

O nome "Reguengo" deriva do facto de outrora esta quinta e solar terem pertencido ao rei. A história desta quinta vem de longe e há muitos séculos que ali se produzem os mais variados produtos agrícolas, entre os quais o vinho. Tendo sido propriedade de vários senhores feudais, era ali que os habitantes de Melgaço pagavam a dízima de tudo o que produziam. Daí a dimensão dos lagares e dos canastros existentes na Quinta, bem acima do necessário para guardar e transformar o que a Quinta produzia.  
O solar da Quinta foi mandado construir pela Rainha D. Leonor, no Séc. XVI tendo desde então estado na posse de diversos proprietários. O solar encontra-se localizado nos terrenos onde existiu em tempos a ‘Quinta da Várzea’, que pertenceu aos Castros, alcaides-mores de Melgaço e Castro Laboreiro. Estas autoridades exerceram um domínio despótico sobre os seus súbditos. Entre eles destacou-se Pero de Castro a quem o rei D. Manuel I retirou poder quando concedeu a Melgaço o Foral Novo de 3 de Novembro de 1513 pelo qual a Quinta da Várzea é considerada reguenga ou seja do património régio. “E na freguysia da Varzea tem ora o dito Pero de Castro a qyntãa da Varzea que he reguenga. E asy as vinhas e herdades della que soyam seer dous casaes reguengos. E quando se der a lavradores fiquara obrigada ao direito de reguengo e dar se a a prazaer das partes por aquyllo que se concertarem sem ficar a dita quintãa posta em outra obrigaçam da paga do reguengo por seer fora dos reguengueeyros della”.
“Em 24 de Março de 1606, Inácio de Araújo, regressado da Índia, celebrou em Lisboa um contrato de compra da Quinta do Reguengo, parte de terras livres e parte constituída em morgado. Comprou-a na sua totalidade estando ela já aforada a Fernando de Castro e esposa D. Ana de Meneses, mordomos de D. Catarina, mulher de D. João VI, Duque de Bragança. Uma parte da propriedade pertencia ao filho Jerónimo de Castro o qual levou a tribunal a questão da propriedade. Inácio de Araújo acabou por legar a Quinta à Santa Casa da Misericórdia encarregando esta de continuar a questão contra Jerónimo de Castro. Porém, acabaram por perder a questão. Jerónimo de Castro recebeu uma indemnização de quatro mil reis. Mas a casa ficou no acervo dos bens da Santa Casa da Misericórdia, que a foi trabalhando pelos seus caseiros e a vendeu em 1675 ao capitão Agostinho Soares de Castro por 520$000r reis”.
O solar encontra-se inserido em meio rural, e enquadrado por grandes vinhedos e precedido de portal com vãos abertos, estando o central ladeado de jambas pilastradas sobre as quais assentam dois leões esculpidos.
É construído em cantaria de granito rebocada e pintada a branco, excepto cunhais, cornijas, molduras e ornamentos, sacadas, galeria e escadaria que apresentam pedra ‘à vista’.
Planta em U composta por corpos rectangulares com a mesma cércea, correspondente a dois pisos, abre-se para sul e constitui o centro da quinta onde predomina o cultivo do vinho alvarinho. Perpendicularmente, a meio da fachada interior do corpo central, ergue-se a ampla escadaria, de parapeitos fechados, que conduz ao segundo piso onde se abre uma galeria assente em colunata toscana.
Coberturas diferenciadas com telhados de três e quatro águas de abas pouco pronunciadas e cunhais pilastrados terminados por urnas com fogaréus.
Os corpos laterais são fenestrados, nas fachadas exteriores do U, por janela de sacada e janelete e por janelas de guilhotina e portas de serviço nas outras faces. Uma sineira vazia coroa a cornija do corpo da capela situado a nascente. Encimando os cunhais frontais de ambos os corpos inserem-se duas pedras de armas sendo a do lado esquerdo representativa de Soares (de Tangil), Castro, Barbosa e Rodrigues enquanto que a do lado direito, dividido em seis quartéis, se pode ler como Abreu, Azevedo, Sá, Vasconcelos, Sotto-Mayor e Araújo.
A quinta possui uma capela situada no interior do solar (corpo do lado nascente). Apresenta um retábulo de desenho maneirista, subdividido em três nichos delimitados por quatro colunas coríntias, rematado por frontão interrompido alojando ao centro tábua pintada representando S. Roque. A decoração entalhada é exuberante em enrolamentos, ornatos vegetalistas, predominando o tema da folha do acanto, bustos de anjos alados, etc. O revestimento foi feito por douramento e pinturas polícromas havendo ainda as de imitação marmórea.
Nesta quinta encontramos ainda a Fonte da Casa do Reguengo. Localizada entre o solar e outras construções secundárias, a nascente, apresenta espaldar marginado por pilastras que sustentam cornija em cortina ladeada de urnas e tendo ao centro, sobre uma peanha, a escultura de um canídeo. Dentro de nicho com arco de volta inteira aloja-se uma carranca de onde irrompe a bica jorrando água para uma bacia circular de onde é conduzida por caneiro a um tanque rectangular.

Esta fonte é ainda decorada com vários motivos esculpidos sendo de destacar a concha estilizada sobre a carranca e os ornatos florais. A sua autoria está atribuída a Manuel José Gomes (conhecido como Mestre do Regueiro por ter sido morador neste lugar da freguesia de S. Paio), que a executou em 1875 conforme data inscrita em cartela sobre o nicho.
Atualmente, o solar constitui-se como um agradável hotel rural.


Extraído de:
- ACER (Antero Leite e Susana Ferraz, 2007);
Reguengo de Melgaço, Outubro 2005. Disponível em <http://www.hoteldoreguengo.pt>;
- Reguengo de Melgaço, Julho de 2014. Disponível em  <http://www.reguengodemelgaco.pt>;
- VAZ, Júlio - P.e Júlio Vaz apresenta Mário, Edição do Autor, Melgaço, 1996.

sexta-feira, 11 de julho de 2014

Castro Laboreiro em finais do século XIX

Castro Laboreiro na viragem para o século XX

Castro Laboreiro é terra de um clima extremo. Sente-se aí no Inverno um frio polar, e de Verão, um calor tropical. O padre Carvalho diz que o vinho chega ali a congelar naquela estação invernal.
O solo é sáfaro e desabrido. Nenhuns frutos produz mais do que centeio, nabos e batatas. Mas a providência, para compensar talvez os seus habitantes da falta de mais frutos, dotou-lhes estes com uma qualidade tão superlativa, que não sei se haverá melhores.
Abunda o gado vacum e lanígero. O primeiro de má qualidade, pela incúria dos seus habitantes em aperfeiçoar a raça mas o segundo goza de reputação do melhor de Portugal, o que decerto é devido às excelentes pastagens que aqui se criam no Verão.
A terra é absolutamente desprovida de árvores, se bem que o autor da Chorographia Portugueza (Carvalho) lhe dê alguns poucos e pequenos carvalhos, e pouco milho miúdo, coisas que nunca lá viram, a não ser que as levassem de fora, à excepção dos primeiros que alguns tem em raríssimos sítios, mas muito enfezados. Estes mesmos não passam de poucos palmos de altura. A árvore indigna é o piorno e a urze.
A freguesia é a mais extensa e dilatada em área que se conhece, pois até há pouco ela só formava um concelho, sendo depois anexada à comarca e concelho de Melgaço.
É cercada de elevadíssimas serras, que desde a sua base atá ao topo estão eriçadas de penhascos, de um aspeto rude e selvagem que se desenham nas nuvens com mil formas caprichosas e fantásticas.
É abundante a caça de todo o género. Criam-se aqui mastins de uma corpolência e vigor extraordinários. Qualquer um deles, é capaz de matar um lobo.
Há uma emigração espantosa pois desde que entra o mês de Setembro tudo o que é homem de idade de oito anos para cima, estando em circunstâncias de se arrastar, lá marcha para o Douro, Trás-os-Montes, Beira Alta e outras partes, não recolhendo senão na Páscoa, que é o termo fatal em que hão-de aparecer por força.
Fica a terra tão despovoada de homens, que os cadáveres são conduzidos para a igreja pelas mulheres, havendo antes disso, em casa dos doridos, grande comesana para todas as pessoas que quiserem aproveitarem-se dela, o que todos da melhor vontade fazem, e às vezes em número e muitas dezenas, mas que ninguém estranha por ser uso da terra.
Diante do cortejo (que é como vimos, conduzido por mulheres) segue uma comitiva delas, umas com broas de pão, outras com açafates de bacalhau e outras coisas, à cabeça, tudo para a igreja, e que lá é entregue ao pároco.
Quem encontrasse um costume destes e não conhecesse a tradição da terra, teria que se persuadir que esta pobre mas boa gente estava embebida na crença de alguns, que estão convencidos que os cadáveres comem debaixo da terra, recebendo por essa ocasião muitos presente.
Ao ofício da sepultura, assistem quantas pessoas aí estiverem de todas as idades e de ambos os sexos, cada qual com uma vela na mão, arrancando gemidos uns, soluços outros, mas todos manifestando uma dor e mágoa tão profundas que não se poderiam fingir.
A igreja é boa, para aquela terra. A chamada vila é uma pequena e pobre povoação, cujas casas, assim como as de toda a freguesia, são cobertas de colmo e se alguma tem telhas, ainda assim, não dispensam o colmo por baixo.
No trato, em geral, a gente ressente-se da dureza da terra, advertindo que é muito obsequiadora e hospitaleira para com os estranhos. Não obstante a inquestionável aspereza desta paragem selvática, têm saído daqui estudantes muito distintos, e que tem sido laureados em diversas faculdades, o que vem contrariar a opinião dos que dizem que as comidas delicadas e as terras mimosas concorrem para o talento.


Informações extraídas de: 
- PINHO LEAL, Augusto Soares A. B. (1874) - Portugal Antigo e Moderno (Volume II). Livraria Editora de Mattos Moreira & Companhia, Lisboa.

domingo, 6 de julho de 2014

O contrabando de ouro (1945) pela raia melgacense em relatório dos serviços secretos americanos

Autocarro da Auto Viação Melgaço e bomba de gasolina, de Artur Teixeira, nos anos 50

Um relatório dos serviços secretos americanos datado de 6 de Maio de 1945 confirma que pela fronteira melgacense terá passado ouro rumo à Alemanha nazi durante a II Guerra Mundial. A mercadoria terá sido passada na raia entre Cevide e Castro Laboreiro.
No relatório refere-se que “As atividades de contrabando de ouro a partir de Portugal para Espanha continuaram através de Castro Laboreiro. As seguintes pessoas foram os principais envolvidos no contrabando: Francisco Esteves e seu filho Manuel Esteves, Manuel Pereira Lima, Adolfo Vieira, Adolfo Fragoso, Antero Rodrigues, Pedroso de Lima, Artur Teixeira - todos de Monção. Eles foram auxiliados pelos Tenentes Diamantino Leite e Júlio Araújo, encarregados dos postos da Guarda Fiscal de Monção e Melgaço, respectivamente.


O minério seria proveniente de algumas minas do Norte do País, chegando a Melgaço, onde contrabandistas engendrariam o esquema de fazer passar a mercadoria para lá da fronteira. Artur Teixeira, teria papel de destaque ou seria até mesmo o cabecilha da quadrilha, confirmando a informação dos serviços secretos norte-americanos, que, em 1945, o referenciavam como membro de uma “sociedade de contrabando”.  Artur Teixeira é um dos muitos nomes apontados em relatórios de espiões americanos, elaborados em 1945 a partir de Lisboa. Em declarações ao Diário de Notícias, na edição de 30 de Janeiro de 1997, populares da vila, que pediram anonimato, recordam ter sido essa a forma de Artur Teixeira e seus pares enriquecerem – os americanos falam em 24 mil contos na altura. “Ele emprestava aos mil e dois mil contos, comprou inúmeras propriedades. Tinha muitas posses”, garantem.
O Diário de Notícias, na mesma edição, refere também que Artur Teixeira conseguiu instalar um posto de abastecimento de combustível – único em Melgaço -, montou uma empresa de camionagem, que servia o concelho e terras vizinhas, e abriu uma agência de câmbios, resultado de “importantes contactos em instituições bancárias do Porto”.
Estas transações contaram, segundo este relatório com a conivência de vários guardas fiscais. De facto no relatório menciona-se que “O ouro, que foi trazido de várias partes do país, foi contrabandeado através do posto da Guarda Fiscal de Cevide, em frente à cidade espanhola de Frieira. Em seguida, era despachado por um Guarda Fiscal, de nome Guilhermino, em funções no posto de Cevide, e por um guarda fiscal do posto de São Gregório, chamado Celoso.”


Um dos indícios desta teia de corrupção apontado pelos espiões americanos é fruto da vigilância que é  feita às suas contas bancárias e a outras transações. No relatório é mencionado que “Há poucos dias, o guarda Celoso terá comprado parte de uma propriedade no valor de 400 000 escudos.” Deduzem os americanos que os lucros deste guarda fiscal do posto de S. Gregório obtidos com este esquema de contrabando terão sido empregues na compra da tal propriedade. Tal compra não seria possível apenas com o seu salário.

Visione o documento aqui:



Informações extraídas de:
- Relatório nº A 58114-a, de 6 de Maio de 1945 com o título "Gold contraband activities". Office of Strategic Services, Intelligence Dissemination, Washington, D. C.;
Diário de Notícias, edição de 30 de Janeiro de 1997. 

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Lendas de Melgaço XII: A Cidade dos Mouros em terras de Paderne



Cividade, Paderne


Cividade (Paderne), 1903...
"Por todo o território português, o povo atribui aos mouros qualquer ruína ou monumento arcaico: os mouros habitavam ali, o mouros fizeram aquilo. Na Cividade, em Paderne, acontece naturalmente o mesmo.
Dantes era a cidade dos Mouros. Depois o nome mudou-se em Cividade. Nunca o povo se cansa de inventar etimologias. Em volta do monte havia só Mourama. Aqui porém na Cividade, ficava a cividade deles. Assim, ouvi aos habitantes do lugarejo, que tanto tinham este em mente como o castro. Um fraco poeta popular da localidade dedicou ao assunto os seguintes versos:

O lugar da Cividade
No meio tem a Mourama
Eu também queria ver
Se arranjava uma madama...

Também se conta que na Cividade havia um buraco por onde se levavam os cavalos a beber a um regato próximo. É uma lenda comum a outros castros e a muitos castelos. Bem se sabe que os mouros gozavam e gozam fama de serem excelentes cavaleiros e o nosso povo não o esquece.
Com o viver dos mouros na Cividade se relaciona a tradição de que num local, que ainda se mostra, crescera alto e negro cipreste, que eles temiam muito por gerar escorpiões. Por tal motivo, deitaram-lhe fogo. Pois que o escorpião morde quem se lhe aproxima, dizem no Alto Minho, como provérbio:

Mordedura de escorpiom,
Procura o ferro e o lugom, (enxada em português arcaico)

entenda-se, para o matares! Tudo isto se resume nuns versos, feitos pelo mesmo rimador, que os entregou à tradição, d’ onde os colhi:

No lugar da Cividade
Havia um alcipreste,
Onde os Mouros duvidavam
Que se levantava a peste

No meio do alcipreste
Geravam-se escorpions
Donde diziam os Mouros:
Procura o ferro e os lugons.

Um dia os Cristãos, cansados da tirania dos Mouros, expulsaram-nos da Cividade:

Os Mouros d’ esta mourama
Já se acabaram todos,
Que se levantara a guerra,
E já lhe puzeram fogo...

Versos devidos à inspiração análoga à dos outros que até aqui tenho resumido. Neles se faz referência, segundo parece, aos vestígios de incêndio que, se descobrem nas ruínas do antigo castro. O povo é muito observador, não deixa escapar nada!
No momento em que os mouros se retiravam, um dos cavalos em que iam montados estampou uma pata num penedo da Cividade, que depois foi quebrado. Lendas de pegadas de animais ou de pessoas, como a presente no tesouro das nossas tradições populares.
Eis outras rimas de carater individual ouvidas da boca do povo e que copiei na Cividade:

Os Mouros d´esta mourama
Ja morreram sem cessão
Que eles já fugiram todos
Carregados de paixão.

Eles não queriam deixar
A sua naturização, (onde nasceram, na Cividade)
Preferiram morrer todos
Na sua patricação. (na terra de origem dos mouros)

Senhora d’ Agua de Lupe
Nem uma folha lhe destes:
Os Mouros da Cividade
Não faziam o que tu fizeste!

A Senhora de Guadalupe venera-se numa capelinha que fica perto do lugar de Crastos (a menos de um km), na freguesia de Paderne. O povo do Minho, sentimental como é, acrescenta: vinha o inimigo, isto é, os cristãos, em cima dos mouros e eles, coitadinhos, viraram-se para a senhora, sem os outros saberem, e pediram-lhe, mas em vão, que detivesse os contrários. A última quadra não passa de variante ad hoc de uma conhecida cantiga popular:

Fostes ao Senhor da Serra,
Nem um anel me trouxestes.
Nem os Mouros da Mourama
Fazem os que tu fizestes!

É curioso como os poetas populares aqui se apoderam da lendas, e as tornaram objeto de versificação, facto que não tenho observado com frequência, embora por toda a parte os versejadores da aldeia se inspirem em acontecimentos de ocasião, crimes, guerras, naufrágios, e os ponham em rima.
Temos ainda mais versos:

O lugar da Cividade
No meio de dois torrões
Onde os Mouros depositaram
As suas obrigações...

O povo explica que as “cozinhas” dos mouros eram debaixo dos “torrões”. Mas aqui deve ser torreões. Como as casas estão soterradas, o povo facilmente mudou torreão para torrão.
Os Mouros ao partirem, não levaram tudo consigo e deixaram alguma lembrança. Ainda hoje, na cozinha do Valente, lavrador da Cividade e numa lage que tem à porta se ouve em certa noite uma moura encantada tecendo um tear de ouro.
Conta-se que muitas riquezas ficaram também enterradas e escondidas em minas. O mesmo lavrador da Cividade de nome Valente era possuidor de um roteiro manuscrito da localização de riquezas escondidas naquele lugar. Diz que um dia encontrou dinheiro mas teve a má ideia de o emprestar. Logo um vizinho lhe aplicou esta sátira, que o povo repete sorrindo:

Encontraste a mina d’ ouro,
Mas deixaste lá ficar.
O que encontraste  dentro dela,
Já o deixaste escapar!

A par de roteiros em prosa, sempre cheios de fantasias, o povo conhece muitos em verso, de forma tradicional, que vai adaptando a cada localidade onde suspeita que se guardam tesouros, Na Cividade, copiei da boca do povo os seguintes, que são variantes uns dos outros:

Entre Coté e Cividé
Três minas é.
Uma de ouro e outra da prata,
E uma outra de veneno que mata.

Entre Côto e Arroté
E Cividé
Hai uma mina de ouro e uma de prata
E outra de veneno que mata.

Entre a Cividé e Arroté
Três minas é.
Uma de ouro e outra de prata,
E outra de rosalgar.

Coté por Côto, que designa um alto em que está a capela da Senhora de Guadalupe, a que já aludi. Arroté está por Arroteia, nome de um lugarejo de três ou quatro casinhas na mesma freguesia, abaixo de Crastos. Cividé é o mesmo que Cividé. O povo não explica a razão do desfiguramento dos nomes, só diz que eram esses os nomes no tempo dos mouros. Talvez assim se fizesse para lhe dar um caráter arcaico, e ao mesmo tempo para se fingir que os mouros, com tal Por todo o território português, o povo atribui aos mouros qualquer ruína ou monumento arcaico: os mouros habitavam ali, o mouros fizeram aquilo. Na Cividade, em Paderne, acontece naturalmente o mesmo.
Dantes era a cidade dos Mouros. Depois o nome mudou-se em Cividade. Nunca o povo se cansa de inventar etimologias. Em volta do monte havia só Mourama. Aqui porém na Cividade, ficava a cividade deles. Assim, ouvi aos habitantes do lugarejo, que tanto tinham este em mente como o castro. Um fraco poeta popular da localidade dedicou ao assunto os seguintes versos:

O lugar da Cividade
No meio tem a Mourama
Eu também queria ver
Se arranjava uma madama...

Também se conta que na Cividade havia um buraco por onde se levavam os cavalos a beber a um regato próximo. É uma lenda comum a outros castros e a muitos castelos. Bem se sabe que os mouros gozavam e gozam fama de serem excelentes cavaleiros e o nosso povo não o esquece.
Com o viver dos mouros na Cividade se relaciona a tradição de que num local, que ainda se mostra, crescera alto e negro cipreste, que eles temiam muito por gerar escorpiões. Por tal motivo, deitaram-lhe fogo. Pois que o escorpião morde quem se lhe aproxima, dizem no Alto Minho, como provérbio:

Mordedura de escorpiom,
Procura o ferro e o lugom, (enxada em português arcaico)

entenda-se, para o matares! Tudo isto se resume nuns versos, feitos pelo mesmo rimador, que os entregou à tradição, d’ onde os colhi:

No lugar da Cividade
Havia um alcipreste,
Onde os Mouros duvidavam
Que se levantava a peste

No meio do alcipreste
Geravam-se escorpiões
Donde diziam os Mouros:
Procura o ferro e o lugom.

Um dia os Cristãos, cansados da tirania dos Mouros, expulsaram-nos da cividade:

Os Mouros d’ esta mourama
Já se acabaram todos,
Que se levantara a guerra,
E já lhe puseram fogo...

Versos devidos à inspiração análoga á dos outros que até aqui tenho resumido. Neles se faz referência, segundo parece, aos vestígios de incêndio que, se descobrem nas ruínas do antigo castro. O povo é muito observador, não deixa escapar nada!
No momento em que os mouros se retiravam, um dos cavalos em que iam montados estampou uma pata num penedo da Cividade, que depois foi quebrado. Lendas de pegadas de animais ou de pessoas, como a presente no tesouro das nossas tradições populares.
Eis outras rimas de carater individual ouvidas da boca do povo e que copiei na Cividade:

Os Mouros d´esta mourama
Ja morreram sem cessão
Que eles já fugiram todos
Carregados de paixão.

Eles não queriam deixar
A sua naturização, (onde nasceram, na Cividade)
Preferiram morrer todos
Na sua patricação. (na terra de origem dos mouros)

Senhora d’ Agua de Lupe
Nem uma folha lhe destes:
Os Mouros da Cividade
Não faziam o que tu fizeste!

A Senhora de Guadalupe venera-se numa capelinha que fica perto do lugar de Crastos (a menos de um km), na freguesia de Paderne. O povo do Minho, sentimental como é, acrescenta: vinha o inimigo, isto é, os cristãos, em cima dos mouros e eles, coitadinhos, viraram-se para a senhora, sem os outros saberem, e pediram-lhe, mas em vão que detivesse os contrários. A última quadra não passa de variante ad hoc de uma conhecida cantiga popular:

Fostes ao Senhor da Serra,
Nem um anel me trouxestes.
Nem os Mouros da Mourama
Fazem os que tu fizestes!

É curioso como os poetas populares aqui se apoderam da lendas, e as tornaram objeto de versificação, facto que não tenho observado com frequência, embora por toda a parte os versejadores da aldeia se inspirem em acontecimentos de ocasião, crimes, guerras, naufrágios, e os ponham em rima.
Temos ainda mais versos:

O lugar da Cividade
No meio de dois torrões
Onde os Mouros depositaram
As suas obrigações...

O povo explica que as “cozinhas” dos mouros eram debaixo dos “torrões”. Mas aqui deve ser torreões. Como as casas estão soterradas, o povo facilmente mudou torreão para torrão.
Os Mouros ao partirem, não levaram tudo consigo e deixaram alguma lembrança. Ainda hoje, na cozinha do Valente, lavrador da Cividade e numa laje que tem à porta se ouve em certa noite uma moura encantada tecendo um tear de ouro. 
Conta-se que muitas riquezas ficaram também enterradas e escondidas em minas. O mesmo lavrador da Cividade de nome Valente era possuidor de um roteiro manuscrito da localização de riquezas escondidas naquele lugar. Diz que um dia encontrou dinheiro mas teve a má ideia de o emprestar. Logo um vizinho lhe aplicou esta sátira, que o povo repete sorrindo:

Encontraste a mina d’ ouro,
Mas deixaste lá ficar.
O que encontraste  dentro dela,
Já o deixaste escapar!

A par de roteiros em prosa, sempre cheios de fantasias, o povo conhece muitos em verso, de forma tradicional, que vai adaptando a cada localidade onde suspeita que se guardam tesouros. Na Cividade, copiei da boca do povo os seguintes, que são variantes uns dos outros:

Entre Coté e Cividé
Três minas é.
Uma de ouro e outra da prata,
E uma outra de veneno que mata.

Entre Côto e Arroté
E Cividé
Hai uma mina de ouro e uma de prata
E outra de veneno que mata.

Entre a Cividé e Arroté
Três minas é.
Uma de ouro e outra de prata,
E outra de rosalgar.

Coté por Côto, que designa um alto em que está a capela da Senhora de Guadalupe, a que já aludi. Arroté está por Arroteia, nome de um lugarejo de três ou quatro casinhas na mesma freguesia, abaixo de Crastos. Cividé é o mesmo que Cividé. O povo não explica a razão do desfiguramento dos nomes, só diz que eram esses os nomes no tempo dos mouros. Talvez assim se fizesse para lhe dar um caráter arcaico, e ao mesmo tempo para se fingir que os mouros, com tal desfiguramento, queriam desorientar os cristãos, e evitar que descobrissem as riquezas deixadas por eles.
O que se diz das minas de ouro, prata e rosalgar, é tradição muito corrente a respeito de outras ruínas: só em vez de mina de rosalgar (palavra aqui empregada por causa da rima) é mais frequente dizer-se mina de peste. 
Além dos versos que acima transncrevi, uns de caráter popular, outros de caráter individual, e apenas popularizados, colhi as três seguintes quadras referentes à Cividade, inteiramente tradicionais:

O lugar da Cividade
É lugar de poucos homes.
Esses pouquechinhos que hai,
Chamam – lhe os Remenda Foles.

A Cividade dos Mouros
Hei-de mandá-la doirar
Com pontinhas de alfinetes
Para o meu amor passear.

No lugar da Cividade
Me prometeram pancadas.
Queira Deus que não suceda
Quem mas prometeu, levá-las!

Na primeira delas, observa-se o curioso costume que tem o povo de dar alcunha à povoações, semelhantes à que dá aos indivíduos...
, queriam desorientar os cristãos, e evitar que descobrissem as riquezas deixadas por eles.
O que se diz das minas de ouro, prata e rosalgar, é tradição muito corrente a respeito de outras ruínas: só em vez de mina de rosalgar (palavra aqui empregada por causa da rima) é mais frequente dizer-se mina de peste.
Além dos versos que acima transcrevi, uns de caráter popular, outros de caráter individual, e apenas popularizados, colhi as três seguintes quadras referentes à Cividade, inteiramente tradicionais:

O lugar da Cividade
É lugar de poucos homes.
Esses pouquechinhos que hai,
Chamam – lhe os Remenda Foles.

A Cividade dos Mouros
Hei-de mandá-la doirar
Com pontinhas de alfinentes
Para o meu amor passear.

No lugar da Cividade
Me prometeram pancadas.
Queira Deus que não suceda
Quem mas prometeu, levá-las!


Na primeira delas, observa-se o curioso costume que tem o povo de dar alcunha à povoações, semelhantes à que dá aos indivíduos...


Extraído de: - VASCONCELOS, J. L. de (1933) – Castros lusitanos I. Cividade de Paderne. in: Revista Archeólogo Português.