sábado, 7 de fevereiro de 2015

Memórias de uma viagem "a salto" de S. Paio (Melgaço) a França (1956)

(PARTE 1)


A aventura que aqui se vai relatar decorre no ano de 1956 e tem como protagonistas três jovens naturais de Cavaleiro Alvo, freguesia de São Paio, concelho de Melgaço.
Viviam-se então tempos duros num país mergulhado em dificuldades económicas e sociais, consequência do regime de retenção política em vigor.
Não vou maçar o leitor com a descrição das envolventes político-económicas de Portugal, já documentadas neste livro por Joaquim de Castro, mas apenas tornar visíveis os motivos que levaram milhares de portugueses a procurar uma vida melhor no estrangeiro.
Neste sentido, considero importante lembrar que, nesta época e, numa aldeia raiana e agreste como Cavaleiro Alvo, distante dos centros urbanos, os problemas nacionais se tornam mais perceptíveis e as oportunidades de trabalho mais escassas.
António Domingues, protagonista desta história, o qual ousou testemunhar os factos aqui transcritos, conta que:
Nesses tempos não havia trabalho e aquele que havia era demasiado duro e cruel tendo em conta aquilo que se ganhava.”
E, referindo-se aos dois companheiros de viagem, lembra:
“Nós, na altura, quando livres do trabalho do campo, trabalhávamos como cantoneiros numa estrada da freguesia de Rouças, recebendo apenas uns miseráveis 14 escudos por dia.”
A mantença provinha fundamentalmente do campo, pouco se comprava, comia-se aquilo que se colhia da terra e dos animais que se criavam nos pastos, côrtes e capoeiros. Era comum usar-se certas culturas para moeda de troca. Maçãs e milho eram carregados às costas e levados, atravessando montes, para outras freguesias, regressando de seguida com outra cultura ou fruto que a terra não colhesse. Passava-se fome! Ainda, hoje, não falta quem se lembre da necessidade de repartir uma sardinha.
Cabe-me, agora, apresentar os três heróis deste drama que representa o mérito de muitos outros homens, os quais ousaram trespassar fronteiras, expondo-se a semelhantes ou até piores riscos. Começo por António Domingues, 17 anos, Manuel Hilário Pinheiro, 17 anos e Aníbal Marques, 19 anos.
Decorria, então, o mês de Setembro de 1956, quando estes adolescentes decidem partir. Apenas tinham contactado uma senhora, sua vizinha, para se incumbir de accionar toda uma rede especializada na passagem clandestina das fronteiras de Espanha e de França. Dessa mulher, já sepultada, guardo na memória o seu aspecto sinistro e o seu nome, Dona Elvira, parente de Manuel Hilário Pinheiro.
A 5 de Setembro, são subitamente notificados, por Elvira, que o dia da sua viagem tinha, finalmente, chegado. O primeiro passo seria dirigirem-se ao minério de Fiães, ao encontro de uma outra mulher que os ajudaria a passar a fronteira para Espanha.
A notícia surgiu tão súbita que os três rapazes apenas tiveram tempo de vestir aquilo que pensavam ser o mais adequado e iniciar a caminhada através dos montes e penhascos em direcção ao local indicado. E o que vestiram foi o que levaram. Nem comida nem dinheiro. Assim se entregaram ao destino, inocentes dos perigos, distâncias e martírios que os esperavam.
Não avisaram os parentes, até porque estes se encontravam a cumprir promessas na Romaria da Nossa Senhora da Peneda e, como afirma António Domingues:
“(...) se tivessem conhecimento não nos deixariam partir! A única esperança que tínhamos era os parentes que já trabalhavam em Paris mas, nem esses alertámos da nossa partida. Apenas levámos o endereço dum parente que se encontrava em Paris!”
Ao fim da tarde, chegaram a Fiães. Apelaram aos lavradores para que lhes indicassem as minas de extracção de minério e logo foram ao encontro da tal senhora. Aparentava uns 50 anos, mas dela transparecia aquele ar agreste, firme e seguro de quem é natural destas aldeias montanhosas. A primeira exclamação desta mulher despertou certa inquietude aos nossos protagonistas, pois, fixando ironicamente a sua aparência e estatura, soltou as seguintes palavras por entre um sorriso cínico:
“Onde pensam que vão estes rapazotes?! Vós não tendes corpo para aguentar a caminhada!”
No entanto, a frase pessimista não os iria deter e bastou acertarem e consentirem as condições impostas por esta para seguirem rumo à Espanha.
António lembra como este convénio lhe conferiu certa afoiteza:
“Nós tínhamos que pagar nove mil escudos cada um, mas só quando a nossa família de Melgaço recebesse uma carta nossa proveniente de Paris.”
Considero oportuno referir que esta situação lembra um tanto os actos de confiança entre os contrabandistas, tornando-se curioso o modo sério como se cumpriam estes acordos, simplesmente baseados na palavra de quem está a infringir a lei.
Com a pouca luz solar que lhes restava, iniciaram a caminhada, seguindo os passos ligeiros da mulher. Passaram a fronteira através do rio Trancoso, algures entre Alcobaça e São Gregório, evitando sempre qualquer vigilância da Guarda-fiscal.
Caminharam toda a noite. Desceram vales, cruzaram regatos, subiram colinas, saltaram sebes, atravessaram matagais até que já de manhã, foram confiados a dois homens galegos, os quais prudente e imediatamente, logo os encaminharam para um palheiro, ordenando-lhes que aí permanecessem escondidos em silêncio, até cair a noite.
Aí repousaram durante o dia, consolados somente por uma ou outra peça de fruta ocasionalmente encontrada no caminho já percorrido. Pouco dormiram. Nesse abrigo de feno, o calor acumulado do dia anterior ainda era intenso e tornava-se sufocante descansar.
Retomaram viagem por volta das nove horas da noite. E que noite mais fatigante! Apenas paravam para beber alguma água proveniente de riachos ou nascentes. A estafa da noite anterior já lhes pesava nas pernas, a dor de pés tornava-se agonizante. António chega mesmo a afirmar que:
“(...) os nossos pés já sangravam, mas tínhamos que aproveitar a escuridão da noite para evitar os Carabineiros que, nesta época, actuavam severamente perante estas situações! Já conhecíamos alguma que outra história de parentes nossos, caçados por estes membros da autoridade espanhola, e os tratos não eram nada aconselháveis!”
Ainda mal se avistavam os primeiros raios de sol, quando finalmente chegaram a uma aldeia dissolvida pelo esplendor verdejante das altas montanhas. Apenas se ouvia o tilintar dos chocalhos do gado, o qual ofegante galgava as encostas à procura de pastagens e um ou outro latejo dos cães pastores.
Percorreram o lugarejo escoltados pelos olhares curiosos dos poucos habitantes que com eles se cruzaram, até depararem com um homem que, encostado a um automóvel, lia um jornal. Após uns minutos de diálogo com os guias, estes despedem-se dos nossos protagonistas e informam que a viagem continuaria, a partir daquele momento, sobre rodas. Esta notícia foi acolhida, evidentemente, com suspiros de alívio e agrado.

PARA LER A PARTE 2 CLIQUE EM Memórias de uma viagem "a salto" de S. Paio (Melgaço) a França (1956) (PARTE 2)


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Texto extraído de:

- CASTRO, Joaquim de & MARQUES, Abel (2003). Emigração e contrabando. Melgaço, Centro Desportivo e Cultural de São Paio.

2 comentários:

  1. Esta história é interessantíssima mas......queremos o resto...
    Parabéns.

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    1. Olá Octavio. Obrigado pelas suas simpáticas palavras! Já publiquei hoje a parte 2. Coloquei também um link ao fundo deste texto (parte 1) para se poder aceder diretamente à parte 2. Obrigado pelo seu comentário! Valter Alves

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