sábado, 14 de fevereiro de 2015

Memórias de uma viagem "a salto" de S. Paio (Melgaço) a França (1956)

(PARTE 2)

Cena do filme "O Salto" (1968) de Christian de Chalonge

De seguida, o novo guia, Manolo, de seu nome, convida os viajantes a sentarem-se junto a um muro ali existente e, retirando um embrulho da mala do veículo, sugere que se apressem a comer alguma coisa. Sim, alguma coisa! Não era mais do que um naco de pão, um naco de revilha e uma típica bota de vinho tinto. No entanto, naquele momento, pareceu-lhes o melhor pão, o melhor chouriço e o melhor vinho que algum dia teriam ingerido.
Sem tempo para se acomodar entraram no carro. António conta:
“Eu levava um fato vestido que minha mãe me tinha comprado para usar em dias festivos. Deste modo era o que apresentava melhor aparência entre os companheiros e fui o escolhido para acompanhar o condutor na parte da frente do carro. Não fui muito afortunado! Como contarei mais à frente, eu não podia fechar olho como os meus companheiros do banco traseiro. Estes, mal partimos, já ressonavam!”
A estrada térrea rendeu alguns quilómetros e algumas horas. A velocidade era lenta e tornava-se constantemente imprescindível contornar um ou outro buraco existente. Por vezes, eram alcançados pela própria nuvem de pó que iam provocando. As frequentes guinadas de Manolo, para evitar buracos ou pedras soltas, lembram aqueles condutores dos filmes a preto e branco que, mesmo em rectas, vão baloiçando o volante, de um lado para o outro, fingindo, assim, o movimento do veículo que, no entanto, se encontra imóvel.
Ao aproximar-se de uma outra povoação montanhosa, o veículo foi encostando à berma, até parar junto ao que semelhava ser uma cabana abandonada. Manolo caminha apressado em direcção à porta do barraco e bate de punho fechado, seguindo um ritmo controlado que parecia ser um sinal combinado. Eis que a porta se abre. Surgem quatro homens adultos semelhantes àqueles pedintes que, antigamente, percorriam as aldeias em busca de um naco de broa e uma malga de vinho, confiantes na caridade dos lavradores. Desculpem-me este aparte, todavia, julgo oportuno e interessante citar que, hoje em dia, é raro o esmolante que aceita algo mais que dinheiro.
Bem, o certo é que estas personagens não eram pedintes, mas sim mais quatro portugueses a caminho de França. Pertenciam ao concelho de Arcos de Valdevez. Juntaram-se ao grupo e prosseguiram viagem entalados no banco traseiro, aproveitando a pouca luz solar que lhes restava para, como diz António:
“(...) quando caísse a noite parar, evitando qualquer suspeita viajando fora d’ horas. Na primeira noite parámos à entrada de uma vila. O carro entrou numa garagem e aí permaneceu escondido. Nós, portugueses, pernoitámos na cave de uma vivenda, deitados em sacos de lona. Manolo acomodou-se na parte de cima, junto com os proprietários.”
No entanto, o passador não se esqueceu dos seus clientes e, pouco tempo depois, desceu à cave, carregando uma travessa de barro com Jamón e queijo, trinchados em finas fatias, acompanhados por um bom naco de broa e uma caneca de tinto.
No dia seguinte partiram antes do nascer do sol. Cruzaram a vila e continuaram sobre alcatrão. Sempre que se aproximavam de uma zona urbana e se avistava algum dispositivo policial, Manolo ordenava a António para abrir e levantar o jornal à altura do vidro dianteiro, de modo a ocultar os passageiros detrás e a si próprio. Assim explica António:
“Só mais tarde percebi a intenção do guia. O que eu queria era apreciar as motas dos polícias. Nunca tinha visto coisa igual. Ainda trago na memória os gritos de Manolo: (...) por Diós levanta el periódico! Mais tarde, considerando o facto de nunca termos sido autuados, cheguei a pensar que o truque do jornal não seria mais que um sinal de identificação, combinado com os carabineiros! (...).”
Atravessaram toda a parte norte da região de Castilha e Leão, por estradas secundárias, até alcançarem o País Basco, sem qualquer problema que não fosse o incómodo de viajar horas seguidas, debaixo de um sol abrasador, oito passageiros num só carro.
Ao fim da tarde pararam numa aldeia pitoresca muito próxima de Vitória. A partir deste ponto são informados que a estratégia passa a ser a inicial, seguir a pé durante a noite e esconder-se durante o dia. Para o efeito foi-lhes apresentado um novo guia, bem mais jovem que os anteriores. Não teria mais que trinta anos e apresentava um físico bastante atlético. Chamava-se Nelo.
Nutridos apenas por umas bocatas de salpicão que Nelo tinha distribuído, logo abalaram monte acima em direcção à fronteira com França.
Caminharam algumas horas e, já sob o luar da noite, conseguiram avistar, ao longe, a silhueta das altas serras dos Pirinéus. Para elas se dirigiam a passos largos. Pareciam inalcansáveis. O guia avançava como um fugitivo perseguido por sete guardas. Como diz António:  “(...) nem para trás olhava! Parecia fugir de nós!”
Debilitava-os, um tanto, a ideia de desperdiçarem tantas energias antes de alcançar um obstáculo terrivelmente penoso de ultrapassar e, para o qual, todas as energias seriam poucas.
Acercaram-se à base destes picos já na alvorada. Exaustos, refugiaram-se num abrigo, feito em ramos de pinheiro, camuflado entre os arbustos. Pelo acamar das ervas notava-se que já teria sido utilizado, provavelmente, para o mesmo efeito. De facto, este refúgio, construído por Nelo, já há alguns meses atrás, servia de ponto estratégico para descansar e arrecadar forças para trespassar estas montanhas.
Assim se acomodaram os nossos heróis. Pouco dormiram. Tornava-se difícil adormecer, suportando o cansaço e a fome. Foram dormitando. Logo que começou a escurecer, Nelo ordena a partida para aquela que viria a ser uma das piores etapas da viagem, pois, como conta António:
“As poucas forças que nos restavam esgotavam-se a cada passo e, para agravar, a uma elevada altitude tornava-se difícil respirar.”
António era, então, o mais novo aventureiro, mas entre os portugueses, aquele que mais ligeiro caminhava. E refere:
“(...) O meu objectivo era não perder de vista o vulto que me precedia, o guia. À parte de termos que escalar algum que outro rochedo percorremos muitos troços com vegetação tão cerrada que se tornava necessário gatinhar através de estreitos carreiros, semelhantes aos utilizados pelos lobos e javalis. Por vezes, pareciam autênticos labirintos!”
Consciente da dificuldade dos seus companheiros em seguir o guia sem que, por vezes, se desviassem do trilho correcto, eis que António tem uma ideia curiosa e eficaz:
“(...) Eu levava calçadas umas meias brancas, rendadas, que sempre acompanhavam esse fato em dias festivos. Decidi puxá-las para fora das calças de modo a serem vistas pelo resto do grupo que me antecedia.”
A ideia funcionou e, assim, foram domando a serrania. Atingiram o seu cume, cambaleando sobre pernas que pareciam não ter, ou seja, “(...) já nem as sentíamos!”, lembra António. Para agravar a situação, eis que começam a surgir umas inquietantes dores de ouvidos causadas pela alta pressão atmosférica.
Pararam junto a uma pequena nascente para recarregar energias e logo foram oscilando monte abaixo, como que levados apenas pelo bamboleio do seu próprio peso, até encararem com um pequeno riacho, junto ao qual resolvem resfolegar alguns minutos. Pouco ou nada se conversava. Proferiam algumas exclamações de aflição e de ansiedade. No entanto, já se encontravam mais perto do alvo do que de casa. Já estavam em França. Era demasiado tarde para desistir. Restou-lhes ascender um pequeno outeiro para chegar a um abrigo de ovelhas que se erguia no alto da encosta e se isolava entre outros montes. Já era dia. Não se avistava todavia, qualquer outro sinal humano a não ser aquele refúgio feito em pedra tosca e coberto por uma espécie de colmo. Abriram uma porta de madeira e entraram. O cheiro do seu interior testemunhava o seu uso frescal.
Nelo indica o local, no sótão, onde devem permanecer escondidos e ordena para que jamais saíssem à porta a não ser quando este chegasse e proferisse a seguinte frase:
“Yo soy Nelo de Ário!”
Solicitou que lhe entregassem as moradas dos seus aparentados em Paris e saiu de seguida. No sótão, em madeira ainda sobejavam alguns fardos de feno que logo foram espalhados, de modo a servirem de base para estender aqueles corpos fatigados que assim permaneceram até ao amanhecer seguinte, aquando da visita de Nelo. Este entregou-lhes uma cesta, feita em vime, bem recheada de manjares, um cântaro para transportarem a água duma nascente ali adjacente. E, alertando-os para se acatarem em silêncio, partiu novamente.
Só poderiam sair daquele resguardo durante a noite, e com toda a cautela, para voltar a atestar o cântaro de água. As necessidades fisiológicas eram feitas no solo do estábulo.
Ao fim de três áridos dias, os quatro adultos ausentaram-se com o guia. Novamente sozinhos, aos figurantes do nosso enredo restava-lhes aguardar a visita de Nelo que parecia tardar uma infinidade. Era este que lhes trazia mantimentos. Neste homem, até aqui desconhecido, acalentavam a esperança de um dia os retirar daquele refúgio e, definitivamente, os encaminhar a Paris. Mas foi necessário aguardar mais cinco longos e enfadonhos dias para que o passador, ao alvorecer, os convidasse a descer e seguir os seus passos.
Não hesitaram. Voaram monte abaixo rumo a um pequeno aldeamento que se escondia junto a um penhasco. Foram conduzidos para uma humilde casa rural, habitada por lavradores, e levados para um quarto onde teriam que permanecer, imóveis, mais algum tempo.
Nelo despede-se e informa que, em breve, os viriam buscar para seguirem em direcção a Paris.
No entanto, não foi bem assim que sucedeu. Neste aposento, de pequenas dimensões, do qual apenas se avistavam campos e montanhas, através de uma pequena janela, padeceram horas de tormento, lamúria, arrependimento e, até, desespero.
O cansaço das andanças, as noites mal dormidas, a sede, a fome e o medo abatiam-se, agora, sobre estas almas angustiadas, entregues a um destino impreciso e cruel.
Pouca coragem lhes restava. Contudo, António, rapaz tenro, mas de forte personalidade, continuava optimista, ou, de resto, isso tentava revelar aos seus companheiros para os avivar.
Nesta humilde moradia reinava o silêncio, apenas quebrado, de dia, pela visita do pacato lavrador, aquando da entrega de guarnição. De noite pelo bocejo do gado que pernoitava na parte inferior da casa.
Não lhes faltou comida nem tempo. António conta que:
“(...) o lavrador entregou-nos uma cesta cheia de nozes e uma jarra com água, frequentemente abastecida (...) passamos o tempo a partir e a comer nozes!”
Chega mesmo a afirmar:
“(...) fiquei enjoado de nozes nos 20 anos seguintes!”
E seguindo o seu discurso:
“(...) tínhamos tanto tempo que, certo dia, ocorreu-me cortar o cabelo e o dos meus parceiros, pois, nessa altura, já parecíamos mendigos (...).”
Como o dialecto do camponês Basco era totalmente desconhecido, António, por gestos, pediu, ou pelo menos tentou pedir, que lhe facultassem umas tesouras. O lavrador trouxe-lhes umas tesouras sim, mas, de aparar arbustos. António recorda este episódio, com certo humor:
“(...) com aquelas tesouras arrancava mais cabelos do que aqueles que cortava! O certo é que o nosso aspecto ainda se tornou mais ridículo!”
Os dias iam-se arrastando no tempo e nenhuma notícia surgia. Chegaram ao desespero de pensar em esgueirar-se daquele aposento e procurar qualquer tipo de ajuda ou, até, entregar-se às autoridades.
António, como líder do grupo, tentava acalmar os ânimos dos amigos e afirmava, sem qualquer convicção, evidentemente, que o dia estava prestes a chegar. No entanto, foi numa segunda-feira, de noite, que, em António, ressuscita uma certa esperança:
“(...) Eu tive um sonho! Nesse sonho via uma luz projectada ao fundo de um túnel, parecia chamar-me. Sentia-me obrigado a atingi-la. Semelhava querer retirar-me daquele abismo! O sonho referia-se a uma quinta-feira e de pouco mais me recordo. O facto é que, para mim, significou um sinal positivo! Acordei seguro daquilo que teríamos que fazer! Talvez fosse a última missão, mas teríamos que a cumprir, ou seja, tínhamos que aguardar até quinta-feira. Não foi fácil convencer os outros, mas fui conseguindo.”
Terça e quarta-feira pareceram-lhes os dias mais longos das suas vidas. Nenhum assunto lhes surgia. Restava-lhes esperar, cada um em seu canto, como que nada mais pudessem fazer. Pareciam viver suportados por um mero sonho de António. No entanto, estavam convencidos que esta meta seria vital e decisiva. Se não tivessem notícias favoráveis, partiriam à procura de auxílio.
Chegou o dia, quinta-feira e, bem cedo, se aprestaram para partir. António conta como tudo se passou:
“(...) Sentia-me na obrigação de cumprir esta promessa, aguardar até cair a noite. Por vezes, parecia-me absurdo! Inquietava-me o desespero dos companheiros. Naquele pequeno quarto ninguém se mantinha imóvel, andávamos de um lado para outro, ansiosos e desesperados.”
O dia ia fugindo, nada de novo se passava e, quando já se comentava procurar alternativas, eis que alguém se aproxima e bate na porta. Não hesitaram e logo a abriram. Surge um homem, até aqui estranho, e pergunta:
“Para Paris?”
Após aprovarem o supracitado destino, supérfluo será descrever o modo como os nossos heróis abandonaram aquela casa:
“(...) nem nos lavámos! Saímos de seguida. O lavrador tinha-nos facultado uns baldes com água, mas nem para eles olhámos!”
Lembra António.
Foram levados de carro até uma pequena vila. Aí, dirigiram-se para a estação de comboios, onde os aguardava José Marques, irmão de Aníbal, que já trabalhava em França há algum tempo. Com este seguiram para Paris.
Chegaram a Paris no dia 29 de Setembro. No mesmo dia foram albergados pela empresa em que trabalhava José Marques. O patrão logo se encarregou de emitir os documentos necessários para regularizar a situação, perante o serviço de estrangeiros e, em breve, começaram a trabalhar.
Para concluir esta aventura, resta-me deixá-los com uma frase que algures me soou e considerei curiosa e bastante explícita:
“(...) Pagámos para ir a pé para França e voltámos de avião, em primeira classe, sem pagar um tostão!”
Este emigrante é um dos muitos casos em que as empresas lhes oferecem o bilhete de avião, em primeira classe, para a viagem de regresso ao seu país, quando completos os anos de serviço para auferir da reforma.


::::::::::::::::::::::::::::::::::::  FIM  ::::::::::::::::::::::::::::::::::::



Texto extraído de:

- CASTRO, Joaquim de & MARQUES, Abel (2003). Emigração e contrabando. Melgaço, Centro Desportivo e Cultural de São Paio.


3 comentários:

  1. Parabéns pela história extraordinária.

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  2. Parabéns pela história extraordinária.

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  3. António Martínez Coello1 de novembro de 2023 às 03:45

    Grandiosa epopeya, para lembrar toda uma vida... mas, ainda bem! Outras muito piores me contou Pe. Anibal de muitos de seus parroquianos que ficaram abandoados, lá na fronteira com França e, lá ter de ir ele, atravesar, Espanha, na sua "carocha" para ter depois de se responsabilizar deles ante as autoridades espanholas para chegarem ao destino!

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