sábado, 6 de fevereiro de 2016

Histórias do contrabando em Melgaço noutro tempo

Perto do Peso (Melgaço), à beira Minho, noutro tempo

Desde que há memória, o contrabando sempre constituiu, a par da emigração, uma das atividades económicas mais importantes da população de Melgaço. Mobilizou todo o tipo de pessoas: carenciados e remediados, homens e mulheres, adultos e crianças. Alguns mulheres ocuparam lugares destacados nas redes do contrabando e da emigração. E alguns dos processos mais volumosos arquivados no Tribunal da Comarca de Melgaço dizem-lhe respeito. Muitas entregavam-se ao pequeno contrabando, por conta própria, de ovos, galinhas, café e outras mercadorias. Recorriam, inclusivamente, a pelas de vestuário adaptadas para disfarçar o transporte.
Quanto à participação das crianças, os próprios professores se queixavam das faltas às aulas por motivo de trabalho no contrabando. O seguinte ofício, de 2 de Junho de 1941, dirigido ao Diretor do Distrito Escolar de Viana, é, a este propósito, deveres elucidativo:
“Tenho a honra de comunicar a V. Exa. que, como o demonstra o mapa mensal referente a Maio, a frequência média da 3ª classe desceu de 33, em Abril, para 27. A causa desta anormalidade filia-se na razão de os pais de muitas crianças os mandarem para a “Frota” – nome por que é conhecido o contrabando de ovos e sabão para a Espanha. Tenho empregado os maiores esforços desde o pedido servil até à intimidação, mas como os lucros são fabulosos – uma criança chega a ganhar por dia 30 e 40$00, e a miséria é grande, nada tenho conseguido. Sei que não é esta escola a única a sentir estes perniciosos efeitos do contrabando, pois o mal é geral.”
Nos picos do contrabando, todos os braços eram, efetivamente, poucos. Os homens acorriam de longe, desciam as montanhas para locais como o Peso, face a Arbo, onde ficavam à espera da próxima carga ou descarga, normalmente noturna, para ganhar algumas “senhas”. Era, de facto, costume os transportadores receberem senhas em função das cargas, senhas que eram trocadas, nos dias seguintes, por dinheiro.
Melgaço é um dos concelhos portugueses com maior proporção de fronteira: três quintos do território confinam com a Galiza, num percurso que se estende por 61 Km’s: 22 Km’s de fronteira terrestre e 39 de fronteira (incluíndo os 19 Km’s correspondentes ao rio Minho). O traçado e a extensão da linha de fronteira, associados à intensidade e à diversidade do contrabando e da emigração clandestina, justificam que Melgaço tivesse a maior secção da Guarda Fiscal de todo o Vale do Minho. Em 1961, serviam, neste concelho, 2 sargentos, 16 cabos e 74 soldados distribuídos por 17 postos.
Neste contexto, o contrabando, para ser bem sucedido, carecia de boa organização. Havia vários patrões do contrabando. Alguns juntavam-se constituíndo uma espécie de consórcios, como, por exemplo, o do “Eixo” composto por meia dúzia de “patrões”. Havia os lugar-tenentes, homens de confiança que se distinguiam tanto pela sua capacidade como pela sua lealdade, os capatazes, os condutores, os bateleiros, os transportadores, os informadores... Mais os fornecedores, os intermediários e os clientes. Para além dos recursos humanos, eram ainda necessários meios logísticos: barcos, carros e camiões, para o transporte; meios de comunicação (por exemplo, radiotransmissores); armazéns e esconderijos (visíveis em muitas casas construídas nos anos de 1950 e 1960). Algum investimento em negócios de fachada também era conveniente para encobrir e branquear a atividade do contrabando. Tão pouco podiam  faltar os meios financeiros. A candonga e o mercado negro atingiram dimensões extraordinárias. Multiplicaram-se os postos de câmbios. Devido à emigração e ao contrabando, Melgaço desfrutava, em 1975, de uma das melhores coberturas bancárias de todo o país.
Tamanha complexidade não impedia que as redes do contrabando fossem ágeis e flexíveis, capazes de responder, de imediato e sem falhas, às urgências e pressões do momento: um carregamento imprevisto, uma alteração do plantão da guarda, uma troca de itinerário ou a trasladação da mercadoria de um armazém para outro ditada por uma ameaça de busca...
De qualquer modo, dois ingredientes permaneciam cruciais para o sucesso do contrabando: a confiança recíproca e o saber prático. Interdependentes, os “trabalhadores do contrabando” tinham de confiar uns nos outros, fosse qual fosse o lado da fronteira. Era um jogo muito sério em que competia a cada um (chefe, fornecedor, cliente, transportador, informador e, até, o vizinho) comportar-se segundo as expetativas, ou seja, em conformidade com os seus compromissos e as suas responsabilidades. Caso contrário, a cadeia rompia-se, e, sem ela, pouco ou nada se conseguiria, É certo que, aqui e além, sobrevinham pequenos abusos e algumas picardias. Contam-se, por exemplo, histórias de águas nos odres de azeite e de excesso de peso nas amêndoas humedecidas. Nada, porém, que ultrapassasse os limites ou fizesse perigar a continuidade do negócio.
O saber prático, transmitido de geração em geração ou conquistado pela experiência, orientava, por sua vez, as decisões e as ações quotidianas, referindo-se aos produtos, ao rio, à metereologia, aos trilhos, aos animais (evitar, por exemplo, o ladrar dos cães) e às pessoas. Saberes que davam azo a uma linguagem própria. Toda esta panóplia de recursos, de posturas e de saberes de pouco serviria sem a conivência das autoridades. Importava assegurar e custear a sua cumplicidade. Cobravam à carga ou, mais raro, ao mês. Era, assim, normal a peregrinação de guardas fiscais pelas casas dos “contribuintes” ou, então, a sua presença, discreta mas vigilante, durante o despacho “contabilizado” das cargas. Nem todos os guardas aceitavam colaborar. Dos mais renitentes se ocupavam os próprios colegas. Nas rondas, sempre aos pares, um vigiava o outro. Na primeira ocasião, eram destacados para postos, como, por exemplo, o da Ameixoeira, em Castro Laboreiro, onde o incómodo resultava menor.
Mas o transporte das mercadorias não se confinava à linha da fronteira. Alguns produtos vinham de Lisboa e destinavam-se a Madrid. As pessoas abasteciam-se de ovos nas feiras de Ponte de Lima. Os fornecedores do café estavam sediados em Braga, no Porto e em Lisboa. Por detrás do ouro e da prata, estavam bancos nacionais. Os fios da rede era de ta ordem que, segundo consta, houve períodos  em que o comboio parava ou abrandava antes de chegar às estações, como, por exemplo, a da Frieira, para receber ou largar mercadoria. A simples consulta de processos arquivados nos tribunais, minuciosamente instruídos pela PIDE, elucida-nos sobre quão extensas e labirínticas podiam ser as malhas do contrabando e da emigração clandestina. Boa parte das apreensões de contrabando não era feita nas imediações da fronteira mas nas estradas que ligavam ao Porto ou a Vigo. Era por isso, imperativo “trabalhar” as autoridades a montante e a jusante.

Os ganhos dos pequenos contrabandistas não davam para conquistar as boas graças das autoridades. Sobre eles incidia, precisamente, o seu zelo. Não lhes perdoavam uma galinha e por uma bagatela eram autuados. Mesmo assim, num ou noutro ano, o volume das apreensões não bastava para mostrara serviço às instâncias superiores. Nestas circunstâncias, a fazer fé em vários testemunhos, os principais contrabandistas chegaram a quotizar-se cedendo as mercadorias necessárias para que a “colheita” dos guardas locais conseguisse encher ou tapar os olhos às administrações centrais.

Extraído de: GONÇALVES, Albertino (ano desconhecido) - Caminhos de inquietude: A organização do contrabando no concelho de Melgaço. O Miño, uma corrente de memória.

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