sexta-feira, 4 de março de 2016

Histórias do tempo do contrabando em Melgaço

O contrabando no rio Minho

As memórias do contrabando costumas encantar-nos com narrativas que parecem  retiradas de romances picarescos: as mil e uma artes de ludibriar as autoridades, as reações de esperteza face a desafios imprevistos, a passagem de camiões desmontados nas pequenas embarcações do rio Minho, as solidariedades espontâneas ou as bizarrias de um companheiro. Mas existe uma outra face que espreita por entre estas palavras. O contrabando implicava uma vida de risco, de esforço e de sacrifício. As cargas eram pesadas e mal jeitosas. Uns não se davam bem com o sabão, outros com a chapa, outros com os couros, outros com a amêndoa, outros, ainda, com a tripa. Os sustos de outrora ainda agora arrepiam: uma turbulência no rio escuro ou a intercepção brusca de um agente da PIDE. Apesar da boa organização e do estreito entendimento com as autoridades, não deixava de haver apreensões, multas, dívidas, humilhações, perseguições, prisões, e, até mortes. Mulheres foram encarceradas em cadeias tão distantes como a de Orense. As mortes no rio Minho, às mãos da natureza ou das autoridades, portuguesas ou espanholas, não eram raras. Atente-se na notícia que segue, publicada na década de 1950 num jornal de Melgaço:
“Aparecimento de cadáver – Em 27 do mês findo, apareceu na Valinha, a boiar nas águas do rio Minho, o cadáver de José Fernandes, mais conhecido pelo “Zé do Diabo”, de Penso, que uns quinze dias antes, quando pretendia passar uma pequena porção de café para a Galiza, foi abatido a tiro pelos carabineiros”
Uma entre muitas tragédias. Por exemplo, dois jovens foram mortos a tiro, vítimas, segundo testemunhos, de uma denúncia que os descreveu, ao arrepio da verdade, como perigosos e armados. As denúncias, as ganâncias, os conflitos e as rivalidades também eram fruta da época. Acrescente-se que havia quem se sentisse, direta ou indiretamente, prejudicado nos seus negócios, por sinal legais, com os efeitos do contrabando. A memória desses tempos tem sombras.

O contrabando é uma atividade oportunista que tira partido das vicissitudes da fronteira. Constitui, portanto, um fenómeno bastante instável. Depende do muito que acontece, perto e longe, em Espanha, em Portugal e na relação entre os dois países. O mundo do contrabando é feito de mudança. Em poucos anos, sofre transformações radicais. Ora é mais num sentido, ora se inverte. Um dado produto, como o azeite, ora vai, ora vem. Tal produto ora dá, ora deixa de dar, ora volta a dar. Uma fase, como o do gado, sucede a outra, como a do café. Entretanto, os locais privilegiados de passagem deslocam-se do rio Minho para a raia seca. As vacas, antes “cordeadas” através do rio, caminham, agora, pelos planaltos. Num canto, fecham-se as pequenas lojas, no outro, proliferam as garagens para estacionamento de gado. Mudam os próprios protagonistas: os “patrões” , os “lugar-tenentes”, os “transportadores”, os fornecedores e os clientes deixam de ser os mesmos.
O balanço dos efeitos do contrabando suscita um consenso bastante alargado. Apesar de lucrativo, o negócio do contrabando gerou poucas riquezas. E estas, tal como os filhos, acorreram às cidades e às áreas metropolitanas. O investimento produtivo local resultou deveras escasso. O contrabando não sustentou a descolagem do desenvolvimento económico local, mas garantiu a sobrevivência condigna a uma população ameaçada pela miséria.
Esta espécie de balanço global não deve, no entanto, menosprezar o impacto local do contrabando. Basta percorrer a paisagem para o sentir. Antes da quebra recente, vários “oásis” do contrabando, como S. Gregório (na freguesia de Cristóval), eram animados por um rodopio de pessoas em busca de algum negócio ou de alguma oportunidade. Entretanto, a azáfama desertou, os comércios fecham, as propriedades vendem-se e a população diminui. 
Convém não dissociar o contrabando da emigração. Por um lado, como reparou um entrevistado, “mal o contrabando dava sinais de esmorecer, logo a emigração recrudescia. Todos os dias, partia alguém”.  Por outro lado, o contrabando, tal como a febre do volfrâmio, preparou o terreno para o surto emigratório dos anos 1950 e 1960. Ambos contribuíram para retirar parte da população da rotina do trabalho agrícola. Independentemente desta ou daquela lufada de prosperidade, ambos acalentaram ambições, abriram expetativas e alargaram horizontes. Uma vez dado o passo, ninguém concebia regressar ao antigamente. O volfrâmio e o contrabando propiciaram, também, vivências, conhecimentos e relações passíveis de mobilização noutros contextos e noutras paragens.. Proporcionou-se, em suma, um sentimento de inquietude com asas de esperança, umas das molas mais decisivas da emigração. Não é, certamente, por acaso que Melgaço primou, ao nível do país, tanto pelo contrabando como pela emigração. E, cada um a seu modo, ambos semearam a realidade atual. 

Extraído de: GONÇALVES, Albertino (ano de publicação desconhecido) - Caminhos de inquietude: A organização do contrabando no concelho de Melgaço. O Miño, uma corrente de memória.

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