sexta-feira, 27 de maio de 2016

Memórias de uma passeio por Melgaço em 1903

Vila de Melgaço, vista de sul, no início do séc. XX 
No início do século passado, Melgaço era ponto de interesse para turistas, sobretudo aqueles que procurava no Peso a cura para as suas maleitas. Passaram também pela nossa terra alguns dos maiores vultos da ciência, que aqui se deslocaram para estudar os nossos monumentos bem como os singulares usos e costumes das aldeias do nosso concelho. Um desses vultos foi Guilherme de Oliveira. Dessa visita resultou o livro “Uma Visita ao Real Mosteiro de Fiães” onde nos conta os seus passeios por terras melgacenses. Pelo Peso, Prado até Roussas e Fiães, onde não resiste a contar-nos algumas estórias da sabedoria popular que por lá ouviu. No livro podemos ler “O Minho é o rival da Suíça, no elegante dizer do primoroso estilista D. António da Costa, naquele seu livro, a que deu por título o nome desta encantadora região, aonde alguns antigos quiseram que fossem os Campos Elísios; — o paraíso pagão, segundo Homero, — em que os homens gozavam uma vida doce e tranquila.
Li que, tudo quanto a imaginação dos poetas figurou naquele lugar de paz e bem-aventurança, — parece ser a descrição deste formoso terreno. Há também uma perfeita comparação do Minho, com um mar, que depois de agitado pela maior das tempestades e erguido em ondas temerosas, fosse tornado, de repente, imóvel pela mão do criador, tais e tão vários são os acidentes do solo.
Os montes e os vales que se sucedem lembram as ondas enfileiradas do oceano revolto, havendo sobrepostas naqueles como espumas — pedrenias calvas e ermas — a solidão e o recolhimento; — e no fundo destes, como carinhoso leito, — as verduras e sombras; — a vida e seu ruído.
Isto, vinha-me à recordação, quando trepava pelas escarpadas serras que do Melgaço vão ter ao arruínado mosteiro de Fiães, e descobria as deliciosas paisagens que ante meus olhos surpresos se desenrolavam pelo horizonte fora.
Lá ia eu realizar o meu mais profundo desejo. Lá ia eu cumprir o meu ardente voto; lá ia eu, enfim, — ver e apalpar essas ruínas, de cujas sentidíssimas noticias históricas levava o coração repleto. Na frente, o guia explicava:— Ali, em baixo, é Prado, antiga freguesia. Já teve grandes rendas; — lá está a sua capelinha. Adiante, Remoães, com os seus torreõezinhos e campanários.
— Aqueles telhados, são do estabelecimento das Águas de Melgaço. — Veja daqui, como é bonita a vila, com a sua torre de menagem. Dizem que foi mandada fazer por D. Afonso  Henriques; — ainda lá tem nas muralhas uma porta com o nome deste rei, em uma pedra com mais dizeres, e a data 1170.
— Aquela cinta de muralhas, mais pequenas, é de outro rei.
— D. Diniz, talvez?
— É isso. Já ouvi dizer.
— Estamos agora em Cavaleiros. O nome vem da quinta que pertenceu ao mosteiro. Eu tinha noticia desta propriedade, a qual era essencial em vinhos, e foi doada em 1166, pela condessa D. Frovilla, em tempos do Abade Dom João.
Ha também a suposição de lhe ter sido doada a igreja que lhe era junta, de Nossa Senhora da Ourada, e onde, — diziam os frades, — existiu o mosteiro de S. Bento; fundado quando o de Fiães, de que veio a ser priorado.
Assegura-se, — e disto constam vestígios, — que foi de Cavaleiros Templários, dos quais tomou o nome, e era seu passal. Percebiam-se, há anos, ruínas das celas, claustros, e os encanamentos de pedra, que abasteciam de água o convento.
Lá está Roussas, a igreja do antigo padroado da casa do Paço de Roussas. Era de gente valente e destemida, que se fazia respeitar por aquelas redondezas.
Viveram os abades em demandas contínuas com os de Fiães, durante séculos. Datam de 1340, os primeiros atritos. Em 1349, os de Roussas, quebraram os marcos que dividiam o couto, pelo que tiveram de responder.
Em 1344, com o abade à frente, e armados, foram de noite às terras do convento, e desmolharam as messes de um João Soutello, esbulhando os monges dos seus dízimos.
Condenado o abade Antonio de Castro, não houve quem tivesse coragem de ir-lhe publicar a sentença, por ser pessoa fidalga e poderosa, e morar em lugar ermo — onde se podia fazer mau recado.
Tomou a si, o procurador do convento fazer a citação. Acompanhado do escrivão, meirinhos e mais pessoas, foi a casa do abade, o qual se negou, apesar de estar nela, como o confessou seu filho — um rapaz de dezoito anos, que encontraram a um tiro de besta da pousada.
Prosseguiram as diligências, sem resultado. Então, o de Fiães, obteve do vigário geral de Braga, licença para se dizer missa na igreja do réu, e, em domingo de Ramos, notificou o filho do abade Castro, e o povo que a enchia e era do lugar.
Em 1693, um neto deste abade, Capitão Mór, de acordo com o governador das armas de Melgaço, mandou os soldados praticar desmandos nas terras do couto. Queixaram-se os frades do ódio herdado que esta família alimentava, com prejuízo do sossego e tranquilidade do mosteiro — e nesta vida levaram, os sucessores de uns e de outros, até 1807, em que Francisco de Sá Sotto Maior fez novas demarcações nas terras da freguesia de Roussas, de que era abade, terminando os processos.
Os Senhores do Paço de Roussas, de apelido Besteiros — de antiga família nobre, foram  atingidos pela pobreza.  As suas armas eram em campo azul, uma uma torre fumada em penhas azuis, e três bestas de ouro, uma por cima e as outras aos lados. O solar passou aos Castros, e o padroado, a Manoel Pereira, — o Mil Homens.
Prosseguimos, lentamente, por terras incultas. Apesar de abundantes em águas, só ao longe descobri raras plantações de milho ou de centeio.
No terreno acidentado há montes a prumo, como ameaça tenebrosa à população do lugar. Já há anos, uma dessas molhes imensas desabou lá de cima, e veiu como um cataclismo medonho, destruindo na sua passagem horrorosa, casas, árvores e plantações, na direcção de uma capela da encosta.
No momento em que todos esperavam vê-la arrasada, aquela separou-se em duas que precipitaram-se pelos lados da ermida, deixando-a intacta. Foram muitas as mortes, do que  ficou sentida recordação que ainda perdura, apesar do facto ter-se passado há cerca de trinta anos.
Têem-se repetido estas deslocações, deixando sempre dolorosa reminiscência. Tivemos que retardar o andamento, para abrir caminho por entre rebanhos de grandes e lanzudos carneiros, de cor têrrea, que pastavam, ocupando enorme área que atravessamos. Há tempos, andou por aqui uma fera vinda das povoações galegas, a qual devastou a freguesia. Encontravam-se restos humanos devorados, e o povo vivia aterrado, saindo unicamente de companhia e bem armado. Fizeram-se várias batidas infrutiferas. Começou então o pânico de atribuir à arte do demónio e à feitiçaria, esses factos. Em vista do que reuniram-se os moradores dos arredores, e, depois de bem preparados, fizeram uma grande montaria em todos os sentidos, encontrando apenas uma criança maltratada pela fera, que as vacas, que aquela guardava, providencialmente salvaram, investindo contra o feroz animal e pondo-o em fuga.
Nunca mais dele houve indício ou noticia. Chamou-me à atenção, no meio da serra, — em lugar alcantilado, — uma abertura de mais de metro e meio com porta de ferro.
— Que era aquilo ?
Um velho morador que passava, parou e disse, solenemente:
— Ali, estão escondidos os tesouros dos frades. Quem lá vai, lá fica. Foi a justiça quem mandou pôr o tapamento.
Andava ali tudo maluco com as riquezas e agora acabou-se.
Oh! Os informadores obsequiosos, são terríveis em toda a parte...”  (Extrato retirado de: OLIVEIRA, Gilherme (1903) - Uma visita às ruínas do Real Mosteiro de Fiães. Livraria Ferreira, LIsboa.)

sexta-feira, 20 de maio de 2016

Uma visita às ruínas do Convento de Fiães em 1903

Interior da Igreja de Fiães (Melgaço)
O Convento de Fiães foi, durante vários séculos, uma das instituições mais ricas e poderosas da região. Dizia-se que era o mais rico das Hespanhas. Em 1834, com a extinção das ordens religiosas, o convento foi vendido em hasta pública e pouco a pouco foi caindo aos pedaços. Na viragem para o século XX, já não restam muitas ruínas. Apenas a igreja resiste. No livro "Uma visita às ruínas do Real Mosteiro de Fiães", publicado em 1903, o autor, Guilherme Oliveira, conta-nos o que encontrou quando chegou a Fiães e fala-nos no estado em que se encontravam as ruínas do antigo mosteiro: "Parei. Deixei o animal em que montava, e a pé, comecei por trilhar uma extensa e larga alameda de castanheiros, olmos e carvalhos, sobre o chão claro e plano, que forma a antiga via principal do mosteiro.
Ao centro, há um cruzeiro moderno de pedra, com a data 1875! Representa uma coluna, tendo no alto uma pequena cruz com duas imagens regularmente esculturadas, e de costas entre si. Esta parte, é pintada e dourada de pouco, e a sua conservação está de acordo com a mesma data.
Achei esquisito aquele luxo, em contraposição com tanta coisa abandonada que o rodeia. No fim da alameda, e em seu paralelo, ha uma fonte de excelente e frigidíssima água, com bancos formando um círculo.
Convida o lugar a descanso e meditação. Seguem-se as ruínas. Da torre, que devia ser grandiosa, restam alguns metros de grossas paredes, formadas de grandes pedras desconjuntadas, tendo, mesmo assim nelas cravado, o enorme sino que ainda tange para o
serviço da igreja. Havia neste lugar uns vestígios de muralha, que foram propositadamente demolidos para a construção do cemitério que hoje ali existe, o qual é fechado por moderna grade de ferro.
Agora, o templo. A frente de granito, que o tempo depois de enegrecer decorou com manchas róseas, é de estilo simples e severo, predominando o gótico, de mistura com outros que as reconstruções lhe introduziram.
Tem diversas fileiras de cantaria, — a que chamam gigantes, — a toda a altura, e alguns degraus para o portal, que é do mesmo estilo, pouco ornamentado, sobre o qual, em três nichos, vêem-se as estátuas de pedra de Santa Maria, São Bento e São Bernardo, finamente trabalhadas, sendo de grande delicadeza as mãos e roupas da primeira.
Por cima, em grupo de largas dimensões, o brazão arcebispal, tendo à direita o de Portugal, e à esquerda o de uma rainha nossa que foi da casa de França. Aquele tem a cobri-lo a mitra e o báculo, e este as respectivas coroas.
No adro, que contorna o edifício, há grandes carvalhos seculares, achando-se o que enfrenta o pórtico fendido a meio por faísca, que o dilacerou há muito, vendo-se ainda a sua vestutez. Existem também de pé as paredes frontais de uma parte da ala direita do convento, a qual, como o requeria o lugar, que é de grandes ventanias e temporais tem fortes cantarias.
As janelas e portas são de pequeno formato e sem nenhuma importância arquitetónica. Eram por detrás, os claustros, dos quais ainda se vêem algumas elegantes e finas colunas, sustentando aqui um arco, ali um resto de flecha, e além formando monte.
São bem lançadas as curvas e dignas de atenção. Existem também, dispersas pelo terreno transformado em campo de lavoura, paredes com restos de janelas, ombreiras e escadas, e o lugar da fonte que abastecia o convento.
Examinando a área larga por onde se estendem os vestigios das construções extintas, é que se pode avaliar a grandeza do antigo mosteiro, do qual diz o Padre Carvalho Costa, — que a fábrica e celas dos religiosos foi “cousa grande”, durante muitos séculos em que ali viveram os monges.

Tinha o D. Abade capela particular, — chamada abacial, — a qual está assinalada por pedaços de grossos muros mal conservados. Ali, em um altar, veneravam-se as imagens de Nossa Senhora da Conceição, de grande formato, e outra menor, de S. Bernardo. Havia dependências especiais para as audiências públicas, casas de albergue alpendradas, e um corpo de edifício do uso e estado independente do superior. Era na grande sala da presidência que se resolviam os negócios do convento, na presença do escrivão de Valadares, que lavrava os prazos, fazendo constar essas formalidades com grande cerimonial..."  (Extrato retirado de: OLIVEIRA, Gilherme (1903) - Uma visita às ruínas do Real Mosteiro de Fiães. Livraria Ferreira, LIsboa.)

sexta-feira, 13 de maio de 2016

Melgaço e seu lugar na História de Portugal

Castelo de Melgaço, na viragem do séc. XIX para o séc. XX
Numa publicação de 1890, o “Archivo Histórico de Portugal”, eleva-se Melgaço a um lugar de importância extrema na História de Portugal. Aí podemos ler: “Pertenceu esta vila à casa de Bragança e pelos duques eram dados todos os ofícios.
De Melgaço, são oriundas várias famílias nobres de Portugal, tais como os Marqueses de Nisa, Condessa da Ribeira, Barão de Proença-a-Nova, Castros Pittas, de caminha, e outras ilustres famílias, mais ou menos aparentadas com o antigo senhor da Lapela, morgado de Covas,Gaspar de castro Caldas.
Se Melgaço não é conhecida na sua origem, se não tem a ilustrá-la, nem colunas, nem templos, preciosas relíquias da civilização pagã, a sua História desde os tempos  em que foi povoada pelos cristãos é insuficientemente  honesta e heróica para lhe granjear títulos de nobreza. De quantas vezes a Pátria precisou do seu auxílio, de lá correram valentes e intrépidos patriótas, afrontando perigos determinando-se bravamente a todos os sacrifícios. Nas longas e sucessivas guerras com Castela, os melgacenses souberam sempre honrar a sua terra e a lusitana bandeira.
E não só os homens como também as filhas de Melgaço são heróicas e arrojadas na defesa da integridade do território pátrio. Exemplos têm dado dos seus nobilíssimos sentimentos, e destes vamos fazer a narração de um, que de per si basta a orgulhar as formosas e honestas mulheres desta briosa vila. XX No período que medeia de 1384 a 1393, sustentou Portugal encarniçadas batalhas com os pretendentes castelhanos.
Voltemos, porém ao nosso propósito de exemplificar o quanto valem e o quanto bem merecem da Pátria as mulheres de Melgaço. Permanecia ainda esta vila sob o domínio castelhano, defendendo o castelo Álvaro Paes Sottomayor, alcaide-mor, que tinha às ordens uma guarnição de trezentos infantes e trezentos cavalos. Enfastiado pela resistência, foi o valente D. João I pessoalmente pôr cerco a Melgaço mas os dias decorriam sem haver ensejo para mais do que ligeiras escaramuças sem importância  para a decisão do pleito. Ao décimo dia, o rei guerreiro, já exasperado com a situação, tomou a resolução de mandar fazer um castelo de madeira, que ficasse a “cavaleiro das muralhas”. Vinte dias levou o plano a executar-se. Vendo os inimigos preparar-se um assalto, deram sinal de armistício e mandaram à praça um emissário para entabolarem negociações.
Álvaro Paes, o velho amigo de D. João I, tais condições pôs, que não pode resolver-se coisa alguma, e então o monarca ordenou que se desse o assalto o qual seria por ele mesmo comandado. Deu-se isto pelo ano de 1388. D. João havia-se matrimoniado recentemente com a virtuosa princesa D. Filipa de Lencastre que tão salutar, honesta e gloriosa influência exerceu no ânimo do esposo e na educação exerceu dos heróicos filhos. A jovem rainha estava em Monção com as suas damas e acompanhada pelo famoso João das Regras, sábio mestre e alma da política daqueles tempos. Viera do Porto para ver o esposo real e tencionava residir no convento de Fiães enquanto durasse o cerco. Espírito varonil e angélico ao mesmo tempo, não a atemorizava o perigo, antes dele se aproximava como uma estrela de amor que lançava os seus castíssimos reberveros no coração dos reinvindicadores dos direitos da sua nova Pátria, pátria que a doce e bela rainha tanto amou e soube honrar!
Dentro da praça havia uma mulher destemida, espécie de virago, que sendo naturalde melgaço, renegara a sua origem e se dera de alma e coração aos castelhanos. Ora no arraial dos portugueses, achava-se também uma mulher de muita valentia, do que havia bastas provas.  Esta cujo nome era Inês Negra, abrigava no coração os mais sagrados princípios patrióticos a daria a sua vida pela honra da sua terra. Sabedora e renegada da existência da valente portuguesa nas suas vizinhanças, mandou-a desafiar a um combate singular. Inês Negra não repeliu a proposta, e dirigiu-se imediatamente para o lugar da justa, que ficava a meia distância do arraial e da vila. Chegada ali encontrou a sua antagonista já perfilada, arregaçada e capaz de lutar com o próprio Hércules. Não se intimidou Inês mas antes se encheu de nobre indignação, em presença da desonrada virago que atraiçoara a mãe Pátria. Feriu-se o combate com extraordinário ardor. Parece que ambas andavam armadas, mas não especializa a crónica, a espécie de armas de que se serviram, sabendo-se apenas que essas armas ficaram despedaçadas na refrega. Por fim, valeram-se das unhas e dos dentes. Afinal a Arrenegada, como então se dizia, ficou vencida, rotas as vestes, esmurradas as narinas, escalavrada a cara, e nesse vergonhoso estado de derrota, teve que fugir, deixando como troféus à vencedora, os cabelos e os farrapos do vestuário. Grande foi a assuada que os castelhanos sofreram no arraial português e a nossa destemida compatriota foi vitoriada como de justiça era.
No dia imediato, caia a vila no regaço da mãe pátria, e Inês Negra, guerreira como os guerreiros, lá estava no alto da plataforma do castelo, cercada de besteiros, olhando amorosamente o pendão das quinas, que de novo conquistara o seu lugar. Então, no auge do seu entusiasmo, exclamou de forma triunfal, colocando as mãos sobre os generoso coração que parecia disposto a saltar-lhe do seio: “Mas vencemos-te! Tornaste ao nosso poder. És do rei de Portugal!” Salvé, brilhante heroína de Melgaço! A Pátria agradecida te cobre de bençãos e gloriosa memória!
Durante a guerra napoleónica, não menos digna foi a atitude de Melgaço. Esta foi a primeira praça de armas que sacudiu a jugo do odioso Átila Moderno. Foi dali que partiu o primeiro grito de libertação, e de lá também se levantou a famosa pleiade de valentes, que pondo à sua frente o general Sepúlveda, tão nobremente contribuíram para o resultado da luta. (...) Finalmente, não é a vila de Melgaço rica de pergaminhos artísticos, de que tantas outras povoações se envaidecem, porém a sua carreira histórica dá-lhe foros de ilustre. E os castelhano que com ela defrontar há-de compreender que ali naquele pedaço de terreno frigidíssimo, rude, mal agradecido aos labores do proletário; que ali, sob aquele céu, ora de um azul espelhado e frio como uma lámina de aço polido, ora nevoento e opaco como uma desgraça latente, há corações que abrigam o fogo sagrado dos mais nobiliantes sentimentos.

E poderá pensar que nas veias dos filhos de Melgaço corre um sangue tão puramente português como aquele que gravou na lusitana História. Quando uma povoação tem tão heróicos antecedentes, pode com altivez medir-se em glórias com a mais opulenta cidade!" (Extraído de: Archivo historico: narrativa da fundação das cidades e villas do reino, seus brazões d'armas, etc. (1890), 2ª Série, Typ. Lealdade, Lisboa.)

sexta-feira, 6 de maio de 2016

Melgaço: Regresso às suas origens

Vila de Melgaço há cerca de 500 anos
Numa publicação de 1890 (Archivo Histórico de Portugal) encontramos um texto que faz referência às origens muito antigas e nebulosas da vila de Melgaço. "Fica esta vila na província do Minho, e pertence ao arcebispo de Braga. É praça de guerra, cabeça de comarca e dista 430 kms ao norte de Lisboa e 72 ao noroeste de Braga. A origem de Melgaço perde-se na penumbra da História. Sabe-se que é povoação antiquíssima mas ignora-se quando e por quem foi fundada. Querem uns que a sua fundação fosse devida aos lusitanos, outros que ela fosse obra dos romanos. Não há vestígios de espécie alguma que dêem qualquer ideia do que foi esta povoação na sua primeira idade. Nenhum monumento, nenhuma revelação arquitetónica tem aparecido a fazer luz nesta obscuridade de origem. Que existia no tempo da dominação árabe é incontestável, porém já a este tempo era Melgaço antiquíssima povoação, visto ter D. Afonso Henriques encontrado ali uma grande fortaleza inteiramente arruinada.
Era este castelo denominado castelo do Minho, e foi com certeza construído pelos árabes. Em volta dele apinhavam-se alguns casebres, talvez construídos com o fim de acolherem os seus habitantes à proteção do forte, pois que naqueles tempos não havia segurança longe destes colossos de pedra, que continham em respeito os aventureiros. Qual a importância que tivesse esta vila não é dado. No entanto, o facto de nela terem os árabes edificado uma fortaleza, prova que não era destituída de consideração dos seus possuidores.
No tempo de D. Afonso Henriques, achava-se, porém em míseras circunstâncias, e abandonada pelos seus habitantes. Não são também conhecidas as razões que levaram os mouros a esta migração. Talvez possa explicar-se o facto pela guerrilha acérrima que os cristãos lhes moviam. O audacioso e aguerrido filho do conde D. Henrique, encontrando a terra deserta, mandou-a povoar por cristãos e reedificar-lhe o castelo em 1170.
Em 1197, o Prior de frades crúzios, D. Pedro Pires, mandou à sua custa edificar a fortaleza e a torre. Era este Prior muito abastado de fortuna e dedicado ao engrandecimento do país. O mosteiro a que pertencia era o de Longos Vales. Em 21 de Julho de 1181 deu D. Afonso Henriques o primeiro foral a Melgaço e fez doação da aldeia de Chaviães aos seus moradores."
Tal como as origens desta terra, o topónimo Melgaço anda envolto na bruma da incerteza e deu origem a opiniões contraditórias, absurdas e risíveis, com aceitação de alguns, por entre álgidas cintilações celestes. Trago em meu socorro os grandes mestres de olho de lince para a sapiência toponímica, sem arranjar pretexto para criticar desfavoravelmente esta ou aquela alegação.
José Pedro Machado desembaraça o escorregadio assunto ao sentenciá-lo como de «origem obscura», aventando, contudo, a suposição de provir do latino mellicaceus, e este derivado de mellicus, não afirmava com certa certeza se para significar mel ou melga.
Já José Leite de Vasconcelos dedicou uma escassíssima penada à matéria, em nota de rodapé para aludir a um eventual antropónimo galaico, embora não de forma convincente ou definitiva: «Melgaço parece relacionar-se com o nome de homem Melgaecus, que se lê em inscrições romanas do Minho; o étimo seria Melgaceus igual a Mel-aceus».
Armando de Almeida Fernandes, vai vai na linha de um «nome de raiz pré-romana» melg-, com os sufixos equivalentes –az–azo–aço, tendo em conta a documentação do século XII, onde o burgo aparece grafado com as formas «villa de Melgazo» (1170, 1173) ou «eclesia de Melgaz» (1185). A tal raiz pré-romana melg-, sobrevinda «talvez de “mel” indo-europeu», designa «rocha ou altura».
Por sua vez Joaquim da Silveira defende outra justificação, para ele o «étimo não oferece dúvida», na medida em que Melgaço procede de «melga nome de planta», sendo que «melga é nome comum de uma planta forragínea» conhecida por medicagoalfafa ou luzerna. E, anotamos nós, o vocábulo tem origem no latim vulgar melica.
Na recente opinião de Batalha Gouveia, em abono da sua tese, o topónimo estaria ligado aos vocábulos celto-bretão “mael”«colina», e “cath”«guerreiro», de maneira que Melgaço seria, assim a modos, a “Colina do Guerreiro”.
Longe de cogitar algo conclusivo, o presente artiguelho tem tão-só a finalidade de recensão crítica, apreciar o estado geral do geotopónimo em causa e alinhavar algumas linhas sem fazer uso da luz clara das trevas. A explicação é deveras uma batalha difícil.
Estaremos na presença de “melga” – não, não é o insecto outra vez –, voz aferética de amelga, oriunda provavelmente do celta ambelica, e este composto do préverbo indo-europeu ambi-, que traduz «ao redor». Em tempos antiquíssimos o nome amelga designava «uma facha de terreno que o lavrador assinala para salpicar as sementes com igualdade e proporção».
Na Península Ibérica a geografia mostra, a par da povoação minhota, a existência de outra Melgaço, um mero lugarejo em Alcobaça, uma herdade Melgares no Alentejo, Melgaz (Alvaiázere), e diversas terriolas em Espanha, MelgazaMelgueiras (Galiza), Melgar (Burgos, Zamora, Palencia, Toledo, León e Valhadolid) e Melgares.
Note-se que nenhuma linha das citadas aparece claramente como aquela que claramente explica a origem do nome da nossa terra... .


Informações recolhidas em:
Archivo historico: narrativa da fundação das cidades e villas do reino, seus brazões d'armas, etc. (1890), 2ª Série, Typ. Lealdade, Lisboa.
- José Pedro Machado, Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa, II vol., Editorial Confluência, Lisboa, 1984, p. 974.
- José Leite de Vasconcelos, Revista Lusitana, III volume, p. 152.
- Almeida Fernandes, Toponímia Portuguesa: Exame a Um Dicionário, Arouca, 1999, p.420.
- Joaquim da Silveira, Toponímia Portuguesa (Esboços) – V, in Revista Lusitana, vol. XVII, Livraria Clássica Editora, Lisboa, 1914, p. 118.
- A luzerna é o nome vulgar da Medicago Sativa, erva leguminosa perene da subfamília das papilionadas, com elevado valor nutritivo para produzir forragem para os animais.
- Batalha Gouveia, A Origem dos Nomes – Melgaço, in NOTÍCIAS DE COURA, n.º 152, de 17 de Novembro de 2009, p. 19.
- Pierre David, Études Historiques sur le Galice et Portugal du VI.e XII.e Siècle, Livraria Portugália, Lisboa, 1947.

- Blogue "Escavar em Ruínas".