sexta-feira, 29 de julho de 2016

A misteriosa aparição da imagem da Nossa Senhora de Anamão (Castro Laboreiro)

Capela de Nossa Senhora do Anamão (Castro Laboreiro)
Há mais de 300 anos, o livro Santuário Mariano, publicado em 1712, da autoria de Frei Agostinho de Santa Maria, falava-nos de vários santuário dedicados a Nossa Senhora espalhados um pouco por todo o pais. Em particular, dedica bastantes linhas à capela de Nossa Senhora de Anamão, na freguesia de Castro Laboreiro (Melgaço) e na forma misteriosa como a santíssima imagem apareceu numa concavidade num rochedo. Além disso, dá-nos alguns pormenores da descrição da área envolvente na época. Ora leia:  “Duas léguas e meia da vila de Melgaço entre o ocidente e o meio dia, se vê situada a Vila de Castro Laboreiro. É esta terra montuosa, frigidíssima e de muita neve. A sua paróquia é dedicada a Nossa Senhora com o título de Castro. O seu castelo, que é inexpugnável, está fundado em rocha viva, que uns crêem que seja obra dos Mouros. É esta vila da casa de Bragança e ela pertence a apresentação da sua igreja.
Entre as mais ermidas que tem no seu distrito, uma delas é a de Nossa Senhora de Anumão, nome sem dúvida do lugar do seu aparecimento: esta santíssima imagem é buscada com grande devoção de todos aqueles povos circunvizinhos, pelas muitas e grandes maravilhas que obra.
Vê-se a sua casa situada em um humilde vale junto à raia do Reino da Galiza, metido entre umas serras de penhascos, aonde se manifestou. É tradição constante que apareceu numa concavidade, ou vácuo de um altíssimo penedo, que a natureza parece que formou para concha daquela preciosíssima pérola. Não consta já a quem a esta Senhora fez este favor, se foi a algum pastorinho, ou pastorinha, que por aquele sítio apascentasse algum gado, que não seria muito. Este ditoso inventor vendo a sagrada imagem daria parte da sua felicidade e afim com as notícias, que deu, vieram os moradores daquela vila a ver e a examinar o que se referia. É tradição que por duas ou três vezes, levam a sagrada imagem para a sua paróquia e que outras tantas se ausentará dela e sempre repetirá o seu antigo domicílio: a concavidade da sua pedra. Os da vila, de tão repetidas fugas, entenderam que a Senhora gostava do deserto, pois fugia para ele, e dar-lhe-iam as asas da grande águia para voar para ele, e nisto mostrava a sua vontade.
A entrada para este santuário é numa veiga, ou vale muito plano, e tão grande e dilatado, que em sua circunferência terá cinco para seis léguas. Nele nasce um pequeno rio, que cria regaladas trutas, no qual há uma pequena ponte, que chamam da Pedrinha, que se afirma ser obra dos Mouros. E quando se vai do Porto dos Cavaleiros, se passa por outro limitado ribeiro, pelo qual foi a pé o Santo Arcebispo de Braga, Dom Frei Bartolomeu dos Mártires, a visitar aquela paróquia e Casa da Senhora. Tem a água deste ribeiro virtude para sarar a boca lixosa às crianças e para outros mais achaques, virtude comunicada da presença daquela misericordiosa Senhora, de cujo sítio parece, procede o seu nascimento. Passando o Arcebispo e vendo a aspereza daqueles caminhos e as levantadas serras que cercam aquele vale da Senhora, referem que dissera que tarde tornaria ali outro Arcebispo. Dom Sebastião de Matos de Noronha não o conseguiu. E só em nossos tempos o fez o Eminentíssimo Cardeal D. Veríssimo de Alencastre, quando era Arcebispo de Braga. E para prova da frialdade da terra, baste que o vinho congelasse no Inverno, de modo que para a Missa é necessário aquentá-lo. Obra esta Senhora muitos milagres e prodígios e é buscada de todos aqueles povos e vilas circunvizinhas no tempo do Verão.” (Nota: Fiz a transposição para a escrita atual.)

Extraído de: SANTA MARIA, Frei Agostinho de (1712) – Santuário Mariano e História das imagens milagrosas de Nossa Senhora. Tomo IV; Oficinas de António Pedrozo Galram; Lisboa.

sexta-feira, 22 de julho de 2016

Melgaço nas notícias dos jornais em finais do séc. XIX

Melgaço - Praça da República
Para o artigo de hoje, fui vasculhar notícias de Melgaço na imprensa nacional num dos principais jornais nacionais de finais do século XIX, o Diário Illustrado. Fui sobretudo à procura de notícias de gente comum, não de cidadãos ilustres. Que notícias encontrei? Selecionei algumas, por vezes tão insólitas como trágicas. Ora leia...
Esta dá-nos conta de um incêndio ocorrido em Dezembro de 1884 na rua da Calçada, na vila de Melgaço:

Incêndio. Uma mulher morta.
“Na última quinta feira, manifestou-se um incêndio em uma loja da rua da Calçada, em Melgaço, onde estava depositado algum feno pertencente à viúva Maria Ventura da Costa Pinto.
Tentando apagar o fogo, a pobre mulher foi vítima, morrendo asfixiada, apesar dos esforços que se fez para a salvar.” (notícia extraída do jornal “Diário Ilustrado” de 2 de Dezembro de 1884)

No mesmo jornal, na edição de 23 de Julho de 1885, uma notícia fala-nos de pancadaria na festa da Várzea Travessa, em Castro Laboreiro:
“No dia 11 (de Julho), houve, na freguesia de Castro Laboreiro, concelho de Melgaço, por ocasião de uma romaria a S. Bento, uma desordem.
Foram feridos gravemente dois indivíduos, um com uma facada no ventre e outro com três facadas no rosto.” (notícia extraída do jornal “Diário Illustrado” de 23 de Julho de 1885) .
Na mesma edição, encontramos um resumo de notícias transcritas do jornal “Noticioso de Valença”. Dá-nos conta do mau tempo para as bandas de Castro Laboreiro bem como das movimentações dos soldados em busca de um bando de criminosos que alegadamente estariam escondidos entre Alcobaça e Cubalhão. Neste bloco de notícias, dá-nos também novos desenvolvimento sobre a pancadaria ocorrida na festa de S. Bento na Várzea Travessa (Castro Laboreiro):
Notícias do Alto Minho
“Do Noticioso de Valença, transcrevemos com devida vénia o seguinte:
Continua mau tempo em Castro Laboreiro e sua imediações. Eolo tomou à sua conta os habitantes deste lugar. Os centeios estão completamente estragados e o ano vai mau para os pobres.
Em Galiza, principalmente na província de Orense, consta oficialmente haver sossego, porém as colunas volantes de tropa continuam a percorrer as povoações principalmente as da raia; o que não denota muita confiança da parte do governo espanhol no sossego oficial, principalmente agora que toda a tropa é pouca para reforçar a que peleja no centro e norte do país.
Nos povos da raia portuguesa continua a haver vigilância, havendo correspondência entre as autoridades militares dos dois países.
No dia 15 pelas 11 e ½ horas da noite partiu o destacamento estacionado nesta vila de Castro Laboreiro para o lugar de Lamas de Mouro, onde encontrou o de infantaria 8 de Alcobaça, por ter sido dada denúncia de que em uma bouça acampavam 40 bandidos armados.
Ao romper do dia foi dada minuciosa busca a todo o lugar não se encontrando os bandidos; chegando-se contudo a conhecer que, fora o exagero do número, alguns tinham passado para o lugar de Cubalhão. Uma rapariga de Alcobaça, que passou pelo sítio indicado, disse conhecer o chefe dos bandidos que é o célebre Serrador, desertor de caçadores 7.
Na romaria de S. Bento que teve lugar no dia 11 em Várzea Travessa, houve muita pancadaria e dois feridos graves, feitos por um indivíduo por alcunha “O Lérias”, galego muito conhecido na freguesia e que se acha pronunciado na Galiza por crime de morte. Dizem-me, mas não quero crer, que o tal Lérias é cabo de polícia da freguesia.” (notícia extraída do jornal “Diário Illustrado” de 23 de Julho de 1885)
Por último, por aqueles dias, em Julho de 1885, em Melgaço, em freguesia não mencionada, as notícias falam-nos de do afogamento de um rapaz que caiu ao rio Minho quando andava aos ninhos. Leia a notícia:

“Há dias, andando alguns rapazes procurando ninhos de pássaros junto ao rio Minho, no concelho de Melgaço, um deles caiu de um salgueiro ao rio e foi arrastado pela corrente. Os companheiros não puderam salvá-lo.” (notícia extraída do jornal “Diário Illustrado” de 23 de Julho de 1885)
Andava assim Melgaço naquela época...


sábado, 16 de julho de 2016

Estórias de uma morgada em Castro Laboreiro

Vila de Castro Laboreiro (início do século XX)
No jornal “Diário Illustrado”, na sua edição de 10 de Julho de 1886, encontrámos uma bonita passagem do romance “A Guerra das Carolinas”. A personagem principal,  a Morgada do Pico, estabelece-se em Castro Laboreiro à procura de um reencontro consigo própria, no meio da paz que as terras castrejas lhe poderiam oferecer. Entretanto, deixa-se encantar pelas terras do Laboreiro e pelas gentes locais...
Pela terra e pelo Azul
Uma tarde, a morgada do Pico, havia dois dias hospedada numa choça de Castro Laboreiro, saiu a pé através das asperezas da serra.
O escabroso do solo dava ao cavalo da intrépida amazona um sueto forçado. Relâmpago descansava, se bem que, parecendo dispor de músculos de aço, não precisasse de descanso. Notavelmente inteligente e dedicado, aquele cavalo parecia preferir a morte a ter que ser ser abandonado algum dia pela gentil dama a cujos caprichos obedecia cegamente lançando-se por despenhadeiros que o obrigavam a prodígios de equilíbrio.
A morgada compreendia a dedicação de Relâmpago, que ela afagava de vez em quando, como para premiar-lhe a canseira, e que ela pensava por sua própria mão solicitamente. Nunca o Relâmpago tivera umas férias tão longas, de quarenta e oito horas apenas.
Mas o aspecto montanhoso de Castro Laboreiro, a solidão agreste da serra, a rusticidade quase primitiva dos seus habitantes tinham conseguido demorar por dois dias essa infatigável écuyere para quem a equitação se tornara um hábito e a solidão uma necessidade.
Longe do mundo, entre gente inteiramente indiferente e desconhecida, a morgada do Pico podia respirar ali livremente, furtar-se a olhares curiosos, a perguntas impertinentes. Umas vezes ia sentar-se junto às muralhas do castelo, quase sempre coroado de névoas, porque é húmido e frio o o clima. A aridez do panorama, em que o arvoredo escasseia, achando-se a cultura reduzida a pequenas searas, harmonizava-se, numa consonância pungente, com a aridez desolada da sua alma, crestada pelo bafo ardente de paixões violentas e malogradas.
Outras vezes, próximo da raia, quedava-se cismando junto ao  nicho, aberto em rocha viva, da Senhora de Anamão. A solidão era profunda, silenciosa, morta. O olhar da morgada parecia fixar-se, de tempos a tempos, na imagem da Virgem, e  ninguém poderia dizer ao certo se nesse olhar fuzilava uma blasfémia ou soluçava uma prece, teria aquela desgraçada mulher, cujo coração o amor dilacerava sem esperança, o lenitivo supremo da oração? Não sei. O seu caráter não possuía, como sabemos, a transparência cristalina que deixa sondar os segredos da alma. Fechava-se habitualmente na sua própria tortura. Foi preciso que a paixão a alucinasse, para que a morgada do Pico tivesse um momento de expansão explosiva na presença da Creixomil, quando a procurara em Guimarães.
Em Castro Laboreiro, vivia tão independentemente como num país estranho. Os marialvas minhotos perderam-lhe o rasto, quando ela se internou naquela região montanhosa, que os nevoeiros tocavam...
A gente do sítio, tão boçal como bisonha, não chegava a incomodá-la. Vive ali como ainda na infância da humanidade. A pureza dos costumes tradicionais encontra sempre nas montanhas um baluarte inexpugnável que a defende do contacto da civilização.
A vida é sóbria e simples. O caráter do povo austero e sofredor. O trajo primitivo não foi ainda remodelado pela invasão do figurino. Os montanheses de Castro Laboreiro vestem de brixe ou saragoça, usam polainas de burel e calçam chancas apresilhadas sobre o peito do pé por estreitas correias que se entrecruzam. As lutas da ambição não agitam os ânimos naquela montanha. A população é pobre. No Inverno, a maior parte dos homens emigra para Trás-os-Montes. Dá-se na terra o nome de tapizas a estes “boémio” do rude trabalho dos campos, que na História dos costumes portugueses, fazem pendant aos colonos da Beira que pelo tempo das colheitas vão em chusma ceifar nos campos do Alentejo. Os tapizas do norte correspondem aos ratinhos do sul.
Não era esta uma poplação que pudesse constranger a morgada do Pico, amante da solidão liberrima dos alcantis e do despovoado. Os serranos de Laboreiro viviam numa animalidade pré-histórica, que se mantinha numa ignorância secular da reportagem das gazetas, ainda não inventadas para eles.
Não sabiam quem fosse aquela mulher, que em tão pouco tempo principiara a ser adorada, porque dava dinheiro à crianças e aos velhos.
Era uma louca ou uma desgraçada? Não sabiam, e não tinham a quem perguntá-lo, porque as suas relações com o mundo limitavam-se ao âmbito da sua montanha natal.
Era compassiva e isso bastava. Não era um intruso que incomodasse, mas pelo contrário, um hóspede que se impunha agradavelmente pela caridade.
Nessa tarde em que a morgada metera ao acaso pelos atalhos da serra, o seu espírito atribulado parecia achar nas torturas do sofrimento uma voluptuosidade dolorida, que lhe tornava menos pesada, nesse dia, a cruz do seu destino.
Do fragmento em que fora alcandorar-se, via as casas da vila que se agrupavam a pequena distância do castelo. Notou que junto à igreja paroquial, esse humilde templo, outrora visitado por Frei Bartolomeu dos Mártires e Frei Caetano Brandão, havia um movimento extraordinário de serranos, o fluxo de uma pequena onda de vida, que fenomenalmente animava a paisagem.
- Talvez um funeral?, pensara a morgada. Ah!. Como deve ser bom morrer aqui na tranquila ignorância dos grandes dramas sociais, que acidentam a vida dos povos civilizados. Morreu talvez um tapiza, que sucumbira ao duro trabalho do último Inverno, e que não ambicionava senão vir entregar a sua alma rude e boa ao silêncio da montanha em que nascer e amara. A morte não é ainda aqui um facto indiferente. Tem as honras de um acontecimento local, porque todo este povo constitui uma só família. Nas cidades morre-se sem os vizinhos darem por isso. Que se saia de casa vivo ou morto, pouco importa. Mas neste ermo agreste, onde a vida é patriarcal, cada falecimento provoca um luto público, cuja dor a pobreza do morto torna insuspeita na sinceridade das lágrimas que o pranteiam.
Mas, a breve trecho, o sino da igreja repicara festivamente. A hipótese de um funeral fora posta de parte. Devia ser um batizado ou um casamento. Em todo o caso, um acontecimento anormal, uma festa da povoação.
Mulheres, com o seu traje caraterístico, surgiam em formigueiro à porta do templo. Corriam atrás delas, em enxame revolto, as crianças do sítio, rolando-se no chão, gritando numa alegria quase selvagem, expansiva e bronca.
Depois, o sino repicara apressado, num alegro vertiginoso, como se anunciasse aos ecos da serra o momento próximo da cerimónia religiosa.
Então a morgada do Pico pode ver um rancho de homens e mulheres que se encaminhavam para o templo. À frente, uma mulher e um homem pareciam ser o alvo da ovação estridula, atroadora, que lhes vinham fazendo, - uma espécie de celeuma em que os gritos festivos da multidão podiam dar a ideia de uma boda de indígenas no sertão africano.
Era, reconheceu-o a morgada, uma noce de Castro Laboreiro, profundamente caraterística, sem véu e grinalda na cabeça da noiva, sem traine de faille branco roçagando majestosamente, sem o cortejo nupcial enluvado e engravatado que, no Porto ou em Braga, fazia séquito aos noivos.
Fora grande a impressão que esse inesperado espetáculo produzira na alma da morgada do Pico. Podia ser-se feliz ali!, pensara ela, chegar tranquilamente à santificação do amor pelo casamento. Como devia dilatar-se, cheio de serenidade, o coração satisfeito, na amplidão daquelas serras!
E o seu pobre coração dilacerado, que não conhecia esperança nem descanso, soluçou um queixume tão brando e tão mavioso, que explodiu num plácido orvalho de lágrimas, pequenas pérolas de pranto como aquelas que o azul do céu, alumiado pelo sol nascente, chora às vezes no calix das boninas.
A morgada do Pico chorara!
E a solidão de Castro Laboreiro guardou o segredo destas lágrimas furtivas, talvez as primeiras de uma vida de sofrimento concentrado.”

Texto de Alberto Pimentel.

sexta-feira, 8 de julho de 2016

Melgaço no tempo dos nossos antepassados

Praça do Comércio, na vila de Melgaço em finais do século XIX
No livro “O Minho Pittoresco” de 1886, o autor dedica longas páginas ao nosso concelho e conta-nos como era a nossa terra nessa época. Começa por nos descrever a vila nestas palavras: “Um velho burgo feudal, que se transforma, à força de desejar a luz fecundíssima da civilização. Aquela torre de menagem, erguida como recordação do passado no meio das muralhas em ruína e das casarias, que afloram à cor do branco, tem ainda um aspecto de rude tristeza selvagem. É triste, e é forte, como um antigo guerreiro da Lusitânia. Olhando para essa fita de macadam que lhe chega do sul,e para essas tiras d'aço da via férrea, que vê desenrolar-se na margem galega, dir-se-ia que ela sonha talvez com as escaladas noturnas, as lutas peito a peito, os combates singulares da idade medieval, o cintilar coruscante das armaduras dos guerreiros.
E contudo, quando avistamos de longe o seu vulto sombrio e glorioso, erguendo-se altivo por sobre a povoação, a nossa pupila fixa um ponto branco nas suas ameias, como bandeira de paz, que substituiu os estandartes da guerra. É um marco geodésico, — verificamos quando chegamos perto, — isto é, um padrão que atesta o trabalho moderno da ciência, mas que os ângulos da torre sustentam, sem manifesto ciúme do seu passado de lutas.
E eis aí o que é Melgaço: — a vontade firme de progredir com o desejo de conservar as suas tradições honrosas, de que essa torre, melhor que nenhum outro monumento, representa o símbolo aos olhos dos contemporâneos.
Colocada no centro dum anfiteatro de verdura, onde a vinha enche com a sua cor de esmeralda clara quase todas as bancadas, desse lugar avistam-se as freguesias do concelho, que se estendem pela ribeira Minho e cujos campanários recortam, com as suas arestas pitorescas, a espessura dos arvoredos. Ao sul, a montanha como que nos dá ainda a sua sombra fresca. E em baixo, ao norte, na garganta das colinas, o Minho vai açodado, espelhando apenas um ou outro sorriso, quando vê na margem um esboço de planície a namora-lo com a sua inclinação de leito suave, que o convida a descansar um pouco.
A encosta galega com as suas vinhas, as suas árvores, os seus casais, as suas torres desmoronadas e vicejantes de hera, o anil recortado do alto das suas montanhas sucedendo-se em gradações insensíveis, completa a paisagem, tão bela nas suas linhas simples, tão formosa na sua melancolia fugitiva.
De fundação antiquíssima, Melgaço, ignora-se quem fosse o seu primeiro fundador e qual fosse também o seu primeiro nome. Sabe-se apenas que os árabes, se não os romanos, tiveram aqui uma fortaleza considerável, chamada o Castelo do Minho, que era já ruínas no tempo do conde D. Henrique.
Modernamente, a sua fundação é coeva do principio da monarquia portuguesa e foi Afonso Henriques que a ela procedeu, em 1170, como se vê duma inscrição na porta do norte da actual muralha, sendo todavia a torre e fortaleza mandadas edificar por D. Pedro Pires, prior do mosteiro dos crúzios de Longos Vales, e à sua custa, como diz D. Sancho I na carta de couto que deu ao convento em 1197.
D. Diniz enobreceu também Melgaço com a cinta de muralhas, de que hoje ainda se encontram os vestígios e que eram de pouco mais de dois metros de altura. O primeiro foral foi dado à vila por D. Afonso Henriques em 1181, dando já então aos seus moradores a aldeia de Chaviães. Este foral foi, em S. Tiago, confirmado por D. Afonso II em Agosto de 1219. E, pela segunda vez, em Guimarães por D. Afonso III a 9 de Fevereiro de 1261. Este mesmo rei lhe concedeu ainda outro foral, em Braga, a 29 de Abril de 1258 e novo foral lhe deu mais tarde em Lisboa D. Manuel a 3 de Novembro de 1513.
A vila actual entra decididamente no caminho da civilização. A estrada, que a liga a Monção e Valença, é hoje a sua principal artéria, mas os melgacenses desejam ainda, e com justiça, que as povoações que lhe ficam mais a norte como são S. Gregório, por um lado, e Castro Laboreiro, pelo outro, comunguem igualmente no grande banquete de progresso e luz, a que têm direito. Pobres parias os tristes filhos da serra, para chegar aos quais urge atravessar as mais desabridas montanhas, por caminhos intransitáveis, espiados pelos olhares cubiçosos dos lobos, que são os únicos guardas campestres daqueles solitários terrenos.

Melgaço possui um hospital em condições muito regulares e há pouco tempo também concluiu o seu cemitério. A linha telegráfica foi inaugurada no meio do maior regozijo em Novembro de 1874. Compreendia o antigo e glorioso burgo a importância dessa via de comunicação, que o relacionava com o mundo inteiro.” (Extraído de:
- VIEIRA, José Augusto (1886) - O Minho Pittoresco, tomo I, Edição da livraria de António Maria Pereira- Editor, Lisboa.)

sexta-feira, 1 de julho de 2016

Sobre as origens do Convento de Fiães (Melgaço)

Igreja do Convento de Fiães
Um livro editado em 1903 fala-nos do convento de Santa Maria de Fiães e a dada altura questiona o autor: Quem foram os primeiros “habitadores” do mosteiro? Fala-nos então em algumas pistas acerca das origens deste mosteiro que nos levam até ao século IX. Ainda hoje, a comunidade científica não tem provas concludentes acerca do “nascimento” deste convento em terras melgacenses. Alude também a uma imagem milagreira chamada de Santa Maria de Fiães, já desaparecida. Neste livro, encontramos referências à fundação de uma comunidade de eremitas em Fiães em tempos que permanecem um mistério:
“Ter que rebuscar origens, nas velhas crónicas dos conventos, é ingrato labor a que satisfatórios resultados nem sempre correspondem.
Do seu confronto nasce a dúvida, que nunca se desvanece, por ser tanto mais intrincado o dédalo quanto mais se aprofunda o estudo.
Nesses livros, em que a unção religiosa devia transparecer, da calma e isenção de seus autores, não é raro ver-se aquela perdida, ou esta apaixonada em controvérsia mesquinha, para firmar primazias e direitos que nunca existiram.
Nestas condições, pouco se pode coligir e aproveitar, e ainda por estarem inéditos os principais escritos que a cada passo se encontram citados.
Duas são as ordens que por seus cronistas reclamam a prioridade daquela habitação.
— A Augustiniana, e a Benedictina. Assevera o cronista Frei António da Purificação, da Ordem Augustiniana, que o mosteiro de Santa Maria de Fiães, que está junto ao rio Minho, a distância de uma légua da Vila de Melgaço, foi edificado no anno de 870, e chama a seu favor a opinião de Frei Hieronymo Roman, que na sua História Ecclesiastica de Hespanha, não declarando o tempo da sua fundação, afirma contudo, que no Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, achou memórias de como ele fora em tempos antigos de eremitas d’esta Ordem, acrescentando que as achou também nos cartórios dos Conventos de S. Cristovão de Lafões, e de S. João de Tarouca.
Era naquele ano Sumo Pontífice, Adriano segundo, ou João nono que lhe sucedeu. Reinava, em parte de Hespanha e de Portugal, o inclito Rei D. Afonso Magno, com cujo favor e amparo nos fomos conservando naquele lugar, até ao tempo dos réis portugueses.
Mais tarde, roubado e assolado o convento pelos Mouros, Afonso Paes, e dois irmãos seus que professaram, dotaram-no e repararam-no e o deram à Ordem do Cister que já por esse tempo havia sete mosteiros neste reino.
Tinha o D. Abade, grandes proeminências, as quais o mesmo cronista não quis referir para se não deter com argumento alheio.
Contesta a asseveração feita por Frei Leão de S. Tomás, no prólogo das Constituições da Ordem de S. Bento, de terem vivido neste mosteiro frades de hábito preto, e argumenta que este habito não convinha aos de S. Bento, mas sim, foi e era mais próprio aos da Ordem Augustiniana.
Parece que naquele tempo, já o hábito não fazia o monge. Na obra Beneditina Lusitana, Frei Leão de S. Tomás, — assevera igualmente, — que o mosteiro de Fiães foi, em tempos mais antigos, dos monges pretos da Ordem de S. Bento, e chama a reforçar a sua opinião, a de Frei Bernardo de Braga, e Frei João do Apocalipse, os quais afirmavam que constava isso de uma escritura de descambo ou troca que se fez entre o mosteiro de S. Cristovão e o de Ganfei, da Ordem Beneditina, que no cartório dele se conservava: « Especifica o mesmo padre, em suas memórias, que foi fundado o de S. Cristovão na era de 889, por alguns anos antes, por ser naquele ano que se fez o descambo.”
São Chistovão, foi o primitivo nome do mosteiro de Fiães. Em seguida, nota que o autor da Crónica Augustiniana chamou seu a este convento, o que contesta e espanta-se de também não ter feito de sua Sagrada Religião, um outro de freiras bentas, que ficava próximo ao de São Cristovão, e se chamava de S. Pedro de Merufe. Depois explica com graça a causa da morte deste mosteiro, — que foi a pobreza, repetindo a frase de Diogenes: paupertas non parna agritudo est. A pobreza é grande doença; — isto depois do mosteiro ter tido em seu principio a liberalidade cristã, como mostrava pelo dístico seguinte:
Quas pietas jungens Moniales pristina ditae
Pauperies delet petre Morufe tuas.
Exalta-se por não suceder o mesmo ao de Fiães, que era mais antigo, e estava fronteiro à Galiza, onde as guerras entre Portugal e Castela andavam acesas, servindo o mosteiro de castelo, em defesa do Reino, mostrando-se os padres Cistercienses, tão devotos no coro como Moisés no campo, e rebates tão valorosos
como Josué, tendo por seu capitão ao glorioso São Cristovão governador das armas daquelas partes. Não quis Frei Leão, ter a percepção de que tudo neste mundo acaba, e que a doença que feriu de morte o mosteiro de Merufe, tornar-se-ia epidémica para aquelas casas, como o atestaram o de Fiães, e muitos outros para quem a pobreza também foi grande doença.
O Padre Carvalho, na sua Corografia, assegura que o mosteiro foi de monges Bentos, no reinado de D. Ramiro I, e de sua mulher D. Paterna, da qual supõe ter tomado o nome o Vale de Paderne e admite, por isso, que se ela não foi a fundadora deste mosteiro, foi então do de S. Paio, que existiu no mesmo termo de Melgaço. Isto pelos anos de 851, do que encontrou notícia, sendo aquele referido mosteiro um dos primeiros desta ordem que houve em Hespanha. O anterior título foi, São Cristovão de Fiães, e como pelos anos de 1150 houvesse entrado em Portugal a Reformação da Ordem do Cister, — para a qual passaram os de São Cristovão de Lafões, e de Santa Maria de Bouro, ambos de eremitas de S. Agostinho, — cujos filhos, deixando o hábito preto, vestiram a branca cogula de São Bernardo no ano de 1159: este de São Cristovão de Fiães; — levado também pela fama de grande santidade dos novos filhos de São Bernardo, que haviam vindo de França, — que também foi a melhor coisa que de lá veio, diz Frei Agostinho, — se passaram à sua Ordem, e acrescenta: “Como o exemplo, que é muito poderoso, dos Eremitas, assim os de São Cristovão de Lafões, onde era prelado o nosso Santo Frei João Cerita, como o de Santa Maria de Bouro, mandaram o prior do Convento de Fiães e dois religiosos a pedir aos filhos de São Bernardo a relação de seus Estatutos, e modo de vida, e a que dar obediência ao seu Abade. É de crer que ficando-lhe o Convento do Bouro tão vizinho, a ele recorressem, e que dele se lhe mandasse algum religioso para lhe praticar o modo de sua vida e Santa Reformação. E desde então até ao presente ficou esta casa de Fiães sujeita à Ordem de Cister.»
Depois que receberam a reforma Cisteriense, tomaram para padroeira a Virgem Maria, pela grande devoção que São Bernardo lhe tinha, e deixando o antigo titulo de São Cristovão, passaram a denominar aquela casa: — Santa Maria de Fiães. Assim como é de tradição antiga que os mesmos eremitas, quando voltaram monges, trouxeram consigo uma imagem da Senhora de Fiães, a qual era de pedra branca, com guarnições de ouro, tendo sobre o braço esquerdo o Infante Jesus. Tinha de altura quatro palmos. Após a vinda desta Santa, começaram-se a operar os milagres naqueles que com fé viva a ela recorriam. Diz mais:

«Esta Santa Imagem, já hoje não existe, que a devia acabar o tempo. Foi muito grande incúria daquele mosteiro não a mandar reparar, por que a cabeça e mãos, que eram encarnadas, não se podiam desfazer, e o corpo podia-se consertar com algum betume, de gesso pó de pedra com cera. Depois mandaram fazer outra, que colocaram em seu lugar.”  (Extrato retirado de: OLIVEIRA, Gilherme (1903) - Uma visita às ruínas do Real Mosteiro de Fiães. Livraria Ferreira, LIsboa.)