sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Melgaço em tempos de guerra

Fiães (Melgaço)
Em 1827, durante a Guerra Civil em Portugal, os combatentes leais à causa absolutistas são escorraçados para norte pelos liberais até Melgaço, refugiando-se muitos deles em terras galegas. Aqui encontram apoio e tentam por esta altura várias incursões em território nacional, especialmente pela linha raiana do rio Trancoso. Disso dá conta um documento da época um oficial do exército liberal: “Ponte do Mouro, 9 de Janeiro de 1827 – Os rebeldes entraram em Alcobaça no dia 7 pelas 8 horas da manhã surpreendendo toda a guarnição de 56 praças que ali estavam. Dois homens que escaparam, quando chegaram a Fiães, mandou logo o Tenente Coronel Pimentel do Regimento de Caçadores nº 12 destacar o Tenente Montenengro com 100 baionetas para os encontrar e ficando ele em posição de o reforçar, os rebeldes marcharam à beira do regato limítrofe (rio Trancoso) abaixo em direção a Pousafoles, onde subiram com destino de ir a Fiães e sendo perseguidos na subida de uma ladeira formidável, foram encontrados pelo Tenente de Caçadores Falcão, que estava com o Comandante, que dando-lhe alguns dos milicianos vários tiros, eles avançaram ao som de cornetas e deram-lhe uma enorme descarga.
Debandando tudo de Fiães, os rebeldes dirigiram-se a S. Gregório aonde primeiro do que eles, alguns paisanos do mesmo povo principiaram a fazer fogo às nossas milícias, que então se retiraram pela beira Minho, deixando a estrada de Melgaço e foram ter a Penso.
Nessa noite, retiramo-nos de Melgaço com o resto da tropa que havia, por temermos ser cortados, ou pela estrada de Pomares que vai dar a Penso, ou pela de Cubalhão que vai dar à Ponte do Mouro e viemos fazer ponto de reunião ali.

Não se perdeu de bagagens, e nada ficou da fazenda.”





Extraído de: O Spectador Brasileiro. Jornal Político, Literário e Commercial. Nº 41. Edição de 11 de Abril de 1827.

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

O Concurso Tradicional do Cão de Castro Laboreiro de 1969 (Parte 2)

Cão de Castro Laboreiro
Partilho com vocês a segunda parte da reportagem sobre o Concurso Tradicional do Cão de Castro Laboreiro de 1969. "Ouço os juízes na suas conversas de peritos e acompanho-os no seu vaivém por entre os cães, na pequena praça de terra solta e pedregulho. Têm papéis nas mãos e chamam pelos cães e pelos respectivos proprietários. Adianta-se uma mulher, um vulto negro, os tamancos abater, a capa descendo pelas costas, o rosto emergindo a custo do lenço negro. À trela, o seu cão. No pescoço do bicho, uma coleira com pregos. Há lobos na serra.
É o «Mondego».
- Este tem boas mãos - diz um dos juIzes - o osso é bom, mas não acredito que tenha só seis meses...
- Juro-lhe, Senhor. Seis meses. Se quiser, vou buscar a vacina...
- Os juizes cochicham:
«Este bicho deve ter passado fome, tem sido mal tratado. Três meses, sim, é o que parece que tem».
Outro cão. Os mirones - quase tudo gente da terra e uma vintena de «pessoas da cidade» que subiram à serra por gosto do espectáculo e na mira de poderem comprar um exemplar - escutam em silêncio ou falam em voz baixa. Os juízes continuam.
-Corra lá com o cãozinho até àquela cruz... Isso. Agora, venha para cá. Mostre-me os dentes do cãozinho... Assim, não: com os beiços fechados. Pronto, pode ir para ali e esperar.
Passou o «Mondego», passou o «Leão». Depois, o «Bobby», o «Lírio», a «Jóia», a «Lula»... E também um cão - imagine-se - chamado «Mundano de Giela» !
-Faça o favor de ir até à cruz.
-Quantos anos disse que ele tinha ?
-Abra a boca do cão, por favor. .. Obrigado.
Concurso Tradicional do Cão de Castro Laboreiro
Mais cochichos dos juízes: «Este é um rico cachorro. É pena ter aquelas brancas». E em voz alta:
- Ora mostre lá os grãos do cãozinho...
Os dois Juizes sabem o que fazem. Andam para cá e para lá, conversam, escrevem coisas nos papéis, dividem os cães para um e outro lado. E dizem: «A cabeça deste é boa, as orelhas caem bem, são placadas, a ossada é boa...» Ou então: «Este está muito bem para a idade. Só é pena ter a cauda um bocadinho fina, a enrolar na ponta, exactamente por ser fina. Depois, aquelas malhitas nas pernas. É pena...»
O dinheiro que vem de França entra nas arcas, nos bancos, transforma-se em casas. As casas «dos franceses», aquela gritante, maquiavélica orgia de cores que não há, casas de telha francesa e não de colmo, como antigamente. Do meio da praça, vejo uma única casa coberta de colmo. As outras são modernas e feias. Falta saber, na serra, iuntar a beleza ao conforto. Mas a culpa não é dos franceses, pois não ?
Um dos lados da praça - o Largo do Eirado, informa-me o padre Aníbal - é tapado por uma igreia de pedra. Estilos misturados. Há um sino grande, novo - parece-me. A primeira pedra da igreia tem mais de oito séculos; a torre, a capela-mór e o coro são do século dezoito (exactamente de 1755, o ano do terramoto de Lisboa). E a pia baptismal é uma relíquia com 800 anos.
Não se imagina a quantidade de história que há naquele largo e naqueles montes cheios de nevoeiro e de vento, povoados por javalis e lobos e onde outrora se acoitavam poderosos ursos. Quanto à presença humana, sabe-se - julga saber-se - que, nas suas origens mais remotas, o povo daqueles montes e vales teria pertencido a um fabuloso continente desaparecido sob as águas, a Atlântida;  muitos anos mais tarde, a gente da serra descendia de estraménios, serpes, brácaros e galécios (ou galegos). E as casas de então permaneceram iguais durante séculos, umas, redondas, outras, quadrangulares. Todas cobertas de colmo.
Um dia, foi construido um castelo nas alturas - e ainda lá está - e nos registos da terra podem encontrar-se, ligados a este ou àquele acontecimento, e para aquém dos conquistadores romanos, nomes como o de D. Afonso III, e de D. Dinis, ligado com a transformação da Ordem de Cristo (1314)... Quanta história naquele pequeno Largo do Eirado !
As viúvas estão ao lado dos seus cães. Os senhores juizes chamam pelos nomes dos bichos e dos proprietários premiados. Os mirones aplaudem. As mulheres de negro sorriem. Uma recebe a taça, a medalha, aperta a mão ao senhor doutor, à moda da cidade. De resto, todas aquelas pessoas parecem ter muito boas maneiras. E, sobretudo, uma enorme tranquilidade. O dinheiro, por enquanto, só terá estragado a arquitectura.
Uma pessoa da cidade pergunta:
- Então como se chama o seu cão ? -«Leou».
- «Leou»? Você não quer dizer «Leão»?
- Não, senhor. Quando o bicho era pequenino, pensámos que era uma cadelinha e pusemos-lhe o nome de «Leoa». Depois, vimos que era um cachorro... E ficou «Leou».
As pessoas da cidade passam a história de umas para as outras e riem, com medida. As pessoas da cidade não podem ser menos educadas do que a gente da serra. A gente da serra vive do dinheiro que vem de França mas também cuida dos seus rebanhos, o excelente gado barrosão, e colhe batata e centeio.
E tem um costume curioso: divide o ano entre o tempo das verandas e das inverneiras, correspondendo o primeiro aos meses de bom clima e o segundo aos de frio, neve e chuva. 500 fogos civis e umas 2000 almas em Castro Laboreiro, que depende do arciprestado de Melgaço e da diocese de Braga. O presidente da Junta, o regedor da freguesia e o padre são as autoridades da terra.
O Largo do Eirado vai ficando vazio de gente. As pessoas da terra partiram com os seus cães, premiados ou não, as pessoas da cidade metem-se nos seus automóveis e descem pela estrada que acaba e começa em Castro Laboreiro.
Caía o pano (o nevoeiro, a noite) sobre as casas de telha francesa, sobre o Concurso de Cães de Castro Laboreiro. No primeiro ano, tinham aparecido apenas dois bichos autênticamente daquela raça, mas, de ano para ano, o número aumenta. E para que serve tudo aquilo? É fácil responder: o objectivo é manter nas raças caninas indígenas as suas características étnicas e as suas aptidões rácicas, tendo-se em conta que «evoluções impostas por necessidades fisiológicas ou de trabalho, por alterações das condições ambienciais ou outras, podem modificar, funcional ou morfológicamente, as raças e provocar correcções nos seus standards ou levar, até, à criação de novas raças ou ao ressurgir de raças desaparecidas». Alguém poderá duvidar da utilidade de concursos como este de Castro Laboreiro?
O nosso grupo foi o último a deixar o Largo do Eirado. O padre Aníbal, no seu riso de Fernandel (ou D.Camilo ? ...Ah, falta-lhe o Peppone !), acena-nos um até ao ano. Mas já sabemos: o dia do concurso tem de ser antes da abertura da caça: ele, padre Aníbal, não quer voltar a perder outra jornada sem uns tirinhos aos pássaros.
E a noite fechou-se sobre o Largo do Eirado, sobre a igreja, sobre a história. Sobre uma amachucada bola de plástico; toda suja de lama, num canto, em Castro Laboreiro.

In Jornal “O Mundo Canino” – Novembro de 1969.

Para ler a Parte 1, CLIQUE AQUI

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Documentário "Trabalhadores do contrabando": ex-contrabandistas falam na 1ª pessoa


“Trabalhadores do contrabando” é o nome de um documentário produzido na Galiza que nos fala desta atividade tão antiga como a existência das fronteiras. Ouça ex-contrabandistas melgacenses e de Arbo a falar sobre esses tempos onde o contrabando era um verdadeiro “modo de vida”, essencial para a sobrevivência de muitas famílias em tempos difíceis..... Veja o vídeo completo!

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

O Concurso Tradicional do Cão de Castro Laboreiro de 1969 (Parte 1)

Concurso do Cão de Castro Laboreiro (1969)
A publicação "O Mundo Canino", numa edição de 1969, conta-nos numa reportagem, como foi o Concurso Tradicional do Cão de Castro Laboreiro desse ano, realizado nesta localidade. Na dita peça jornalística, podemos ler que "Aquele ia ser um dia diferente, mesmo dentro da concepção do que deve ser o quotidiano de um jornalista: observação, retenção, descrição - e, eventualmente, crítica - de acontecimentos vários, originais, inesperados. E ia ser diferente porque não é vulgar, no contexto multimodo da profissão, um jornalista ocupar toda a sua jornada de trabalho com uma reportagem em que o cão é o assunto. Mais do que o cão, um cão. E por causa de um cão específico me levantei mais cedo e jordaneei, pela fresca, Portugal acima, rolando com o mar à esquerda, até chegar ao ponto onde um rio é fronteira e, depois, acompanhando o rio no sentido leste, rumar à vila de Melgaço, onde começaria a trepar para a povoação de Castro Laboreiro. Era aí que me esperava o meu cão.
Concurso do Cão de Castro Laboreiro (1969)

A viagem, com muitos atractivos paisagísticos e a breve paragem para o almoço, num afamado restaurante de Monção, foram pormenores acessórios da empresa; o objectivo era Castro Laboreiro e a anunciada cerimónia em que os cães que da terra tiveram o nome iriam ser vedetas.
Por isso, e contra o que seria normal, não demos ouvidos à voz do mar, ignorámos as sugestões da folhagem cor-de-fogo e dos povos de casas baixas, antigas e sólidas, atentámos no nevoeiro apenas porque a sua presença em farrapos húmidos nos permitia, unicamente, visões parceladas do caminho e, quando o destino estava próximo, um contacto mais íntimo com as fugidias pessoas e coisas que já sabíamos fazerem parte do «habitat» do nosso «herói» da jornada, o Cão de Castro Laboreiro.
Mas que ia passar-se, afinal, em Castro Laboreiro? Para quê toda esta história de viagem com fim determinado, na senda de um cão?
Tudo principiara com uma conversa, uma alusão, um convite. Em Castro Laboreiro, lá para a serra, ia reallzar-se um concurso anual de cães. Não um desses certames muito reclamados e muito elegantes onde o desfile das damas e donzelas pretende rivalizar, em porte, elegância, distinção e raça, com o próprio desfile dos galgos, dos «caniches», dos «podengos», dos «danois» e dos «foxes». Este era um concurso especial, tão puro como a serra, tão inocente como as pessoas, que com os cães, iriam desfilar. Tal promessa me houvera sido feita, na véspera deste dia diferente em que subi aos píncaros de Castro Laboreiro, acima do nevoeiro e para lá - ou antes - da civilização e dos seus complicados rituais.
E pronto, eis-nos chegados ao fim da estrada, ao cume da terra, à povoação pendurada chamada Castro Laboreiro, que é onde um certo cão «tem o seu solar» e «donde tirou o nome».
O padre Aníbal, abrindo um sorriso com tantos dentes como há nos sorrisos de Fernandel, dirigia a festa.
 Após as apresentações, ficou-se a saber que o padre Aníbal era um apaixonado pela Natureza, um devoto de Santo Huberto («Dou os meus tirinhos, gosto de os dar - aos pássaros, não às pessoas, evidentemente!», dizia o padre, num grande sorriso) e um dos responsáveis pelo brilho já tradicional daquele concurso quase ignorado.
Quase ignorado, é verdade, mas sem que isso impeça que o Concurso de Cães de Castro Laboreiro se realize há dezasseis anos consecutivos, e com progressivo aumento de interesse e repercussão. Conforme se pode ler no Regulamento do Concurso, este é «organizado pela Intendência de Pecuária de Viana do Castelo, de acordo com o Regulamento Oficial de Exposições Caninas e com o patrocínio do Clube Português de Canicultura, na sede da freguesia de Castro Laboreiro, do concelho de Melgaço», admitindo a inscrição de cachorros (entre 6 e 12 meses de idade) e de todos os animais da raça «Castro Laboreiro» com idade superior a 12 meses, estes numa «classe aberta».
E ali estava eu, no meio duma praça de aldeia, debaixo dum céu de chumbo e rodeado de nevoeiro aos farrapos, a olhar o povo aglomerado, na expectativa da função. Os cães, esses entretinham o tempo com o que é próprio dos cães: davam ao rabo, esticavam as trelas e conversavam, ladrando.
Seriam vinte, talvez vinte e cinco. À primeira vista, um leigo diria serem todos iguais, ou quase todos, mas o mesmo sucede quando a gente vê desfilar, sem preocupação de pormenor, as «misses» de um qualquer Concurso de Belezocas: todas tão certinhas e tão «misses» como se da mesma forma houvessem saído, para venda nos bazares a um preço fixo.
O caso é que - manda a lógica pensá-Io - se concurso havia, existiriam diferenças. Como com as «misses». E já se veria.
Os juizes eram dois: o Dr. António Cabral, presidente do Clube Português de Canicultura, que tinha vindo expressamente de Lisboa para o efeito, e o Dr. Teodósio Antunes, veterinário em Viana do Castelo. Eles decidiriam quais os bichos que mereceriam distinção gradual e prémio consentâneo. Sim, porque ali havia taças, medalhas e dinheiro à vista em disputa.
Agora, os concorrentes. Vinte, disse? Vinte e cinco? Por aí. E todos rigorosamente «Castro Laboreiro», de pelo grosso, liso curto, na cor mais habitual e preferida...
Os cães estavam pela mão dos donos. Coisa curiosa: percentagem esmagadora de mulheres, dois homens, e um rapazinho. Os homens eram velhos, cansados, lentos. As mulheres estavam todas (bem, menos uma) vestidas de preto, saia e blusa, capa barrosã pelos ombros e meias pretas (em certos casos, protegidas com uma espécie de safões curtos); nos pés, umas botinas de couro, rijas e cardadas, com aspecto de intermináveis. Coisa para gastar os trilhos da serra.
E as caras dessas mulheres, dessas raparigas, dessas meninas sem idade! Todas com menos anos do que poderia supor-se pelas caras queimadas, marcadas, riscadas de rugas, modeladas pelo vento, pelo frio pelo nevoeiro, pela monotonia, pela espera...
Pela espera de quê? De quem?
Dos homens delas, dos pais delas, dos filhos delas. Em 1918, após a Primeira Guerra Mundial, os homens de Castro Laboreiro desceram a serra, encafuaram-se no comboio e foram para França. As primeiras centenas de escudos ganhos com o suor do emigrante vieram como compensação das ausências e como chamariz de mais homens. As mulheres foram ficando sozinhas. E começaram a vestir-se de preto.

A certa altura, os homens deixaram-se ficar descansados na serra. Depois, voltaram a partir. Hoje, quase todos os homens de Castro Laboreiro estão em França a fazer casas muito altas, a calcetar ruas, a sonhar e a ganhar fortunas. As mulheres deles, em Castro Laboreiro, são todas viúvas. Não só as mulheres-esposas: também as mulheres-filhas, as mulheres-mães. Viúvas, todas elas, viúvas de homens vivos..."    (CONTINUA)

Extraído de: O Mundo Canino (1969)