sexta-feira, 21 de outubro de 2016

O Concurso Tradicional do Cão de Castro Laboreiro de 1969 (Parte 2)

Cão de Castro Laboreiro
Partilho com vocês a segunda parte da reportagem sobre o Concurso Tradicional do Cão de Castro Laboreiro de 1969. "Ouço os juízes na suas conversas de peritos e acompanho-os no seu vaivém por entre os cães, na pequena praça de terra solta e pedregulho. Têm papéis nas mãos e chamam pelos cães e pelos respectivos proprietários. Adianta-se uma mulher, um vulto negro, os tamancos abater, a capa descendo pelas costas, o rosto emergindo a custo do lenço negro. À trela, o seu cão. No pescoço do bicho, uma coleira com pregos. Há lobos na serra.
É o «Mondego».
- Este tem boas mãos - diz um dos juIzes - o osso é bom, mas não acredito que tenha só seis meses...
- Juro-lhe, Senhor. Seis meses. Se quiser, vou buscar a vacina...
- Os juizes cochicham:
«Este bicho deve ter passado fome, tem sido mal tratado. Três meses, sim, é o que parece que tem».
Outro cão. Os mirones - quase tudo gente da terra e uma vintena de «pessoas da cidade» que subiram à serra por gosto do espectáculo e na mira de poderem comprar um exemplar - escutam em silêncio ou falam em voz baixa. Os juízes continuam.
-Corra lá com o cãozinho até àquela cruz... Isso. Agora, venha para cá. Mostre-me os dentes do cãozinho... Assim, não: com os beiços fechados. Pronto, pode ir para ali e esperar.
Passou o «Mondego», passou o «Leão». Depois, o «Bobby», o «Lírio», a «Jóia», a «Lula»... E também um cão - imagine-se - chamado «Mundano de Giela» !
-Faça o favor de ir até à cruz.
-Quantos anos disse que ele tinha ?
-Abra a boca do cão, por favor. .. Obrigado.
Concurso Tradicional do Cão de Castro Laboreiro
Mais cochichos dos juízes: «Este é um rico cachorro. É pena ter aquelas brancas». E em voz alta:
- Ora mostre lá os grãos do cãozinho...
Os dois Juizes sabem o que fazem. Andam para cá e para lá, conversam, escrevem coisas nos papéis, dividem os cães para um e outro lado. E dizem: «A cabeça deste é boa, as orelhas caem bem, são placadas, a ossada é boa...» Ou então: «Este está muito bem para a idade. Só é pena ter a cauda um bocadinho fina, a enrolar na ponta, exactamente por ser fina. Depois, aquelas malhitas nas pernas. É pena...»
O dinheiro que vem de França entra nas arcas, nos bancos, transforma-se em casas. As casas «dos franceses», aquela gritante, maquiavélica orgia de cores que não há, casas de telha francesa e não de colmo, como antigamente. Do meio da praça, vejo uma única casa coberta de colmo. As outras são modernas e feias. Falta saber, na serra, iuntar a beleza ao conforto. Mas a culpa não é dos franceses, pois não ?
Um dos lados da praça - o Largo do Eirado, informa-me o padre Aníbal - é tapado por uma igreia de pedra. Estilos misturados. Há um sino grande, novo - parece-me. A primeira pedra da igreia tem mais de oito séculos; a torre, a capela-mór e o coro são do século dezoito (exactamente de 1755, o ano do terramoto de Lisboa). E a pia baptismal é uma relíquia com 800 anos.
Não se imagina a quantidade de história que há naquele largo e naqueles montes cheios de nevoeiro e de vento, povoados por javalis e lobos e onde outrora se acoitavam poderosos ursos. Quanto à presença humana, sabe-se - julga saber-se - que, nas suas origens mais remotas, o povo daqueles montes e vales teria pertencido a um fabuloso continente desaparecido sob as águas, a Atlântida;  muitos anos mais tarde, a gente da serra descendia de estraménios, serpes, brácaros e galécios (ou galegos). E as casas de então permaneceram iguais durante séculos, umas, redondas, outras, quadrangulares. Todas cobertas de colmo.
Um dia, foi construido um castelo nas alturas - e ainda lá está - e nos registos da terra podem encontrar-se, ligados a este ou àquele acontecimento, e para aquém dos conquistadores romanos, nomes como o de D. Afonso III, e de D. Dinis, ligado com a transformação da Ordem de Cristo (1314)... Quanta história naquele pequeno Largo do Eirado !
As viúvas estão ao lado dos seus cães. Os senhores juizes chamam pelos nomes dos bichos e dos proprietários premiados. Os mirones aplaudem. As mulheres de negro sorriem. Uma recebe a taça, a medalha, aperta a mão ao senhor doutor, à moda da cidade. De resto, todas aquelas pessoas parecem ter muito boas maneiras. E, sobretudo, uma enorme tranquilidade. O dinheiro, por enquanto, só terá estragado a arquitectura.
Uma pessoa da cidade pergunta:
- Então como se chama o seu cão ? -«Leou».
- «Leou»? Você não quer dizer «Leão»?
- Não, senhor. Quando o bicho era pequenino, pensámos que era uma cadelinha e pusemos-lhe o nome de «Leoa». Depois, vimos que era um cachorro... E ficou «Leou».
As pessoas da cidade passam a história de umas para as outras e riem, com medida. As pessoas da cidade não podem ser menos educadas do que a gente da serra. A gente da serra vive do dinheiro que vem de França mas também cuida dos seus rebanhos, o excelente gado barrosão, e colhe batata e centeio.
E tem um costume curioso: divide o ano entre o tempo das verandas e das inverneiras, correspondendo o primeiro aos meses de bom clima e o segundo aos de frio, neve e chuva. 500 fogos civis e umas 2000 almas em Castro Laboreiro, que depende do arciprestado de Melgaço e da diocese de Braga. O presidente da Junta, o regedor da freguesia e o padre são as autoridades da terra.
O Largo do Eirado vai ficando vazio de gente. As pessoas da terra partiram com os seus cães, premiados ou não, as pessoas da cidade metem-se nos seus automóveis e descem pela estrada que acaba e começa em Castro Laboreiro.
Caía o pano (o nevoeiro, a noite) sobre as casas de telha francesa, sobre o Concurso de Cães de Castro Laboreiro. No primeiro ano, tinham aparecido apenas dois bichos autênticamente daquela raça, mas, de ano para ano, o número aumenta. E para que serve tudo aquilo? É fácil responder: o objectivo é manter nas raças caninas indígenas as suas características étnicas e as suas aptidões rácicas, tendo-se em conta que «evoluções impostas por necessidades fisiológicas ou de trabalho, por alterações das condições ambienciais ou outras, podem modificar, funcional ou morfológicamente, as raças e provocar correcções nos seus standards ou levar, até, à criação de novas raças ou ao ressurgir de raças desaparecidas». Alguém poderá duvidar da utilidade de concursos como este de Castro Laboreiro?
O nosso grupo foi o último a deixar o Largo do Eirado. O padre Aníbal, no seu riso de Fernandel (ou D.Camilo ? ...Ah, falta-lhe o Peppone !), acena-nos um até ao ano. Mas já sabemos: o dia do concurso tem de ser antes da abertura da caça: ele, padre Aníbal, não quer voltar a perder outra jornada sem uns tirinhos aos pássaros.
E a noite fechou-se sobre o Largo do Eirado, sobre a igreja, sobre a história. Sobre uma amachucada bola de plástico; toda suja de lama, num canto, em Castro Laboreiro.

In Jornal “O Mundo Canino” – Novembro de 1969.

Para ler a Parte 1, CLIQUE AQUI

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