sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Manuel Alves de San Payo, um dos maiores artistas melgacenses do séc. XX


Manuel Alves de San Payo é natural da freguesia de S. Paio, deste concelho de Melgaço, nascido em 16 de Abril de 1890. É considerado um dos maiores mestres da fotografia do século XX em Portugal, tendo sido fotógrafo do próprio Oliveira Salazar.


Manuel San Payo com o seu pai, Manuel Alves

Originalmente chamado Manuel Joaquim Alves, adotou depois o nome Manuel Alves de San Payo, em homenagem à sua freguesia de origem, e foi um muito aclamado fotógrafo retratista português, com atividade entre os anos 20 e 50 do século XX. Passou alguns anos no Brasil para depois regressar a Lisboa, onde instalou um estúdio de retratos fotográficos de renome na altura, principalmente devido aos “processos artísticos” pictorialistas que empregava nas suas fotografias.
Além de fotógrafo, foi cineasta, conferencista e publicista. Desde muito novo, revelou grande inclinação para as artes plásticas. Em 1902 ingressou no Seminário de S. António e S. Luís de Gonzaga, de Braga, tendo completado os preparatórios em 1909. Abandonando o seminário, emigrou para o Brasil, onde se empregou no comércio. Durante algum tempo, frequentou o liceu de Artes e Ofícios, onde aprendeu desenho. Empregou-se, depois, numa oficina fotográfica, como retocador, até que, por conta própria, começou a dedicar-se à fotografia. Fez exame de admissão à Escola Nacional de Belas Artes, do Rio de Janeiro, exame de cultura geral, tendo frequentado as aulas de desenho e pintura durante um ano. Depois começou a escassear-lhe o tempo e desistiu. Realizou diversas exposições: na Casa Castanheiro Freire, em 1924; na Casa Aguiar, em 1925; no Rio de Janeiro em 1926; em Petrópolis, em 1925; no seu estúdio, em Lisboa, em 1930; na Sociedade Nacional de Belas Artes, em 1937; no S. N. I., em 1950.
Escreveu em várias publicações, artigos da especialidade, tais como « A Voz », « Novidades », « Diário de Lisboa », « Objectiva », etc.
Realizou conferências na Sociedade Nacional de Belas Artes de Lisboa, intituladas: “A fotografia e o Futurismo”; “Como se deve Encarar a Crítica da Arte”. E na Sociedade de Propaganda de Portugal: “Luz e Sombra e o Processo do Bramélio”.
Durante a sua permanência no Brasil, realizou, em 1916, os filmes: A Quadrilha do Esqueleto, policial de grande metragem; A Cabana do Pai Tomás, tragédia; O Senhor de Posição, e vários documentários.
Entre as décadas de 1920 e 1950, Manuel Alves de San Payo, juntamente com Silva Nogueira, liderou em Portugal, a evolução do retrato fotográfico como meio de construção da imagem pública e divulgação pessoal de todos os que dela dependiam para o seu reconhecimento profissional. Manuel de San Payo era preferido pela alta sociedade, pelos políticos e pelos intelectuais.
Sabemos que em 1935 Manuel Alves de San Payo já era um fotógrafo de arte com notoriedade em Portugal mas só no Brasil, para onde emigrara por volta de 1909, realizara filmes. Pouco se sabe destas obras mas a sua realização e o reconhecimento do talento de San Payo como retratista terá motivado o convite que lhe foi feito pela publicação “O Mundo Português” (1934-1947), publicação da Agência Geral das Colónias (AGC) e do Secretariado da Propaganda Nacional (SPN), para filmar o “I cruzeiro de férias às colónias ocidentais”, projeto idealizado pelo próprio Marcelo Caetano.


Retrato de Oliveira Salazar, da autoria de Manuel San Payo com assinatura do autor (1940)

Retrato de Oliveira Salazar, da autoria de Manuel San Payo com assinatura do autor (data incerta)

Mais tarde, é agraciado pelo Presidente da República Óscar Carmona com o grau de Cavaleiro da Ordem de Santiago, condecoração atribuída em  11 de Dezembro de 1948.


Presidente da República Óscar Carmona, fotografia de Manuel San Payo (1942?)
O escritor Ferreira de Castro, em 21 de Fevereiro de 1952, observa Manuel San Payo enquanto preparava a máquina fotográfica e escreveu uma nota "O San Payo é o maior artista da fotografia em Portugal e grande em qualquer parte do Mundo. Quando trabalha, todo ele é movimento: ginasta, acrobata, saltador de obstáculos, enquanto os seus olhos de psicólogo surpreendem nos mais pequenos cambiantes nos nossos olhos e mais subtis expressões do nosso rosto. Tudo coroado por uma cabeleira boémia que parece agitada por um ciclone das Antilhas"
Por outro lado, Simonetta Luz Afonso, vulto da cultura portuguesa e conhecedora da obra de Manuel San Payo é de opinião de que “Entre os anos de 1920 e 1950, Manuel Alves San Payo foi o melhor sucedido dos mestres fotógrafos portugueses. Pelo seu atelier passaram, então, as figuras mais notórias da vida nacional, gente de sociedade, políticos, artistas e intelectuais, que San Payo registou através sua espantosa qualidade de retratista, largamente divulgada pelas revistas e magazines. Contudo, após a sua última exposição individual na Sociedade Nacional de Belas Artes, em 1950, o silêncio caiu sobre a obra e a personalidade deste artista. Se os mais velhos guardaram a lembrança indelével da sua produção, já as gerações mais jovens não puderam conhecê-la e, surpreendentemente, a própria História da Fotografia Portuguesa não conseguiu, ou desejou, registá-la.
Em 1990, a generosa e esclarecida doação do espólio San Payo ao Arquivo Nacional de Fotografia, pelos filhos do artista, constituiu o primeiro e decisivo passo para o reconhecimento histórico e artístico desta produção. Ao trabalho de inventário fotográfico largamente desenvolvido, o Arquivo Nacional de Fotografia acresce uma tarefa imprescindível de restauro conservação e salvaguarda de numerosos espólios que constituem parte integrante do nosso património.”
Recentemente, parte do seu espólio foi exposto no Museu do Chiado em Lisboa. A respeito dessa exposição, Simonetta Luz Afonso escreve “Fiel ao espírito desde o primeiro momento estabelecido para a sua programação, o Museu do Chiado mostra-se plenamente receptivo à divulgação de variadas expressões artísticas que, no caso presente da fotografia, estabelecem importantes pontes com o seu próprio acervo pictórico. Depois do sucesso que constituiu a exposição Flower, orgulhamo-nos agora de apresentar a retrospetiva do mestre fotógrafo San Payo. Homenagem a um verdadeiro criador, a presente exposição e este catálogo constituem um relevante documento para a História da Arte e, sem dúvida, motivo de surpresa e regozijo para o grande público pelo conhecimento da obra de um fotógrafo que, muito justamente, merece lugar assegurado na história e cultura do nosso tempo.” 
Manuel Alves de San Payo faleceu em 1974 e encontra-se sepultado no cemitério de S. Paio (Melgaço). 



Informações extraídas de:
- Arquivo Histórico da Presidência da República, Chancelaria das Ordens Honoríficas – Ordem Militar de Santiago da Espada (Processo de Concessão do grau de Cavaleiro a Manuel Alves de San Payo).
- BARRETO, António (1995) - San Payo: a arte do retrato, a sociedade e a política. in: San Payo – Retratos Fotográficos. Edição do Instituto Português de Museus – Museu do Chiado; Lisboa.
- SILVA, Raquel Henriques (1995) – O retrato fotográfico e o retrato na pintura San Payo e a arte portuguesa, 1920 – 1950. in: San Payo – Retratos Fotográficos. Edição do Instituto Português de Museus – Museu do Chiado; Lisboa.
- SOARES, Francisco & CRUZ, Maria Teresa (2016) Estórias Portugal – África: Concepção de um espaço digital de partilha. In: Media e Jornalismo, nº 29; Volume 16, Nº 2. Imprensa da Universidade de Coimbra, Coimbra.
- PIÇARRA, Maria do Carmo (2015) – A balada do mar salgado – Viagem filmada por paisagens sem homens. In: Revista Finisterra, I, nº 100.
- VAZ, Pe. Júlio (1996) – Pe. Júlio Vaz apresenta Mário. Edição de autor.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Castro Laboreiro em documentário de 1979


Em 1979, Ricardo Costa realiza o documentário "Castro Laboreiro" que teria estreia na televisão na RTP. O filme aborda os costumes locais de Castro Laboreiro, as inverneiras, a transumância, as brandas, do ciclo da vida ainda muito marcado pelo tempo e pelas estações do ano e as migrações cíclicas para as montanhas e as mudanças dos hábitos, paisagem e estrutura comunitária decorrentes da presença dos emigrantes e dos resultados do processo migratório.
Partilho com vocês um extrato deste documentário onde vemos a vida castreja na sua pureza. Penso que é um pequeno tesouro a não perder...



sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

Castro Laboreiro, 1942 - O padre queixa-se a Salazar e ao Ministro por causa do volfrâmio

Castro Laboreiro (Melgaço)

Em 1942, vivem-se tempos de muita tensão em terras de Castro Laboreiro. Em tempos, tinha sido descoberto volfrâmio em terras castrejas. O terreno onde foi descoberto o minério era num baldio que a Junta de freguesia vendeu a uma sociedade por um preço escandaloso com a conivência do presidente e de vários funcionários da Câmara de Melgaço. O povo castrejo sente-se enganado e o pároco denuncia diretamente a situação ao próprio Salazar e ao Ministro do Interior.  
A Salazar envia um telegrama e mais tarde escreve uma carta demolidora ao Ministro do Interior. Nela pode ler-se: “O Padre Manuel Joaquim Domingues, pároco de Castro Laboreiro, concelho de Melgaço, distrito de Viana do Castelo, muito humildemente pede licença a V. Exa. para expor os facto seguintes.
Em 23 de Junho do corrente ano, foi descoberta num baldio da referida freguesia, volfrâmio de aluvião, por dois menores, um de 13 e outro de 11 anos de idade. Os pais destes menores começaram a explorar secretamente o minério, pois ignoravam o que dispõe a legislação mineira e assim fizeram desde 23 a 30 de Junho, dia em que se tornou público no lugar da Seara, que no Monte dos Campinhos Verdes havia volfrâmio. Acorre gente do lugar e mais um negociante ambicioso do lugar das Cainheiras, de nome José Esteves. Este reune a sua família e paga a homens que trabalham por sua conta na exploração do minério.
A este segue-se outro negociante do lugar dos Portos, José António Gonçalves, que lança a ideia de o registar em seu nome. O negociante José Esteves ouve, e no dia seguinte, 6 de Julho parte para Melgaço e faz o registo.
Conhecido dos funcionários da Câmara de Melgaço o facto, procuram associar-se desde logo ao registante e como este preferiu vir ao Porto, à casa bancária Cupertino de Miranda e Ca. solicitar o financiamento da exploração e o alvará da concessão, de regresso verificou que o terreno, de regresso verificou que o terreno havia sido vendido a conselho das autoridade e funcionários administrativos, com a cumplicidade do secretário e da Junta e do regedor da freguesia.
Como protestou, foi preso e metido na cadeia da vila.
Primeiro abuso da autoridade.
Entretanto o administrador do concelho e professor oficial, Abílio Domingues, o Chefe da Secretaria da Câmara, Herculano Arsénio Gomes Pinheiro, o amanuense Armando da Mota Solheiro, o fiscal das obras da Câmara, Henrique Cordeiro Lucena, o fotógrafo Manuel Alves de San Payo, partem para Castro Laboreiro e ali reunidos com a Junta de Freguesia e regedor, em sessão secreta, de noite, à porta fechada, conseguem convencer a Junta de Freguesia a vender a Manuel Alves de San Payo, pelo preço ridículo de 500$00 (!!!) o único baldio do lugar da Seara, terreno com superfície de nove milhões de metros quadrados (!!!) donde o povo extraia volfrâmio e de onde já tinha saído quantidade talvez superior a 100 000$00, cálculo aproximado.
Feita a venda ao fotógrafo Manuel Alves de San Payo logo se organizou uma sociedade amoral, não só pela ilegalidade dos atos praticados, mas sobretudo pelos seus componentes. Fazem parte desta sociedade:
1º - O fotógrafo Manuel Alves de San Payo, pretenso dono do terreno, residente à Praça Marquês do Pombal, 16 – Lisboa.
2º - João de Barros Durães, Presidente da Câmara.
3º - Abílio Domingues, Administrador do Concelho e Professor oficial.
4º - Herculano A. Gomes Pinheiro, Chefe da Secretaria da Câmara.
5º - Armando da Mota Solheiro, amanuense.
6º - Carlos Ribeiro Lima, amanuense.
7º - José Esteves.
8º - Henrique Cordeiro Lucena, fiscal das obras da Câmara.
9º - António Bento Esteves, Presidente da Junta da freguesia.
10º - José António Gonçalves, Secretário da Junta.
11º - Domingos Alves, genro do tesoureiro da Junta, Alfredo Domingues.
12º - Abílio Alves Carabel, regedor.
O que tudo se verifica das escrituras públicas outorgadas em 24 e 25 de Julho do corrente ano, a fls. 19 v. e 22 do livro 259 de notas do notário de Melgaço Dr. Caldas, juntas a esta exposição. Quer dizer: a sociedade organizada para compelir a junta de freguesia a vender ilegalmente nove milhões de metros de um baldio, do único baldio do lugar da Seara, do qual já se havia extraído minério no valor aproximado de 100 000$00 sem quaisquer formalidades processuais que exige a legislação mineira que eles não ignoravam e sem autorização do Exmo. Sr. Ministro do Interior, e da Junta de Colonização Interna é constituída:
1º - Pelas autoridades do concelho!
2º - Por todos os funcionários da secretária da Câmara (excetuando os contínuos).
3º - Pela Junta de freguesia de Castro Laboreiro.
É evidente o escândalo. Começam por um roubo a quem descobriu o minério e a quem o registou, seguido de prisão e termina-se por uma fraude vergonhosa, levando a Junta a vender o que não podia vender e é património da freguesia, logradouro forçado do lugar da Seara, em parte de mais de 3 lugares da freguesia: Portos, Padresouro e Eiras, tudo em segredo, de noite, à porta fechada, sem afixação de editais nos lugares públicos do costume – porta da igreja matriz – sem publicação no jornal da terra e Diário do Governo, o que tudo torna a venda ilegal e de nulidade.
Consumado este escândalo, logo a sociedade procurou organizar a exploração e para este efeito destaca para Castro Laboreiro o Secretário da Câmara durante 12 dias e é várias vezes auxiliado pelos amanuenses Armando da Mota Solheiro e José Esteves.
 Impõe ao povo uma fiscalização arbitrária e ilegítima, primeiro pela Guarda Fiscal com a conivência do sargento António Joaquim, comandante do posto. Mas logo a Guarda Fiscal se recusa à fiscalização; depois por marinheiros destacados em Melgaço. Estes são retirados por ordem do Sr. Capitão do Porto de Caminha. Depois por fiscais ad hoc, todos armados de caçadeiras e pistolas. Por último, com a Guarda Nacional Republicana, requisitada ao batalhão do Porto, a quem pagam.
Abusos de autoridades na exploração, roubos à mão armada, vergonhas e desonestidades, tentativas de subornos feitas ao pároco, contrabando feito pela sociedade.
Do dia 25 de Julho em diante começa a exploração feita desordenadamente, com toda a ousadia, ultrapassando os limites do talhão vendido e passando a explorar no baldio restante. Um exame ao local provará o que afirmo (2º abuso de autoridade).
O sócio José António Gonçalves dá tiros no meio do povo para o intimidar, sem licença de uso e porte de arma.
No local da exploração prendem uma mulher, levam-na para o lugar dos Portos e ali fica todo o dia sem lhe darem de comer, roubam-lhe o minério e por fim soltam-na.
Assim fazem a Serafim Cardoso, do lugar da vila: prendem-no, roubam-lhe 4 quilos de minério, deixam-no passar fome e por fim soltam-no.
Fazem o mesmo a José Afonso, do lugar das Coriscadas.
O Sr. Armando da Mota Solheiro é herói da seguinte façanha: aperra a espingarda caçadeira contra Manuel Alves, da Várzea Travessa e manda roubar-lhe quatro quilos de minério, dizendo ao roubado: “vai ter com o teu pároco que tos pague”.
No dia 3 de Outubro, é presa publicamente na feira de Melgaço, Virgínia Esteves, levam-na para a cadeia, soltando-a no dia seguinte. O seu crime é ter falado contra a falcatrua feita pela sociedade.
Além dos capatazes armados, vexando o povo, a sociedade conserva ali uma mulher galega – negredada megera, como apalpadeira, que tem praticado as maiores torpezas, abrindo o seio às mulheres, com gáudio dos capatazes e outras desonestidades que a pena se recusa a escrever.
Entre os negros de África nunca se viram cenas tão desagradáveis; pois isto dá-se em Portugal e entre portugueses!
Tendo o povo da freguesia pelas pessoas mais gradas recorrido, afim de defender o desafrontar, este aceitou – 18 de Setembro do corrente ano – e prometeu fazer o que estivesse ao seu alcance para acabar com tamanhos desacatos.
Foi logo a Braga consultar dois advogados: Drs. José Maria Braga da Cruz e Francisco Duarte. Fiquei orientado para proceder. Regressei a Castro Laboreiro, e no dia 6 de Outubro corrente, soube à tarde que entre o povo e os capatazes se tinham trocado palavras azedas e esteve prestes a haver conflitos. No dia 7, parti para Melgaço. Recomendei calma e prudência ao povo para evitar conflitos. Disse-lhes que não fossem mais trabalhar na exploração e que esperassem com paciência o resultado das providências que ia solicitar. No dia 7 enviei de Melgaço um telegrama a Sua  Exa. o Senhor Presidente do Conselho de Ministros pedindo-lhe providências na eminência de conflitos.
No dia 18 de Setembro, sabendo que o povo me tinha encarregado de o defender, apareceram-me em Castro Laboreiro, o Administrador do Concelho, o Secretário da Câmara e o amanuense Armando da Mota Solheiro e por meio do Administrador tentaram subornar o pároco. Ofereceram-lhe uma cota na sociedade, 10% sobre os lucros líquidos para a freguesia. Repeli  a proposta e respondi: “o único arranjo que aceito, é a sociedade, por meio de escritura pública, renunciar a tudo o que te feito, a favor, a favor da freguesia”.
No dia 21 de Setembro, voltam à carga, todas as já citadas pessoas e mais José Esteves, amanuense da Câmara.
Deste vez serviu de intermediário o Sr. Dr. Cândido Sá, médico municipal. Dei a mesma resposta. Nesse dia, parti para Melgaço e à noite sou chamado à residência do Sr. João de Barros Durães, Presidente da Câmara, que procura intimidar-me por todos os meios e processos que vieram à sua imaginação desvairada, inclusivé a calúnia. Respondi-lhe altaneiro e com dignidade: "piso terreno firme, não pratiquei nenhum crime nem a ocultas nem à luz do dia, como a sociedade de que o senhor faz parte e tenho por isso a minha consciência tranquila”.
Na exploração, a sociedade exerceu o contrabando, como é voz pública, por meio do sócio José António Gonçalves que enviou para Espanha 190 quilos de minério por uma vez e 24 por outra.
A última remessa foi apreendida pelos carabineiros e ele teve que entrar com a quantia equivalente para a sociedade.
Um exame à escrituração da sociedade, deve apurar a verdade. O preço do minério era de 30$00 por quilo, preço irrisório, mas que afinal seria 20$00 porque faziam descontos alegando que estava sujo, molhado e usando pesos falsos!
Ora, já que a Providência permitiu que este minério aparecesse em Castro Laboreiro, foi descoberto e registado por pessoas de Castro Laboreiro, num baldio que a Junta não podia alienar, à freguesia deve pertencer e não a uma quadrilha que tão insensatamente abusa da autoridade que de boa fé lhe foi confiada.
Eu, como pároco não podia calar-me perante o grito de desespero daquela gente da serra. Toda a freguesia é testemunha destas ilegalidades e abusos.
Confiando, pois, na atuação de V. Exa., todo o povo de Castro Laboreiro espera:
1º - Que seja cancelada tão escandalosa e ilegal exploração.
2º - Um inquérito rigoroso aos funcionários administrativos implicados na burla e usurpação com o castigo que mereçam.
3º - Demissão da Junta, das autoridades, pois de outra forma o povo de Castro Laboreiro está sem garantias.
4º - Entrega do baldio à  nova junta como a anulação de venda que a atual se permitiu fazer.
5º - Licença para que a nova Junta, sob tutela ou livremente, com nova sociedade, explore o minério a favor da freguesia.
6º - Que a sociedade entre com 5% a que é obrigada pela legislação mineira e com uma indeminização a favor da freguesia correspondente a 4 000 quilos de minério já vendidos pela sociedade.
Péssima situação económica da freguesia: fronteiriça montanhosa, que só produz centeio e batatas, escassamente para 6 meses de consumo dos seus habitantes, tendo de ir comprar milho às freguesias mais baixas chamadas – Ribeira, para o resto do ano.
Os homens válidos vêem-se obrigados, para prover ao sustento de suas famílias a emigrar e trabalhar fora 8 meses no ano. Até há pouco procuravam a Espanha e França. Arruinadas essas nações pela guerra, fechou-se-lhes a porta onde iam exercer a sua atividade. Só têm, pois, diante de si a perspetiva da miséria.
A Providência permitiu que no baldio aparecesse volfrâmio que explorado por sociedade constituída legalmente na freguesia, ou com simples licença do Governo poderia reverter grande parte da receita a favor do povo da freguesia, que não conta até hoje nenhum dos melhoramentos tão largamente espalhados no país, pelo Estado Novo.
Precisa de reformar a igreja, em precário estado; de um mercado que abrigue o povo do sol e da chuva, nos dias de feira; ampliação do cemitério; conserto e levantamento de duas pontes de grande trânsito e que pequenas cheias invadem, paralizando-o; de captação da água da fonte da vila e encanamento da nascente.
Este estado de coisas é agravado pelo contrabando desenfreado dos negociantes  que estão além da linha dos postos fiscais, sobretudo os dois mais próximos da fronteira; de José António Gonçalves, dos Portos, e José Esteves, das Cainheiras – os quais são ponto de passagem de mercadorias e géneros alimentícios para Espanha.
Distam aproximadamente 3 quilómetros da fronteira. A bem da economia nacional e da freguesia, deviam ser fechados. Vinganças mesquinhas das autoridades do concelho sobre o povo de Castro Laboreiro:
1º - Negam e dificultam guias na administração, para o trânsito dos poucos géneros de subsistência destinados à freguesia.
2º - Os informadores do concelho de impostos sobre lucros de guerra, combinados com as autoridades, adversas a Castro Laboreiro, impõe ao Sr. Augusto Domingues, vulgo Varanda, um imposto de 28 000$00; sua modesta fortuna, ganha pelo seu trabalho e no comércio, que deixou de exercer há 7 anos, pouco excederá 100 000 escudos; mas a Manuel José Domingues, cuja fortuna é superior a 1 000 contos não se coletaram imposto algum.
As razões desta injustiça são as seguintes: o primeiro está ao lado do povo e do pároco, contra a sociedade mineira e não tem feito contrabando; o segundo está ao lado da sociedade, já comprou novo talhão à junta para segunda sociedade por 600$00  e é um contrabandista impertinente.
3º - Igualmente foram excluídos do imposto sobre lucros de guerra os dois negociantes mais próximos da freguesia e já acima citados.
4º - Um rapaz da freguesia, Adelino Rodrigues, que tem o curso comercial e lhe dá a equiparação para a Escola Normal, juntou os seus documentos e requereu a Sua Exa. o Senhor Ministro da Educação Nacional para prestar provas em Braga no corrente mês. 3 dias antes do exame o seu requerimento foi indeferido. Julgo, segundo me informam, ter sido denunciado como contrário à ideologia do Estado Novo.
Os implicados em toda esta fraude e criminosa manobra procuraram convencer o Sr. Governador Civil de Viana, de que não havia fraude, nem usurpação, nem ilegalidade. Por isso, presta-lhes apoio e é até amigo do Presidente da Câmara – João de Barros Durães.
Em face do exposto e do escândalo público verberado em todo o concelho com subida razão e dado com inaudita ousadia pelos prevaricadores que tão mal servem o Estado Novo e que para honra e dignidade de todos os verdadeiros nacionalistas, devem ser afastados dos seus lugares, solicito de V. Exa. as providências que ponham o povo de Castro Laboreiro a coberto das violências de que tem sido vítima das autoridades e funcionários administrativos.
Não tem o signatário outro objetivo que não seja o amor da justiça, aplicada aos que imprudentemente transgridem a lei e um exemplo que frutifique.
A bem da Nação.

Lisboa, Outubro de 1942."

Carta do Padre de Castro Laboreiro ao Ministro do Interior (Pág.1)

Carta do Padre de Castro Laboreiro ao Ministro do Interior (Pág.2)

Carta do Padre de Castro Laboreiro ao Ministro do Interior (Pág.3)

Carta do Padre de Castro Laboreiro ao Ministro do Interior (Pág.4)

Carta do Padre de Castro Laboreiro ao Ministro do Interior (Pág.5)

Carta do Padre de Castro Laboreiro ao Ministro do Interior (Pág.6)

Carta do Padre de Castro Laboreiro ao Ministro do Interior (Pág.7)

Carta do Padre de Castro Laboreiro ao Ministro do Interior (Pág.8)

Carta do Padre de Castro Laboreiro ao Ministro do Interior (Pág.9)

Carta do Padre de Castro Laboreiro ao Ministro do Interior (Pág.10)


Extraído de:
-   "IRREGULARIDADES PRATICADAS COM A EXPLORAÇÃO E COMÉRCIO DE VOLFRÂMIO EM CASTRO LABOREIRO, CONCELHO DE MELGAÇO", Código de Referência "PT/TT/MI-DGAPC/E/3/244/10", Torre do Tombo.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Castro Laboreiro e a exploração do volfrâmio em tempo de guerra

Na vila de Castro Laboreiro, década de 40.

Em 1942, estávamos em plena Segunda Guerra Mundial. Por essa altura, chegam ao conhecimento da diretoria da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado, acontecimentos ocorridos em Castro Laboreiro (Melgaço), a propósito da exploração de volfrâmio  nas proximidades do lugar da Seara desta freguesia.
Em resposta, a diretoria da polícia política solicita ao Posto do Guarda Fiscal do Peso (Melgaço) um relatório acerca de tais factos. No mesmo relatório, a Guarda Fiscal comunica que “…passo a informar Vossa Excelência de tudo  o que foi possível averiguar acerca dos incidentes ocorridos na concessão de volfrâmio a que alude o citado ofício. As explorações de minério estão a fazer-se nuns terrenos baldios da freguesia de Castro Laboreiro e, ao que consta, foram uns garotos que descobriram a existência de volfrâmio mas o “castrejo” José Esteves, do lugar das Cainheiras, foi propositadamente à Câmara Municipal de Melgaço para registar como propriedade sua, o terreno aonde apareceu o minério. Uma vez na Câmara, ao expor o assunto que ali o leveva, certos funcionários da Câmara, ou quase todos, ao que se diz, tentaram dissuadir o “Castrejo” do seu intento, alegando que esse registo não se podia fazer. O castrejo José Esteves, aborrecido com a atitude dos funcionários da Câmara, vai para a sua terra seriamente indignado e fazendo constar aos seus vizinhos o que se tinha passado, também dizia que o queriam vigarizar. Dias depois, constata-se que os funcionários da Câmara tratavam, a toda a pressa, desse registo e da compra do terreno e pedido de concessão de exploração de minas.
O castrejo continua a manifestar publicamente a sua indignação contra os funcionários da Câmara e o resultado é ir parar à cadeia por ordem, ao que se diz do fotógrafo Manuel Alves de San Payo a quem o baldio foi vendido por quinhentos escudos. Posto em liberdade, o castrejo vai para Castro Laboreiro e pede proteção do padre Manuel Domingues que imediatamente toma a defesa deste seu paroquiano e é de opinião que a exploração mineira dos referidos baldios deve ser feita pelos habitantes da freguesia, em proveito deles e para melhoramentos locais que são urgentes.
Constam então, publicamente os seguintes factos: o tal terreno que é baldio e pertence portanto ao estado, dependia da Junta de Freguesia mas foi vendido ao fotógrafo San Payo por indicação do seu muito amigo Secretário da Câmara Municipal de Melgaço que vê nele o sócio ideal dadas as boas relações que o San Payo diz ter em Lisboa, aonde tudo resolve. Vão ambos a Castro Laboreiro e o certo é que os da Junta vem a Melgaço e de comum acordo fazem a escritura da venda do terreno, por quinhentos escudos, e outra escritura de sociedade na qual entram os da Câmara, os da Junta e o regedor de Castro Laboreiro. Não foram afixados editais da venda do terreno como determina a Lei mas para se furtarem a qualquer contratempo, o San Payo fotografou um edital que esteve exposto apenas o tempo suficiente para ser fotografado. Também se diz que na Junta de Castro Laboreiro foram lavradas atas com datas que não correspondem à verdade, isto a conselho do Secretário da Câmara que já fazia o que queria dos membros da Junta. E enquanto se realizavam todas estas tarefas, a Guarda Fiscal policiou o terreno para evitar a exploração. Concedida a autorização para a exploração, a Guarda Fiscal abandona o local mas a Sociedade vendo que a maior parte do povo de Castro Laboreiro se encontrava revoltado contra ela, requisita praças da Marinha para manter a ordem e poder arrancar o volfrâmio. Mas a força pouco tempo ali estaciona por saber que o padre Manuel Domingues ia participar que ela estava ali sem ordem superior e a prestar um serviço que não se coaduna com a missão da Marinha de Guerra. A sociedade requisita a seguir a G. N. R. de melgaço mas o comandante se secção vendo agitado o estado de coisas, ordena às praças que se retirem por não ter recebido ordens do Comando do Batalhão para que elas lá permanecessem. De novo, a Sociedade se vê seriamente embaraçada com a atitude dos castrejos que se dizm roubados por ela, e não podendo contar com a colaboração das autoridades, nomeia cabos de ordens, arma-os e estes vão para as minas onde disparam tiros para o ar afim de amedrontar os mais exaltados.
Como esta espécie de mantedores da ordem não desse resultado, a sociedade pôs-se em contacto com o fotógrafo San Payo a  pedir providências e o certo é que no passado dia 12, parece, chegou um cabo e três praças da G. N. R. com destino às minas. Entretanto, a sociedade alarmada com a atividades do castrejo José Esteves, arranja uma nova sociedade, ou melhor, uma outra sociedade da qual este passou a fazer parte com os senhores: Dr. Cândido de Sá, antigo presidente da União Nacional e atual sub-delegado de saúde em Melgaço, Manuel José Domingues, o “Mareco” e Domingos António Domingues.
Mas o padre Manuel Domingues é que não está pelos ajustes e não se cansa de proclamar ofendidos os direitos e interesses dos seus paroquianos. Já quizeram suborna-lo com elevada quantia e já instaram para que entrasse numa das sociedades mas ele tem repudiado todas as ofertas e foi para Lisboa queixar-se. A população de Castro Laboreiro aguarda com ansiedade o regresso do padre que lhe prometeu defende-los mas por outro lado as tais sociedades também aguardam os bons ofícios do fotógrafo San Payo que diz que tem o quer com os Senhores Ministros a, b, c, etc.
Já consta aqui que o fotógrafo San Payo foi recebido pelos Exmos. Diretores da P. V. D. E.  e que as coisas se encaminham bem para as sociedades mas a verdade é que são de esperar graves acontecimentos que ainda não se deram graças aos conselhos do padre Manuel mas que virão a dar-se se o assunto não for resolvido com justiça. E pelo que consta, afigura-se que está do lado que o padre defende.
E para findar, junto envio a V. Exa. uma folha do jornal “Notícias de Melgaço” de 20 de Setembro, onde vem anunciada a escritura da primeira sociedade que é constituída pelos Srs. Manuel Alves San Payo, fotógrafo; Abílio Domingues, Vice- presidente da Câmara de Melgaço em exercício; Doutor João de Barros Durães, Presidente da União Nacional e Presidente da Câmara Municipal de Melgaço; Herculano Arsénio Gomes Pinheiro, secretário da Câmara; Henrique Cordeiro Lucena, Fical da Câmara; Armando da Mota Solheiro, Amanuense da Câmara; José Agusto Esteves, Amanuense da Câmara; Domingos Alves, Presidente da Junta de Castro Laboreiro; António Bento Esteves, vogal da mesma Junta; José António Gonçalves, vogal da Junta e Abílio Alves Carabel, regedor da freguesia de Castro Laboreiro.
Também consta que esta sociedade compra o volfrâmio, a quem o explora, a menos de 30 escudos o quilo para ir vender – quase todo – a Espanha, de contrabando.
A bem da Nação.
Peso, 17 de Outubro de 1942”

Capa do processo relativo às irregularidades na exploração de volfrâmio em Castro Laboreiro

Cópia do relatório da Guarda Fiscal do Peso (Melgaço) acerca destes acontecimentos (Página 1)

Cópia do relatório da Guarda Fiscal do Peso (Melgaço) acerca destes acontecimentos (Página 2)

Cópia do relatório da Guarda Fiscal do Peso (Melgaço) acerca destes acontecimentos (Página 3)

Cópia do relatório da Guarda Fiscal do Peso (Melgaço) acerca destes acontecimentos (Página 4)

Cópia do relatório da Guarda Fiscal do Peso (Melgaço) acerca destes acontecimentos (Página 5)

Escritura da constituição da Sociedade de exploração mineira publicada no jornal "Notícias de Melgaço"

Adicionar legenda


É muito provável que pelo menos parte deste volfrâmio extraído em Castro Laboreiro tivesse como destino a Alemanha nazi. Num relatório dos Serviços Secretos americanos é citado o castrejo Manuel José Domingues, mais conhecido como o Mareco, um dos maiores contrabandistas da região e membro que integrava a Sociedade Mineira Castro Laboreiro, Limitada. No dito relatório refere-se claramente que o citado Mareco negociava ilegalmente o volfrâmio com os alemães juntamente com outros contrabandistas, entre os quais Artur Rodrigues. 
No referido relatório podemos ler:
Manuel José Domingues
Manuel José Domingues de Castro Laboreiro enviou anteriormente volfrâmio, ouro e moeda ilegalmente através de Espanha para os alemães, e, segundo as notícias, ainda está negociando barras de ouro. Os seus associados eram Barros da Costa, o tenente Walter Thoebe, Artur Teixeira, Manuel Lourenço de Melgaço, António Esteves, Francisco Esteves, Manuel Pereira de Lima e Adolfo Vieira de Monção. Antes da guerra, as suas propriedades imobiliárias em Castro Laboreiro valiam cerca de 200 000 escudos. Actualmente, possui um património imobiliário avaliado em cerca de 4 000 000 escudos no concelho de Melgaço e Valença. No início deste ano, Domingues foi preso com dezessete barras de ouro no valor de 660 000 escudos na sua posse. Nada resultou dessa prisão…”


Extrato do relatório dos Serviços Secretos Americanos, acerca de Manuel José Domingues, o Mareco

E a posição do Padre de Castro Laboreiro acerca deste assunto? Na próxima publicação…



Informações extraídas de:
-   "IRREGULARIDADES PRATICADAS COM A EXPLORAÇÃO E COMÉRCIO DE VOLFRÂMIO EM CASTRO LABOREIRO, CONCELHO DE MELGAÇO", Código de Referência "PT/TT/MI-DGAPC/E/3/244/10", Torre do Tombo.
- OSS Washington Secret Intelligence/Special Funds Records, 1942-1946 , Washington Office, Special Funds Division Finance, Intelligence (WASH-SPDF-INT)WASH-SPDF-INT-1: Documents 2301-2350, Page 171.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Visitando Castro Laboreiro há 130 anos (Parte III)

A vila de Castro Laboreiro, ao longe

Em terras de Castro Laboreiro, o autor da mítica obra “O Minho Pittoresco”, conta-nos como percorreu aqueles caminhos naquela época: “O professor Pinho Leal descreve, no livro “Portugal Antigo e Moderno” publicado uns anos antes (1874), refere-se aos costumes castrejos nos funerais. Fala no uso das comesainas mortuárias em casa dos doridos, e fala dos enterros, nos quais diz ser o féretro conduzido por mulheres, por não haver muitas vezes homens na freguesia, e ser seguido por uma comitiva delas, umas com broas, outras com açafates de bacalhau e diversos alimentos, que na igreja entregam ao pároco.
Perguntámos por esse uso, mas disseram-nos que não existia, pelo menos tal como o descreve o autor mencionado.
É certo que à falta de homens, o féretro é conduzido muitas vezes por mulheres, e que uma vai na frente do préstito levando um cesto com uma broa. Mas não existem depois os banquetes, como ainda são de uso em outras partes da província, e que teremos ocasião de ver.
Avizinhava-se a noite a largos passos e afiançavam-nos os guardas e os do povoado, que era temeridade a horas tais empreender a marcha através da serra, pois nada mais fácil que o encontro pouco amigo de qualquer alcateia de lobos.
O nosso guia, porém, que detestava Castro Laboreiro, falava-nos como um poeta lírico das blandícias do luar, e informava desfavoravelmente sobre a vila, onde não havia pouso para os animais, nem alojamento para nós.
— E que hão de os senhores comer? — perguntava solicitamente, como — se a pergunta não devera ser antes formulada: Que havemos nós de comer?
O pobre homem tinha apenas almoçado algumas cerejas com pão de milho e, ás 7 horas e 30 minutos da tarde, é crivel que o seu estômago tivesse exigências fortes, visto que o nosso se revoltava intransigente contra a perspectiva dumas novas cinco léguas a cavalo, sem ter conhecido o menu de Castro Laboreiro.
Apesar da minha boa vontade de ficar, para passar uma noite conversando à lareira com as castrejas, cujos usos se me oferecia ocasião asada para conhecer, não houve remédio senão ceder às instâncias da caravana e dizer por aquela vez adeus às cantigas que esperava recolher, às lendas, aos contos de carochinha da tradição local, a todos os apontamentos enfim que poderiam alçar a minha individualidade obscura aos olhos ávidos do folclorismo nacional.
Percorremos rapidamente as ruelas estreitas da vila e parámos para ver a igreja, cujo pórtico se achava de luto por ter pouco antes morrido o velho pároco da freguesia. O templo nada oferece de notável. Quando estávamos nesse ponto, um adventício, que não era evidentemente um castrejo, se acercou de nós pedindo esmola. Cumpre dizer que ninguém de Castro, mulher, homem ou criança, nos incomodou nesse sentido.
Quando mesmo Almeida tirava o croquis do rapazito trabalhador, que encontrámos no regresso do castelo e que figura no primeiro cromo, só depois de instado este aceitou de nós algum dinheiro, não obstante ser pouco remuneradora a sua profissão de carvoeiro, xisto que o pobre rapaz ia com uma irmãzita e com o seu jumento para a serra num dia, colhia a urze e fazia o carvão no outro, e no imediato ia vende-lo a Melgaço, onde lhe pagavam 400 réis pela carga! Durante esses três dias, o seu alimento era broa e agua pura do monte.
Educadas no trabalho tão de novo, as crianças tinham o orgulho de não mendigar. Quem era então esse estranho, que apelava para a nossa caridade? Imagina tu, se podes, meu leitor benévolo, que não te dá por certo a imaginação a chave do segredo.
Era um degredado!... Um degredado autêntico, que as justiças de Chaves haviam condenado a desterro dum ano, ali cumprido em Castro Laboreiro, pelo roubo de 2000 réis, de que o individuo se dizia inocente e depois de ter estado dois anos na cadeia daquela vila à espera de julgamento!
Ó inimitável justiça da nossa terra! Era um rapaz de 18 anos, não mais, mal vestido e mal alimentado, e com as mãos ainda sangrentas do trabalho de rachar lenha. Vivia livremente na povoação, tendo apenas de oito em oito dias de apresentar-se ao regedor. Como a justiça o condenara somente, sem se lembrar de que teria necessidade de pão para comer, ou da tábua dum leito para dormir, o rapaz vivia da caridade hospitaleira daquela pobre gente, à qual retribuía com o seu trabalho.
Deu-se finalmente a ordem para a partida e enquanto o guia nos preparava os animais e o tamanqueiro da terra construía essa pesada machina de madeira e sola, que o castrejo calça com o nome de chanca ou alabardeiro, pensámos nós em satisfazer o estômago. Era tempo já.
Sentámo-nos extenuados na soleira duma porta e arranjou-nos um dos guardas vinho e boroa, o único alimento que se podia conseguir em tais alturas. O vinho era detestável e escandalosamente aguado, a boroa grosseira e áspera, como toda aquela natureza selvática. Foi assim mesmo saboreada, que não admitia a fome escrúpulos de epicurismo. E se o meu estômago resistia, como o de bom Minhoto, o de Almeida, que tinha a dyspepsia dos Lisboetas, custava-lhe a resignar-se com o menu.
Só o outro companheiro se conservou sem entusiasmo perante aquela broa, que eu principiava já a achar deliciosa!
Era caso para cismar, quando era ele o que possuí ao mais valente estômago da caravana! Mas nem o nosso egoísmo pensou em resolver o problema. Só à ceia, em frente já do apetitoso presunto de Melgaço, é que ele nos desvendou aquele seu misterioso recolhimento de Castro!
Tinha visto comprar a broa na única tenda da terra, e a imundice, se era um privilégio de todos os outros interiores, chegava a ser um cúmulo no único estabelecimento comercial da vila! Nada víramos, porém, e melhor nos fora assim!"


Extraído de: 
- VIEIRA, José Augusto (1886) - O Minho Pittoresco, tomo I, edição da livraria de António Maria Pereira - Editor, Lisboa.

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