sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Uma estranha história acerca do Solar do Reguengo de Melgaço publicada no Brasil (1935)



Há cerca de 80 anos, é publicada num jornal no Brasil, uma estranha história acerca do Solar do Reguengo de Melgaço. Nessa narrativa, o escritor Júlio Dantas descreve-nos o solar nessa época e fala-nos de uma história maldita relacionada com o local onde as chaves do solar teriam sido enterradas, mais concretamente junto a um cipreste, situado ao lado do casarão. Tanto quanto parece, a história é ficcional. Trata-se de um conto publicado no jornal brasileiro "Gazeta de Notícias" na sua edição de 9 de Junho de 1035. Como tal, não tem relevância histórica!
A história é a seguinte:
História de um velho solar
Em certo rincão do Alto Minho, a dois passos do rio que nos separa de Espanha, há um velho solar pertencente a um dos ramos dos Castros Menezes, - solar que, como quase todos os desta região, têm a sua história. Quando lá estive, fui vê-lo. Atravessaram-se uns campos de milho, descendo um côrrego estreito entre latadas verdejantes. Chega-se a um terreiro em meia laranja, onde dois leões de pedra, com a humildade de cachorros, dormem sobre socos esverdeados de mugre. E ao fim de uma rua lageada, sombria de parreiras, em cujas valetas, corre a água viva, o solar surge, de súbito, diante dos nossos olhos, com o ar ao mesmo tempo solene e carinhoso, magestoso e acolhedor, de todas as moradas fidalgas do norte de Portugal.


Está fechado: o aspeto é vetusto, as paredes ameaçam ruína. É uma construção maciça dos fins do século XVII, de largos cunhais de silharia e telhados amouriscados de quatro águas, formada por um corpo central, com o seu alpendre envidraçado, apoiado sobre colunas de granito e por dois corpos laterais, perpendiculares ao corpo principal, limitando um terreiro solarengo quase todo ocupado por uma escada nobre, exterior, que dá acesso à galeria alpendrada sobre cujo lintel repousa a pedra-de-armas dos Castros-Menezes. A ala direita, constituída em parte pela capela, em no seu prolongamento, para as traseiras do edifício, o antigo paço medieval, cujos restos se vêem ainda, representados por dois botaréus possantes e por uma janela geminada ogival, que olha, como uma vigia esperta, para as bandas de Espanha.
Em volta, nada de particularmente interessante. Campos de milho, com o seu canastro abençoado pela tradicional cruz de pedra na empena. Um cipreste, no terreiro fronteiro, nota melancólica comum a muitos solares minhotos. Uma arribana em cuja sombra se adivinham, pela grande porta aberta, manchas ruivas e buliçosas de gado. Subi a larga escada senhorial para ver melhor a paisagem. As montanhas longínquas, quase roxas no declinar da tarde: os pinhais imóveis e verde-negros, as latadas e os milhos alegres por onde escorria a baba de oiro do sol, - tudo parecia revestir-se duma serenidade virgiliana. Não se ouvia um ruído. Impressionado pelo silêncio da natureza e pelo abandono daquele velho paço desabitado. Ia retirar-me quando uma voz me interpelou:
- Deseja alguma coisa?
Procurei com o olhar a pessoa que se me dirigia. Não vi ninguém. Quando desci a escada, um velho, vestido de negro, meio oculto na sombra, encostado a uma das grossas colunas de granito que suportam a galeria envidraçada, olhava interrogativamente para mim. Era um padre. Pálido, curvado, senil, por certo octogenário, a batina no fio, a volta branca do pescoço esfarrapada, um chapéu mole, tão velho como ele, enterrado na cabeça, o homem singular que me aparecia harmonizava-se, pelo seu abandono, pela sua decrepitude e até pela serena dignidade da sua figura, com o aspeto confrangedor daquele palácio em ruínas. Dirigi-me a ele, de chapéu na mão:
- Pode visitar-se o solar?
- Não pode.
- Está habitado?
- Perderam-se as chaves há sessenta anos.
- Mas Vossa Reverência não vive aqui?
- Que lhe importa ao senhor a minha vida?
O proveto sacerdote tinha razão. Eu viera perturbar, com a minha presença a paz sepulcral daquelas ruínas, de que ele fazia parte integrante. Mas a hostilidade com o pobre velho me recebeu não conseguiu senão aumentar a minha curiosidade a seu respeito. Tirei um cigarro e ofereci-lhe a cigarreira aberta. Pintou-se na fisionomia uma tal expressão de júbilo, e com tanta avidez a sua mão decrepita, incerta, amarela, como um pergaminho antigo, avançou para os cigarros que – confesso – me comoveu.
Dei-lhe lume. O padre sorveu de olhos fechados, voluptuosamente, as primeiras fumaças. Depois, tirou o chapéu, e humilde, curvando a cabeça – um crânio pequeno, redondo, cujos cabelos rasos, duma brancura resplandecente, davam a impressão de um solideu de prata murmurou:
- Obrigado. Já não fumava há dois dias. O tabaco está muito caro.


Daqui a pouco, eu e o padre Matheus – era o seu nome – sentados num poial de pedra, conversávamos mão a mão, como dois amigos. Contou-me ele, então que vivia ali, nas dependências da capela, por favor dos caseiros da quinta. Havia dois anos, ainda dizia missa. Depois, os últimos paramentos podres da humidade do arcaz, foram-se desfazendo aos poucos, os caseiros precisaram da capela para enceleirar o milho porque não cabia no espeigueiro, as pernas inchadas não lhe permitiam celebrar o santo sacrifício e – acrescentou o pobre velho – para ali se entretinha, agora, a ensinar doutrina e a ver qual das duas ruínas desabava primeiro, se ele, se o solar.
- Mas, de quem é este palácio – perguntei ao padre Matheus.
- Era da senhora morgada do Couto de Ruivães, Dona Angélica de castro Menezes de Sousa e Vasconcellos, que Deus haja em sua santa glória. Está desabitado desde que ela morreu.
- Há quanto tempo?
- Há sessenta e três anos. Tinha eu vinte e dois anos, e era, havia um ano, capelão da casa.
- Mas a senhora morgada não deixou descendentes?
- Uns primos de Braga. Logo que ela morreu, vieram aqui, com uma escolta de criados armados armados, levaram em carros de bois e em azémolas toda a mobília. Pratas e alfaias, e não voltaram. Deram depois, de arrendamento, a quinta a um antigo feitor.
- E o feitor, onde mora?
- Morreu. Morava numas casas, além adiante. No solar, nunca mais ninguém entrou, há sessenta anos.
- Apareciam almas do outro mundo?
- Não senhor. Perderam-se as chaves.
- E, há sessenta anos, ainda não tiveram tempo para mandar fazer outras?
Padre Matheus, sentado no poial, defronte de mim, olhou-me longamente. A sua face pergaminhada pareceu-me mais pálida ainda. As mãos tremiam-lhe sobre os joelhos. Tirou do bolso um lenço vermelho de Alcobaça, passou-o pela testa onde borbulhava o suor, sacudiu a cabeça, como a afugentar um maus pensamento, e, depois de um demorado silêncio, disse-me encolhendo os ombros:
Há coisas que parecem mais fáceis do que realmente são. O senho vê ali aquele cipreste?
- Vejo.
- Pois dizem que as chaves estão enterradas ali.
- Nesse caso, porque não as desenterraram?
- Porque quem tentar desenterrá-las, morre.
Não pude deixar de sorrir. A convicção com que aquele sacerdote octagenário, que devia conhecer a vida, se fazia eco dessa lenda ingénua, chegou a enternecer-me. A intenção dos herdeiros da morgada de Ruivães, ao inventar a história das chaves, era evidente. Não lhe convindo que alguém ali fosse, ou porque lá deixaram alfaias que não puderam transportar, ou porque suspeitavam de que as paredes, ou debaixo dos soalhos, houvesse tesouros escondidos, os primos de Braga tinham posto de sentinela ao solar o mais vigilante de todos os guardas: o medo da morte.
O senhor não acredita, - continuou o padre Matheus.
- Mas é verdade. Dois, vi-os eu cair mortos, como se os fulminasse a ira de Deus. Um foi o feitor Justino. Parece que o estou ver. Honrado, valente como as armas! A mulher queria meter aquela porta dentro, e ele não deixou.
- Não. A porta dos fidalgos não se arromba”.
Mais tarde, começou a correr que as chaves estavam enterradas ali, ao pé do cipreste. O feitor ria-se, como o senhor. Um dia, perguntou-me ele:
- Padre Matheus, porque não há-de a gente ver?
Despiu a jaleca, remangou duma enxada, e quando ia descarregar o primeiro golpe na terra (já se passaram sessenta anos e ainda parece que vejo faiscar o ferro, ao sol) caiu de borco, de braços estendidos, como se o tivesse varado uma bala.
- Alguma congestão, naturalmente.
- Só Deus o sabe. O certo é que, durante muitos anos, ninguém mais se atreveu, sequer, a pisar a terra em volta daquela árvore de morte. Aquele chão era sagrado. Uma tarde, porém, parou aqui um almocreve, homem ruivo, mal encarado, que fazia pela serra, a recovagem do Lindoso, e ouviu falar nas riquezas do solar e nas chaves enterradas. Contra o seu costume, porque nunca se albergava cá, pediu pousada aos criados nessa noite. Na manhã seguinte, foram dar com ele morto, ao pé do cipreste, com uma sachola nas mãos, já meio devorado pelos cães. Bem  feito, que era um ladrão! Estes foram os que eu vi. Mas houve outros. Um deles – moço de lavoura do feitor novo – ainda não se cumpriram dez anos sobre a sua morte. O feitor queria o paço todo para celeiro, mas não se atrevia a procurar, por suas mãos, os chaveirões na terra.
- Vou lá eu, patrão! – gritou o moço, travando da enxada. Estava ali, ao pé da arribana. Mal deu dois passos para a árvore , caiu por terra em convulsões, que parecia possesso do demónio. - Deus me perdoe! – e, dois dias andados, dava o corpo à terra, no adro de Paderne.
Ora o senhor quer ver o o solar, não é verdade? Pois bem. Vá buscar as chaves, onde elas estão, se é capaz.
Ri-me, encolhi os ombros com a fácil superioridade das pessoas que não acreditam nestas coisas, dei outro cigarro ao padre Matheus, e mudamos de assunto. Mas – confesso-o – apesar de ter a certeza de que, ao pé daquele cipreste, não se encontravam nenhumas chaves, eu ainda hesitaria antes de desbravar a terra, para as procurar.”


Fonte: Jornal “Gazeta de Notícias”, edição de 9 de Junho de 1935.


sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Peneda (A. de Valdevez): 63 anos depois de um milagre


No passado dia 4 de Fevereiro, cumpriram-se 63 anos sobre aquilo que poderia ter sido uma tragédia. Foi na Peneda, no vizinho concelho dos Arcos de Valdevez, em 1956. Um grande bloco granítico desprendeu-se do cimo do Penedo da Meadinha sobranceiro ao Santuário da Senhora da Peneda. Por milagre, não houve mortos, apenas alguns feridos que foram transportados no Hospital de Melgaço. O jornal arcuense “A Vanguarda”, na sua edição de 12 de Fevereiro, conta-nos tudo na primeira página:
“Certamente, devido às intensas geadas que se têm feito sentir, da mole imensa do Penedo da Meadinha, sobranceiro ao Santuário da Peneda, desprendeu-se um grande fragmento, que arrasou quatro casas e uma pequena parte do cemitério.
A traços largos, damos hoje uma ideia do grave desastre, que às dez horas do dia 2 ocorreu no Santuário da Peneda. Não nos contentando com as várias versões que até nós chegavam do desastre ocorrido na Peneda, deslocamo-nos àquele santuário para vermos in loco o que se tinha passado.
Certamente devido ao gelo infiltrado em alguma fenda da pedra, desprendeu-se uma enorme parcela daquele grande aglomerado de penedos que constituem o Penedo da Meadinha, que tanto encanta os turistas pela sua grandeza e sobranceria ameaçadora de todo o Santuário. Precipitada de tão grande altura, fragmentou-se no solo em volumosos blocos, que, em grande velocidade desceram a encosta, quase a pique, para, acto contínuo amarfanharem  sob o seu enorme peso, um espigueiro cheio de espigas, e o primeiro quartel dos romeiros, cortando-o ao meio, desmoronarem o cunhal do grande quartel imediato e perfuraram as paredes, dum lado ao outro da casa, há pouco construída, pertencente ao filho da “Laruga”, em que os móveis ficaram todos esmagados.
Um outro bloco ainda fez um rombo na parede doutra casa. O pedregulho atingiu vários telhados, dando a impressão do efeito de estilhaços de granadas. São elevados os prejuízos materiais, mormente nas casas do Santuário. Pode dizer-se que, por um favor especial da Senhora da Peneda, não houve desastres pessoais, que bem podiam ter sido muito volumosos.
Ficaram para cima de trinta pessoas se abrigo, que a Mesa da Confraria já agasalhou, por esmola, nos restantes quartéis. Mas em situação angustiosa e lancinante, ficou Maria de Jesus Martins, de 27 anos de idade, pois foi arremessada para o rés do chão do quartel que foi cortado ao meio, e completamente oculta debaixo dos escombros e do bloco destruidor. Gastaram hora e meia a fazer uma abertura para a retirar daquela aflitiva situação, tendo saído, com a admiração de todos, apenas com contusões ligeiras e um pequeno ferimento numa mão, pelo que só esteve no Hospital de Melgaço, algumas horas. Claudina Rosa Martins, de 43 anos e Constança de Sousa, de 45, também recolheram ao mesmo hospital, mas sem gravidade, tendo também já regressado ao lugar.
O pânico por que passou toda aquela gente, via-se bem estampado no rosto apavorado de todos. O movimentar de toda aquela “metralha” pedregosa produziu um som apavorante, que se repercutiu em toda a ribeira da Peneda. Uma septuagenária, que andava a apanhar lenha na encosta, ao ouvir um sinistro som de trovão, olhou em redor de si e só teve tempo de ver passar junto de si, dois enormes blocos, que na sua marcha vertiginosa arrastava outros, tendo sido atingida ligeiramente. Assombrada e fora de si, desceu e foi recolhida numa casa, onde se encontra com as faculdades mentais avariadas.
A Mesa deslocou-se ao local, onde deixou uma quantia aos pobres sinistrados e tomou providências para recolher as sem casa.”

Estragos na Peneda
(Foto enviada por Teresa Lobato)


(clique para ampliar)



Fonte: Jornal “A Vanguarda”, edição de 12 de Fevereiro de 1956.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Melgaço no Programa "Horizontes da Memória" da RTP (1998)



Em 1998, o Professor José Hermano Saraiva apresentou-nos o programa "Horizontes da Memória" da RTP dedicado a Melgaço. Nele fala-nos da História da nossa terra, dos usos e dos costumes das nossas gentes. Veja ou reveja o programa na íntegra!...





sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

A estória de uma carta do General Franco enviada para Melgaço (1968)


Há cerca de 50 anos a pacatez de Melgaço foi interrompida. A esposa do Generalíssimo Francisco Franco, Chefe de Estado espanhol estava de passagem por Melgaço a caminho da fronteira. Na vila, na Calçada, estava Alfredo do Paço, conhecido em Melgaço pela alcunha de “Pachorrego”, que na época era o correspondente melgacense do jornal “Diário do Minho”. Acaba por escrever uma notícia a dar conta do acontecimento e esta é publicada no dito jornal. Contudo, ainda não satisfeito, o Sr. Alfredo pega num exemplar do jornal com a notícia publicada e envia-o para Madrid para a residência oficial do ditador. A missiva é recebida e a resposta acontece numa carta redigida pelo secretário de Franco. nela podemos ler:

“El Secretário de S. E. El Jefe de Estado saluda a Don Alfredo Lourenço do Paço, correspondente do “Diário do Minho”, de Melgaço (Portugal), Rua da Calçada y le agradece, en nombre de Su Excelencia el Jefe del Estado y Generalísimo,  la atención que ha tenido de enviarle un ejemplar de ese Diario, en el que se inserta la noticia de que le Excma. Señra Doña Carmen Polo de Franco pasó por esa ciudad camino de la frontera.
Felipe Polo Martinez Valdés aprovecha gustoso esta oportunidad para expresarle el testimonio de su consideración personal más distinguida.

Madrid, 29 de Abril de 1968”