sexta-feira, 16 de junho de 2017

E se há 100 anos o comboio tivesse chegado a Melgaço?


No último quarto do século XIX, deu-se a expansão da rede ferroviária em Portugal. Melgaço, que em finais do século XIX já recebia milhares de pessoas que procuravam as suas águas termais milagrosas, ansiava por possuir uma ligação ferroviária aos grandes centros urbanos.
Desde finais do século XIX, que estava projetado o prolongamento da linha do Minho até Melgaço de forma a responder a esse forte movimento de pessoas. Projeto de linha larga, linha estreita e nenhum deles se concretizou. Como seria Melgaço se o comboio tivesse chegado há cerca de 100 anos? Seria muito diferente do que é hoje?
No seu livro, editado em 1905, Alfredo Vieira de Villas Boas, Ministro das Obras Públicas à época, conta-nos detalhes do verdadeiro pântano de avanços e recuos que este projeto sofreu:
"Entre Valença e Monção estava concedido, havia muitos anos, um tramway a vapor sobre o leito da estrada. Os seus concessionários tinham feito, ajudados de elementos políticos importantes, as mais pertinazes diligências e esforços para obterem as vantagens da base 5ª da lei de 14 de Julho de 1899, e até para lhes transformar a concessão na de uma linha férrea de um metro de largura em leito próprio, com garantia de juro, apesar de figurar, desde 1900, no plano da rede do Norte, o prolongamento de via larga da linha do Minho, desde Valença até Melgaço.
A comissão técnica de 1898 justificava, no seu magnífico relatório de 3 de Julho de 1899, a adoção da via larga para o troço de Valença a Melgaço, nos seguintes termos: “Trazer à linha principal o tráfego que lhe pertence, conduzindo sem trasbordo os passageiros e mercadorias pelo caminho que se lhe oferece em melhores condições de tração, o mesmo é que abrir livre curso, sem derivações possíveis, ao afluente, no ponto em que vai engrossar a corrente geral no máximo trajeto.
Acrescem as circunstâncias da facilidade do traçado em planta e perfil e da construção pouco extensa, quasi só diferente para uma ou outra bitola pelas dimensões do perfil transversal e pelo tipo propriamente da via e perfeitamente divisível em duas campanhas sucessivas, a primeira de Valença a Monção, a segunda de Monção a Melgaço.”
A publicação do decreto de 15 de Fevereiro de 1900, classificando o troço de via larga de Valença a Melgaço, veio corroborar essa judiciosa resolução, não obstante o que, os concessionários requereram em 8 de Maio de 1900 a transformação da sua concessão na de uma linha de um metro, com uma zona de proteção de 30 Kms, e à qual dessem as vantagens previstas da base 5ª, para o que seria preciso, com prejuízo da região, alterar a classificação decretada meses antes, depois de inquérito e audiência das corporações consultivas competentes.
Nem o leito da estrada comportava uma linha dessa largura, nem havia conveniência pública na transformação.
O pedido foi indeferido por despacho  de 23 de Junho de 1900, sob parecer do Conselho de Administração, sendo autorizado o levantamento do depósito de 1760$000 réis, mediante desistência da concessão e, no caso contrário, declarado improrrogável o prazo, tantas vezes prorrogado, para começarem os trabalhos.
O Estado recusava-se assim a alterar o plano de viação acelerada por forma inconveniente, reservava o seu direito de construir o prolongamento de via larga, mas respeitava a concessão feita, sem consentir no adiamento sucessivo da realização da obra.
Sucederam-se, todavia, novas prorrogações em 14 de Março de 1902 e 16 de Março de 1903, e diligências para promulgação de uma lei que transformasse a concessão de tramway na de uma linha de um metro, em leito próprio, com garantia de juro.
Essa pretensão era muito patrocinada por pessoas influentes da política regeneradora, sendo durante a minha gerência. Não só recusei, mas estando por cumprir o preceito do decreto de 6 de Outubro de 1898, que manda elaborar os projetos das linhas complementares classificadas, suscitei, por portaria de 5 de Março de 1904, o cumprimento dessa prescrição, mandando proceder pela Direção do Minho e Douro aos estudos do troço de Valença a Melgaço para via larga, nas condições da máxima economia, dividindo-a em dois lanços sucessivos: um de Valença a Monção, outro de Monção a Melgaço.
Não desistiram os concessionários da sua pretensão, formulando-a em requerimento sobre que foi ouvido mais uma vez o Conselho de Administração, animados pela concessão das linhas de Braga a Guimarães, Braga a Monção e Viana a Ponte de Lima, com garantia de juro.
O novo requerimento abrangia três pretensões: mudança de classificação da linha pela substituição da vai larga pela via reduzida; auxílio do Estado sob a forma de garantia de juro e outras vantagens; outorga de uma concessão aos requerentes, acrescentada com o do troço de Monção a Melgaço.
Alegrava-se, para justificar a mudança de tipo de via, o elevado custo da via larga, exatamente onde ela pode ser construída sem grande dispêndio e a diferença de custo é compensada pela supressão das baldeações em Valença e pelo aproveitamento do material circulante em serviço hoje até ali.
Argumentava-se que o diminuto rendimento do prolongamento não dava remuneração ao capital exigido pela via larga, como se o tributo desse prolongamento não aumentasse o tráfego aquém de Valença. Demais, estando concedida uma linha de via reduzida, de Braga a Monção, era ali e não em Valença que a via reduzida devia entestar com a via larga.
Por último seria prejudicial para o público o fracionamento das linhas por várias empresas concessionárias. E não colhia o argumento infundado de ser indispensável a concessão com garantia de juro, por não poder ser construída tão cedo pelo Estado a linha de via larga.
O rendimento próprio da linha de Valença a Melgaço será pequeno, não bastando pois a garantia de 3% sobre 20 000$000 réis por Km, para lhe dar rendimento.
Se o Estado tivesse que dar maior garantia, com o mesmo encargo, preferível seria levantar o capital para a construção de via larga.
Concluía o parecer por alvitrar a anulação da concessão do tramway. Logo que findasse a última prorrogação concedida.
Por essa ocasião veio a Câmara de Valença, com informação favorável do governador civil, patrocinar a pretensão dos concessionários e pedir que  o estudo ordenado fosse feito, não para via larga, mas para via reduzida.
Argumentava a Câmara com as vantagens que para Valença resultariam de se efetuar ali o transbordo de passageiros e mercadorias. E no inquérito de 1899, a mesma Câmara pronunciava-se a favor da via larga “atentas as relações comerciais e o muito trânsito e movimento entre Melgaço e Monção para a estação de Valença, que é terminus”.
Às solicitações oficiais e oficiosas, invocando as supostas conveniências da política partidária, ás campanhas difamatórias na imprensa, em que inventavam manejos de uma imaginária companhia ou sindicato do Porto, apoiado pelas entidades técnicas que intervinham no assunto para obter a concessão de um troço de via larga reservada para o Estado, respondi com o despacho de 27 de Setembro de 1904, mandando prosseguir até Melgaço, com a máxima atividade, os estudos para via larga, que estavam sendo feitos entre Valença e Monção.
Por essa ocasião, vários habitantes dos concelhos interessados, alegando que tinha sido pedida às câmaras a aprovação do projeto de lei concedendo garantis de juro à linha de via reduzida, solicitaram a El-Rei a imediata resolução do assunto por um ato ditatorial.
Em 22 de Setembro realizou-se em Monção uma reunião de delegados de três concelhos, para representarem no mesmo sentido.
Não obstante as vivas instâncias do meus correlegionários políticos, entendi que não devia afastar-me da linha de conduta adotada, e resolvi definitivamente o assunto de acordo com a lei, com os interesses do Estado e as verdadeiras conveniências da região, desfiguradas para se acudir a uma empresa periclitante.
Passara o prazo da última prorrogação.
Por portaria de 30 de Setembro de 1904, mandei declarar caduca a concessão do tramway, pondo assim termo à questão, deixando o campo desembaraçado para a construção para a construção do prolongamento do caminho de ferro do Minho por conta do Estado, e votando ao merecido desprezo as arremetidas de foliculares venaes ou desorientados.
Creio ter prestado, com esta resolução, que me originou numerosos dissabores, um verdadeiro serviço à região e ao Estado.”
Contudo, o processo, à boa maneira portuguesa, continuou a revelar-se um pântano burocrático. Anos mais tarde, por portarias de 11 de Outubro de 1905 e de 1 de Abril de 1911, foram aprovados os projetos e orçamentos do primeiro lanço, Valença a Monção, e da estação de Monção; e enfim, a abertura à exploração entre Valença e Lapela realizava-se em 15 de Junho de 1913, verificando-se em 15 de Julho de 1915 a do troço entre Lapela e Monção.
O sonho do comboio em Melgaço morrera...


Extraído de: VILLAS BOAS, Augusto Vieira (1905) - Caminhos de Ferro Portuguezes. Livraria Clássica Editora de A. M. Teixeira & Cª, Lisboa. 

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