sexta-feira, 24 de novembro de 2017

A Lenda da Inês Negra contada num jornal brasileiro (1927)


A Inês Negra é a heroína lendária da nossa terra, Melgaço. Não se conhece quase nada acerca desta personagem. Sabe-se que durante o cerco a Melgaço em 1388, houve um confronto entre duas mulheres. Isso é descrito nas Crónica do Rei D. João I de Fernão Lopes ou de Duarte Nunes de Leão que referem mais ou menos o mesmo. Na do segundo autor, podemos ler que “Nesse dia, houve uma escaramuça mais para ver que as até ali eram passadas. Porque duas mulheres bravas, uma do arraial e outra da vila se desafiaram e vieram aos cabelos e por fim venceu a do arraial, como mais costumada a andar na guerra”. Em termos de relatos históricos, são as únicas citações que existem. Nem o nome das mulheres é referido…
Não sabemos ao certo como é que foi construída a narrativa da lenda nem a origem do nome "Inês Negra". As descrições mais antigas documentadas da mais popular lenda melgacense datam da segunda metade do século XIX (conferir em Portugal Antigo e Moderno do professor Pinho Leal) e desde então já lemos a lenda contada de diferentes maneiras e com mais ou menos pormenores.
Uma dessas versões da lenda pode ser lida num texto de Júlio Dantas, publicado num jornal brasileiro (Correio da Manhã), na sua edição de 18 de Outubro de 1927:  

“IGNEZ NEGRA

As mulheres também tem o seu lugar no friso da História guerreira de Portugal. Folheando as páginas das crónicas encontram-se, com frequência, mulheres que se bateram, que realizaram atos heróicos em defesa da Pátria, que estimularam, com ânimo varonil, a coragem dos combatentes, que sacrificaram, pela honra e pela independência, da terra que lhes foi berço, o que tinham de mais caro para o seu coração: o seus filhos. (…)
Mas os mais rico de todos os nossos ciclos guerreiros em figuras femeninas é, sem dúvida, o de D. João I. Deu-la-Deu Martins notabilizou-se na defesa de Monção; Brites de Almeida faz lampejar a pá do seu forno ao sol de Aljubarrota; Maria de Sousa, atravessando o peito de um castelhano, defende a vida do próprio rei; Inês Negra - um dos mais interessantes da História das campanhas do Mestre de Aviz - que eu venho constr-lhes hoje. Vale a pena. Porque em toda a vasta tapeçaria das batalhas que é vida de D. João I, não há talvz nenhum caso tão pitoresco como este.
 Todas as praças da fronteiras norte de Portugal se haviam já entregado aos portugueses. Viana fora liberta pelo povo, conduzido pela bravura do escudeiro Frisos. Ponte de Lima, resgatada pelos habitantes, cujos bustos o Mestre de Aviz mandou colocar no lintel de granito das portal.Monção, Vila Nova de Cerveira, Caminha tinham-nos caído nas mãos. Faltava apenas Melgaço, que levantava ainda a voz por Castela,e cujo alcaíde-mor, o castelhano Álvaro Paez Sottomayor,com trezentos homens de armas e outros tantos a pé, mantinha na pequena vila minhota m perigoso foco de resistência
D. João I, que havia pouco desposara a loura princesa de Lencastre, trouxe-a até Monção. Mandou-a depois para o convento de Fiães, com as suas donas e o chanceler João das Regras e foi assim em pessoa, por cerco ao castelo de Melgaço.
Estavamos em Janeiro de 1388. Recortando-se no céu nevoento dos invernos do Minho, a vila rebelde erguia, numa ligeira ondulação de terreno, os seus cubelos baixos, os panos babados de mugre das suas quadrelas, e a sua esbelta torre albarrã fenestrada de ajimezes e coroada de ballhesteiras. Durante dez dias, o pequeno exército do Mestre de Aviz foi apertando o cerco e construindo as obras de engenharia - a já complicada engenharia medieval dos assédios - necessárias para facilitar a entrada na praça. Enquanto os carpinteiros levantavam a grande bastida, alta torre de madeira montada sobre carros enormes, cheia de escadas e de bailéus, que, na hora do assalto, havia de caminhar até à muralhas, puxada por muitas juntas de bois, - os homens de armas, coruscantes de lanças e de bacinetes ponteagudos, vinham junto da barbacã escaramuçar. No arraial português, em volta de fogueiras, as mulheres dos arredores bailavam com os soldados, ao som de gaitas e de adufes.
Ora, entre as mulheres atraídas pela presença do rei e do exército (algumas houve, sobretudo castrejas, que, com os seus cães e os seus capeiretes negros, desceram da serra para o ver) tornara-se notada uma, a quem chamavam Inês Negra, vinte anos robustos, pequena de corpo, roliça de braços, pele trigueira acobreada do sol, olhos negros e pestanudos, que tinha, mesmo entre os homens, fama de atrevida e de valente e que segurava pelos chavelhos uma vaca barrosã - era boieira, ali perto em Valadares -  com a mesma graça com que se meneava e desnalgava dançando ao som do pandeiro. Todos gostavam dela, o próprio rei, amigo do povo, falava-lhe paternalmente, quando a via. Chegou a correr na vila que Inês Negra, vestida de armas como um homem, acompanharia as hostes de D. João I no assalto à praça. Quando a notícia foi conhecida da parte do povo de melgaço que pactuava com os castelhanos, uma mulher, também portuguesa e também decidida que, com outras da vila, acarretava pedras para as obras de defesa ordenadas pelo alcaide-mor, remangou-se irada, fincou os punhos na cinta e, com os olhos chispando lume, gritou que era mulher para outra mulher. Que para três como a Inês Negra, bastava ela: Que se o alcaíde-mor a deixasse, mandaria desafia-la para combate singular fora das barbacans e que havia de ver-se então quem vivia ali, se Castel, se Portugal. Não deixaram as crónicas o nome dessa heroína. Sabe-se apenas que lhe chamavam a Renegada e que, sendo moça espadaúda e alta, de pé miúdo a dançar nas socas e cabelos fulvos mal cobertos pelo manto de estamenha.
A alcaíde-mor, Álvaro Paes, consentiu no desafio. Inês Negra ao uivos e aos pinchos de alegria, aceitou-o logo. E, sem demora, os de um e outro campo assentaram que o combate se realizaria no dia seguinte, a meia distância entre o arraial e o castelo, saindo as duas mulheres armadas, como escudeiros, de cotas de malha de ferro de Milão, com sua espada e broquel, abrindo-se uma trégua entre sitiante e sitiados para que todos pudessem assitir ao imprevisto espetáculo.
A manhã despontou radioda. Havia muitos dias que as nuvens, mais dessas para as bandas da serra de S. Fins, não deixavam ver um tão belo sol de inverno. A torre de menagem de Melgaço, que se erguia, dourada, na claridade fresca da manhã. Todos os adarves das muralhas e dos cubelos, as próprias barbacans do lado norte, estava tudo coalhado de gente. Povo, homens de armas, besteiros cujos cascos de guerra cintilavam, mulheres com carpeiretes e manteus de cores vivas, assomando, espeitorando-se, risonhas, em ar de festa. Do lado do arraial, o mulherio dos arredores, os homens de armas da hoste, os cavaleiros das Ordens, os besteiros ingleses com os seus jaques e as suas brigandinas bordadas de licornes de ouro, o próprio rei, trigueiro, os braços cruzados, as guedelhas ao vento, esperavam, num vozear confuso, a hora do desafio. Finalmente, ouviu-se o sino da torre albarrã, e as duas mulheres, uma saindo da porta oeste do castelo, outra destacando-se da multidão do arraial, marchavam a pé, com os seus “segundos” - dois cavaleiros velhos sem armas - a caminha da pequena clareira, roçada no mato da charneca, em que devia realizar-se o encontro. De ambos os lados, soararm as trmbetas, como para um torneio real. Os gritos, as aclamações - por Portugal, por Castela! - atroavam os ares. Desfraldaram-se flamulas, bandeiras, pendões, gonfalões de cores nas lanças lampejantes. Duma parte e de outra, todas as atenções convergiram para as duas mulheres que avançavam sorrindo, firmes, vestidas de cotas e loudéis, mas sem manoplas e sem camalhas, as mãos nuas, a cara descoberta, a cabeça apenas defendida por um leve capelo de ferro. Inês Negra meã e forte, trazia no loudel a cruz vermelha de S. Jorge. A Renegada, alta, esbelta, figura de escudeiro mancebo, com os cabelos fulvos escorrendo do casco de ferro ponteagudo, vestia uma sobre-cota, com o falcão de prata de Castela em campo verde. Chagadas ao campo, embraçaram os escudos, receberam os estoques. As trmbetas, dum lado e de outro clangoraram. Ia começar o combate. Quem venceria, - Castela ou Portugal?
Uma das mentiras cenvencionais espalhadas pelo mundo é a da doçura e da fraqueza das mulheres. A mulher, quando luta, é vinte vezes mais agressiva, mais impetuosa e mais cruel do que o homem. A sua aparente graça tímida esconde um poder de combatividade que devia ter sido aproveitado nas guerras modernas. Prova-o - entre tantos outros este divertido episódio do duelo de Melgaço. A primeira a tirar-se, com vigor e com ímpeto, foi a Renegada. Mais alta  do que a outra, dominando-a pela estatura, descarregada golpes sobre golpes, que Inês Negra, ágil, a dançar-lhe na frente, aparava no largo escudo de couro de boi abrochado de cobre. Nenhuma delas conhecia o manejo de armas, atacavam-se e defendiam-se por instinto, com a fereza de duas lobas. Era tal a violência com que a Renegada fuzilava cutiladas sobre a inimiga, que o capelo de ferro voou-lhe da cabeça, e a espada das mãos. Todos suposeram que Inês Negra, vendo desarmada a outra, faria sobre ela a justiça dos vencedores. Mas não. Generosa, lançou fora a espada de que mal sabia servir-se, aeemessou por desprezo o escudo aos pés da adversária, e, rápida, como um podengo que aferra um porco bravo, atirou-se dum salto para ela, aos socos, às dentadas, às unhadas, aos pontapés. Dali a pouco, rolavam as duas abraçadas na arena, qual de baixo qual de cima, resfolegando, uivando, travando-se dos cabelos, ensanguentando-se, cuspindo-se.
À medida que a Renegada fraquejava, a outra parecia crescer em força. Subjugada um momento, dominava logo a inimiga, ferrava-lha os joelhos na arca do peito, varejava-a de punhadas, como quem amssa pão. No arraial, levantava-se um alarido de entusiamo. Mãos crispadas erguiam-se no ar, agitando bandeiras, incitando a Negra quase vencedora. Ainda, por instante, a Renegada, cobrando alento, pôde colher-se d epé, mas sofrendo de novo o embate da outra, vacilou, cambaleou, rodopiou, e mortalmente pálida, a grenha ruiva empapada de sangue, golfando sangue das narinas, caiu como um farrapo, os braços estendidos, de borco na terra. Tinha vencido Portugal. Como um só homem, todo o arraial português, em gritos bárbaros, se ergueu a aclamar a vencedora. As trombetas estrugiram os ares. Batiam, em festa, pandeiros e adufes. Até os besteiros ingleses, sapateando com os seus grossos borzequins de ferro, dançavam de contentamento. Enquanto a vencida, transportada em braços para o castelo, acordava do seu desmaio, - Inês Negra, os olhos brilhantes, os cabelos ao vento, as mãos tintas de sangue, era levada em triumfo para o arraial, sentada sobre os seu próprio escudo, aos ombros de quatro besteiros, e gritava para o rei, que viera recebê-la, á frente de todo o povo:
- A eles, senhor rei, que o castelo é de vossa mercê amanhã!
Com efeito, no dia seguinte, depois de um simulacro de assalto, o castelo de Melgaço entregava-se, sem resistência, aos portugueses”.



Texto de Júlio Dantas, publicado no jornal brasileiro “Correio da Manhã” de 28 de Agosto de 1927.

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