sexta-feira, 7 de setembro de 2018

A romaria da Nossa Senhora da Peneda há cem anos atrás


Romaria da Peneda em 1912


A romaria da Nossa Senhora da Peneda (Gavieira - A. de Valdevez) é uma das concorridas de todo o norte de Portugal e tem um caraterísticas singulares. Todos os anos, por esta altura, a esta romaria acorrem muitos melgacenses.
Há cerca de um século, em 1918, José Luíz de Caldas escrevia-nos sobre esta romaria na época:

A Senhora da Peneda

Antes que comecem as vindimas e desfolhadas – dois quadros cheios de luz e encanto da festejada vida campestre – é que passam bandos e bandos de romeiros de dez léguas em redor, a caminho da Peneda.
Num anceio confortável de devoção e regozijo – os traços mais característicos da alma popular – elles lá vão, quer entre os crepes immensos da noite, quer illuminados por pérolas de luar, para o local festivo, agreste, longinquo, que, embora rodeado por montanhas enormes e bruscas, ali arrasta innúmeros campesinos.
Formam-se os grupos. Recordam-se promessas. Rejubila o coração em impulsos d'uma alacridade louçã, virtuosa, querida. Juntam-se cachopas esbeltas com seus namorados. Prepara-se uma esturdia. E, por fim, lá seguem por caminhos invios e pedregosos, atravéz dos tufos rígidos de tojo e urze, em franca galhardia, com sacolas á cabeça e um sorriso nos lábios. São longas horas de inalterável folguedo, sempre abrilhantado affavelmente pelo som dos pandeiros e harmónicas, e pelo trovar metálico, suave, encantador, de raparigas garbosas com pernas roliças ao vento, que então suspira de volupia casta, e arrecadas sobre o peito – o altar mais divino, com o brilho do jaspe e o perfume do mangericão, dos seus conversados.
Soltam cantigas poéticas, admiráveis, lindíssimas, como esta:
Á Senhora da Peneda
Nos leva meigo luas,
Sendo o nosso pegureiro
Nos tempos do verbo amar.
De mistura com toda esta jovialidade alacre, como que espadanando-se em gaiatices e alegria santa, fervilha a devoção por essas veredas montanhosas. São pessoas que ali vão sem falla; outras sem comer nem beber; e ainda outras com velas de cera e valiosas promessas; enquanto lá muitos penitentes sobem a longa escadaria de joelhos ou dentro de caixões. É a fé arreigada do povo humilde a expandir-se sinceramente em manifestações comoventes.
Mas, por outro lado, o aspecto da romaria é deveras interessante e único, com varias patuscadas, as mais alegres travessuras, e as delicias ruidosas do vira e da caninha verde, ora entre amigas e conversados, ora com guapas hespanholas, que ali affluem.
A graça da vida aroal distribui por ali os seus melhores beijos, as suas mimosas caricias, a sua mais enternecida crença, o seu mais expansivo prazer. Parece até que um côro uníssono de vozes, quer ridentes e satisfeitas, quer sentimentaes e sinceras, se levanta para o Azul immenso, bemdizendo a ventura intima da vasta família campesina.
E, decorridos alguns dias de constante diversão amiga, elles lá voltam, com braçados de carqueja e cobertos de pó, para os seus lares tão simples, trocando os pandeiros pela enxada, mas sempre com um êxtase de satisfação bemdita a acalentar-lhes os peitos e um sorriso casto a reflorir momento a momento nas pétalas carminadas de garrulas moçoilas.”



In: Caldas, José Luiz de (1918). A Senhora da Peneda. In O. Xavier Cordeiro (dir.), Novo Almanach de Lembranças Luso-Brazileiro para o anno de 1919, (pp. 77-78). Lisboa: Parceria António Maria Pereira, Livraria Editora.

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