sexta-feira, 19 de outubro de 2018

Sobre crenças antigas das gentes de Melgaço há 100 anos atrás




Foi no início do século XX que se fizeram algumas das mais importantes recolhas da tradição oral das gentes de Melgaço, sobretudo da autoria de José Leite de Vasconcelos. Alguns destes estudos debruçam-se sobre as crenças antigas e rituais para s mais variadas situações do quotidiano. 
Por exemplo, era comum na época, na nossa terra, a crença de que as crianças, quando ainda estavam por baptizar, se encontrarem em perigo, acrescendo o perigo quando saem de casa. Dizia-se que quando os meninos estão por baptizar e andam ao collo da mãe, é preciso pôr-lhes atravessados no braço as calças do pae, para as bruxas os não levarem”. O estado de “excecionalidade” destas crianças colocam-nas em situações de risco muito graves. “Neste estado de desgraça ficam mais sujeitas a sofrer acções sobrenaturais e outros males. As mães devem pôr debaixo do travesseiro uma meada de linho ou estopa, sem cozerem, quer dizer, sem ser fervida [porque se ferve a meada com cinza-barrela, para ganhar a cor branca], a fim de evitar que as bruxas ou o Inimigo lhes façam mal” (VASCONCELOS, J. L., 1985). Segundo a crença religiosa cristã, a criança nasce com o pecado original desaparece com o batismo, daí o facto de as crianças nesta época serem batizadas, geralmente, nos dias seguintes ao seu nascimento. Havia o receio de que morressem em pecado.
Leite de Vasconcelos ouviu em Prado, neste concelho de Melgaço, falar em «más vistages que fazem mal à gente» e de más olhadas, dadas por gente que tem vista fina, que quebra vidros. Para talhar ou cortar uma olhada ruim, que causa dor de cabeça, pega-se em areia de sal virgem (que não serviu) e, benzendo o doente, diz-se:
Dois olhos me feriram,
E quatro me sararão
Dois sejam de Nossa Senhora:
E dois de S. João.
Pela graça de Deus e da Virgem Maria
Um padre-nosso e uma ave-maria.”
(VASCONCELOS, JL, 1985)
Voltando às fadas, Leite de Vasconcelos também nos diz que “em Melgaço, lava-se a criança, pela primeira vez, com água em que se deita prata ou ouro (um anel, por exemplo) e diz-se:
Boas auginhas te lavem,
Boas fadas te fadem,
Pela graça de Deus e da Virgem Maria Nossa Senhora”.
No concelho de Melgaço, faziam-se também os chamados "batizados na barriga". Levavam a mulher para debaixo de uma ponte que tenha nome de santo, antes da meia-noite, e a primeira pessoa que passar a ponte depois da meia-noite, ainda que seja o Diabo, é obrigada por bem, ou à força, a fazer o baptismo, que consiste em deitar água do ribeiro ou rio que passa sob a ponte na barriga da mulher com um púcaro de barro vidrado, novo, que se enche de cima da ponte, atado a um cordão (as mulheres desapertam a blusa, deitando-se-lhes a água por aí, ou abaixavam um pouco a saia na cinta, mostrando um pouco do ventre, ou ainda levantam a saia, lançando-se-lhes então a água por baixo), e dizendo as seguintes palavras: «Eu te baptizo com a água do rio em nome do Padre e do Filho». Depois disso, à pessoa que fez o baptismo, é servido vinho e comida com muitas tostas até que não queira mais. A pessoa que faz este baptismo é também a que depois vai servir de padrinho, na igreja (VASCONCELOS, JL, 1985).
Na época, havia na freguesia de Paços, um homem chamado Manuel Afonso, nascido em Castro Laboreiro, conhecido como o “Sábio de Vila Draque”. Conforme o registo de Leite de Vasconcelos, o «Sábio de Vila Draque» curava certas doenças pegando num pedacinho de aço, posto em cruz na casa, ou na cama sobre o doente, e dizendo a seguinte oração: «Ó aço, que picaste em terra, sirvas para benefício da minha casa! Deixa este corpo são e salvo!». Acrescenta o mesmo autor que o «bruxo» possuia «um pedaço de aço de três pontas que mandou fazer a um ferreiro e benzeram-lho num convento». (VASCONCELOS, JL.,1985).
Há um século atrás, ouvia-se falar também de ensalmos para talhar o ar sendo que o investigador descreve-nos como se proceder para levar a cabo um ritual:
Toma-se sal virgem (que nunca tenha servido), e com ele na mão, fazem cruzes sobre o rosto do paciente, dizendo:
Talho mau ar,
Corrimento [dos ventos]
E tolhimento
Bota-te fora deste corpo,
Vai-te para o mar coalhado:
Ar de vivo,
Ar de morto,
Ar de excomungado,
Ar de empecimento
E ar de inveja,
Q’antas calidades d’ares
Possa haver e empecer,
Eu te desconjuro
Para o mar coalhado.
Deixa este corpo
São e salvo
Como na hora
Em que foi nado.
Deita-se o sal em cruz para trás das costas do doente e para os lados. Toma-se mais sal miúdo e coloca-se com cuspo na testa, queixo e fontes, dizendo, simultaneamente:
Nada tirei,
Mezinha farei
Pela graça de Deus e da Virgem Maria”.
Num tempo em que as crenças ocupavam um lugar muito importante na vida das gentes, existiam também rituais para desmanchar um feitiço. Para tal, tomava-se um quartilho de azeite, benzido por um padre que não seja amante de mulheres e o indivíduo com feitiço vomita-o imediatamente (recolha feita em Melgaço em 1918). Para se saber se alguma pessoa tem quebranto, deitam-se três pingos de azeite em água: se o azeite se espalhar tem, se ficar junto não tem.
Uma outra crença da época em terras de Melgaço estava ligada a “encomendar ou  aumentar as almas” e consistia em ritual no qual se lembravam os nomes das almas para as encomendar a Deus. A encomendação é realizada dentro de um signo-saimão (parecido com uma estrela de cinco pontas, para o operador não ser tentado pelo Diabo, concluindo a cerimónia com a exclamação: «Peço um Padre Nosso e uma Ave Maria por todas as almas em geral que estão nas penas do purgatório», seguida da respetiva recitação em voz muito alta. Em Castro Laboreiro, consoante informação que deram ao antropólogo José Leite de Vasconcelos, um homem ia (às quartas e sextas-feiras, de noite) a um lugar ermo e alto, armado, «por causa das coisas más», desenhava um signo-saimão no chão (parecido a uma estrela de cinco pontas), de modo que uma árvore ficasse no meio dele, subia a ela e, em voz fúnebre, entoava um cântico religioso, com o qual provocava medo a quem o ouvisse.
E muitas mais crenças ficam por contar…


Informações extraídas de:
- MARQUES, Alexandre da Silva (2014) – Lugares da Memória – A Ponte da Mizarela. Instituto de Ciências Sociais; Universidade do Minho, Braga.
- VASCONCELOS, José Leite de (1985) – Etnografia Portuguesa. Volume III, Tradições Portuguesas.

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