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domingo, 27 de outubro de 2024

Melgaço, Dezembro de 1914 - Notícia de um violento temporal



Nunca como hoje a opinião pública deu tanta atenção aos fenómenos meteorológicos extremos. Contudo, se falarmos com os mais velhos, eles contam-nos como eram os duros invernos de antigamente, algo diferentes dos atuais. Se folhearmos os jornais melgacenses de outrora, encontramos notícias dedicadas a severas intempéries e aos graves danos causados. Em Dezembro de 1914, ocorreu uma violenta tempestade de que nos fala a esta notícia no "Jornal de Melgaço" de 17 de Dezembro desse ano:

"O temporal 

Pode-se dizer assoutamente que o temporal da noite de quinta-feira passada foi horroroso e causador de innumeros e avultados prejuízos, quer em Melgaço, quer nos concelhos de Monsão e Valença e ainda por esse paiz fora. 

O vendaval, acompanhado de grossas e continuas bátegas de água, fazia transir de mêdo os mais arrojados. É que parecia tudo arrastar e tudo derruir. E a prova está na descripção simples e resumida, dos estragos por elle causados e que passamos a descrever;  

O regato do Rio do Porto, que passa nesta villa, devido à grande enchente, alagou muros, destruiu latadas e causou grandes prejuízos aos proprietários confinantes.  

O de Prado, maiores estragos causou, porque, além de também arrasar muros, campos e latadas, destruiu as pontes de Canles, da Carpinteira e parte da Pedrinha, próximo do monte de Prado. 

O do Barral, em S. Paio e o de Midão, em Paderne, danificaram também muitos prédios confinantes, causando-lhes consideráveis prejuízos, e o Mouro, que atravessa as freguezias de Parada do Monte, Cousso e Gave, d'este concelho, e Riba de Mouro e outras, do concelho de Monsão, deixou horrorizados todos os seus habitantes. As pontes da Cella e de Virtello, assim como todos os moinhos, fulões e engenhos, tudo foi destruído, causando este facto o maior pânico.  

Na Ponte do Mouro, o espectáculo era deveras admirável mas assombroso. A corrente arrastou, até ali, pipas, salgadeiras, soalhos, adelhas de moinhos, peças de engenhos de serra, cadeiras e muitas outras coisas que é impossível enumerar, entrando também em algumas casas daquella localidade e destruindo completamente alguns moinhos e azenhas, assim como derrubou parte das guardas da antiga Ponte.  

O rio Gadanha, na freguezia de Troporiz, concelho de Monsão, destruiu quasi totalmente os moinhos e engenhos de serragem que ali existiam, assim como destruiu a ponte que ligava parte da freguezia com a estrada nacional e o resto de uma outra ponte, construída em 1909, acabou de ser desmoronada.  

Na freguezia de Pias, do mesmo concelho, fez o mesmo rio idênticos estragos, chegando a ficar interrompido o transito pela ponte da Naia. Em Valença, a innundação causou enormes prejuízos nas freguezias de Cerdal e Gandra; principalmente na primeira são calculados em 50 contos. O sr. José Casimiro Affonso perdeu a sua bem montada fábrica de moagem, serragem e de azeite, levando-lhe a corrente grande porção de material e cereaes, ficando só as machinas.  

Muitos outros proprietários tiveram também grandes prejuízos, vendo os campos sem vinha e sem arvores. Da ponte da egreja, em construcção, nada ficou!  

No último domingo, caiu sobre os logares de Pouzafolles, Balsada, Faval, Quingosta, Porto-Carreiro e Fulão, da freguezia de Fiães, deste concelho, uma tão terrível trovoada que, alem de causar enormes prejuízos aos prédios confinantes do rio Trancoso, levou na sua passagem moinhos, terrenos e cinco pontes que havia de communicação com a Hespanha, ficando por isso os moradores daquelles logares nas mais críticas circunstâncias por não poderem agora transitar com seus gados e carros para Hespanha, onde muitos delles têem a maior parte de seus bens. 

Os prejuízos são calculados em muitos centos de escudos e por isso, na impossibilidade de os respectivos povos poderem occorrer a taes despezas, devem as juntas de paroquia, por intermédio da autoridade administrativa ou da Câmara Municipal, solicitar do Governo o subsídio indispensável para reparar, se não todos, a maior parte dos prejuízos causados."

sexta-feira, 11 de outubro de 2024

Sobre o lugar da Cela, na freguesia de Cousso: algumas notas

 



A freguesia de Cousso tem menos de 500 anos de existência. A origem da freguesia de Cousso leva-nos até à segunda metade do século XVI em data incerta, mas posterior a 1572. Até essa altura, Cousso integrava-se no Couto de Paderne desde a sua criação em 1141.  

Refira-se que o mais antigo lugar de culto conhecido nesta freguesia foi a desaparecida capela de Santo Antão. Esta ermida foi construída pelos moradores de Cousso, estando concluída em 1571, com o argumento de o povo de Cousso poder ouvir missa todos os domingos, o que até então não era possível, dada a distância e os maus caminhos que os separavam da igreja paroquial, em Paderne, tal como se demonstra mais à frente com base documental: “Dizem os moradores da aldea de Cousso que he da freguezia do Mosteiro de Paderne que morando elles suplicantes como morão quaise hua legoa de muito maa terra do dito Mosteiro e desejando ter hua hirmida em a dita aldea pela pola somana ter hua missa (…) Pedem a Vossa Senhoria Reveredíssima avemdo respeito a muita necessidade que eles suplicantes tem da dita hirmida que poderão ser 22 moradores lhes dê a licença pera nela se dizer missa ou cometa ao vigário da Comarca se imforme do sobrescrito e achamdo ser asi lhes pase a tal licença no que receberão mercê e esmola...” 

Note-se que no documento cujo extrato se transcreve, se faz referência à aldeia de Cousso, que corresponde ao lugar com o mesmo nome onde se construiu na segunda metade do século XVI a tal ermida de Santo Antão e só mais tarde deu lugar à igreja paroquial.  

Nas Memórias Paroquiais, em 1758, o pároco de Cousso refere que a freguesia tinha uma população de 521 habitantes. Menciona também que a “parochia está junto do lugar de Cousso, como fica dicto tem três lugares, o lugar de Cousso e o lugar da Cella e o lugar de Birtello...”. Quanto à extensão de cada um dos lugares, podemos ter uma ideia já que o pároco deixou escrito que “o lugar de Cousso (...) tem vinte e nove fogos e o lugar da Cella tem vinte e seis e o lugar de Birtello tem satenta e hum”. Assim, ficamos com a ideia que o lugar da Cela tinha, há quase trezentos anos, uma extensão semelhante ao do lugar de Cousso, ao passo que Virtelo se destacava por um número de casas muito superior aos outros. 

Conforme se refere, um dos lugares principais da freguesia é o lugar da Cela. A origem deste topónimo é incerta e leva-nos a várias possibilidades. Um primeiro aspeto a considerar é que o nome do lugar aparece quase sempre escrito nas formas “Cella” ou Cela”. A única exceção é o documento da obrigação à fábrica da capela da Senhora da Boa Morte, redigido em 1759 e referenciado mais à frente, que aparece escrito na forma “Sela”. Porventura, dado não conhecermos mais casos, é possível tratar-se de um lapso do redator do documento. Este pormenor é importante já que o topónimo escrito com a inicial “C” ou “S” pressupõe origens etimológicas distintas. Todavia, mesmo nos cadernos paroquiais conhecidos, desde o século XVII, o topónimo aparece sempre escrito com a inicial “C”.

Segundo Mário de Sá, o topónimo Cela poderá ter origem na palavra “cala, calha” ou “quelha”, que significava caminho. Porém, uma outra explicação que poderá ter algum sentido, tem por base elementos relacionados com a vida e atividade dos Monges de Paderne, em cujo território do couto se localizou esta terra durante vários séculos. Assim, a explicação para a origem do topónimo “Cela” pode estar relacionada com o facto de no lugar existir uma cela, onde um monge cobrava o tributo aos fregueses e o mesmo era armazenado numa espécie de celeiro. Note-se na origem do termo “celeiro”, em que o mesmo tem a mesma raiz de Cela. Assim, o termo “celeiro”, vem do Latim CELLARIUM, “depósito de provisões, tulha”, de CELLA, “compartimento, peça de uma casa”, relacionado com o verbo CELARE, “esconder”. Quando pensamos nos tributos que os fregueses pagavam, em tempos antigos ao mosteiro de Paderne, temos que pensar sobretudo naquilo que as pessoas produziam. A este respeito, o pároco de Cousso, escreveu, em 1758 que, nessa altura, na freguesia "os fructos mais abundantes que se recolhem são milho, centeio e trigo, milho miudo que tem o nome de branco, trigo e vinho pouco e castanha."

As hipóteses aventadas para a origem do topónimo "Cela" são apenas isso. Não existe uma explicação inequívoca, mas apenas podemos avançar com hipóteses. 

Interessante também é a alusão, no manuscrito da Memória Paroquial de 1758, que o pároco da freguesia de Cousso faz ao uso das águas dos ribeiros para a rega dos campos e de forma livre. A este propósito, deixou escrito que, na época, “alguma desta freguesia como o lugar da Cella tira de suas ágoas para salvar as novidades e tãobem os do lugar do Birtello libremente.” 


No lugar da Cela existe, desde há quase três séculos, a capela de Nossa Senhora da Boa Morte. Desconhecemos a data precisa da sua construção mas a mesma não é mencionada nas Memórias Paroquiais de 1758. Acreditamos que já existiria uma primitiva ermida por esta altura mas, na época, devia estar arruinada e não merece qualquer menção por parte do sacerdote da freguesia. Existe no arquivo histórico da Arquidiocese de Braga um documento manuscrito, redigido em 1759, referente à “Obrigação à fábrica da capela de Nossa Senhora da Boa Morte, com licença para se erigir de novo a dita capela no sítio do lugar de Sela, a favor dos moradores do dito lugar, por este ficar distante da igreja e que não fica muita gente sem missa”. O título desde documento, indica-nos a razão para o povo da Cela ter decidido arrancar com o processo de obtenção de licença para a construção de novo da sua capela. Os moradores do lugar julgavam-se distantes da igreja paroquial de Cousso para irem à missa, fator sempre agravado nos invernos quando os caminhos se tornavam impraticáveis, e queriam ter presente um local de culto no seu próprio lugar para ouvirem missa. Note-se que a distância, a pé, que separa o lugar da Cela da igreja paroquial ronda os dois quilómetros. 

Um outro documento no espólio do Arquivo Distrital de Braga data de 25 de Abril de 1760 e tem o título “Provisão de licença para se erigir de novo a capela de Nossa Senhora da Boa Morte na freguesia de São Tomé de Cousso, comarca de Valença, na forma que nela se declara”. Volto a chamo à atenção para o teor do título dos documentos citados, onde se diz que o povo da Cela queria construir a capela de novo. Isto demonstra-nos definitivamente que já existia uma ermida mais antiga mas que se devia encontrar em ruína, sendo necessário a construção de raiz de uma nova capela. Não se conhece com certeza a localização da primitiva capela, mas no documento antes citado não há referência a uma mudança de local, ainda que isso não nos dê certezas, mas apenas suspeitas que a capela foi reerguida no mesmo local.  

Certamente que a primitiva capela da Senhora da Boa Morte será posterior à construção da capela de Santo Antão, esta já concluída em 1571, conforme se refere atrás. Note-se que a desaparecida capela de Santo Antão deve ter sido a primeira em Cousso, já que no processo de licenciamento daquela capela se refere que o povo de Cousso tinha que ir à missa a Paderne. 

O povo da Cela, conforme se demonstra, é devoto e celebra a Nossa Senhora da Boa Morte com uma festa no seu dia desde tempos antigos. Ainda, em meados do século passado, se folhearmos as páginas do jornal “A Voz de Melgaço”, na sua edição de Julho de 1946, podemos ler: “Cousso, 28 – Na passado domingo, dia 23, realizou-se no lugar da Cela desta paróquia a festividade da Senhora da Boa Morte que foi abrilhantada pela Banda dos Cadetes Tangilenses. Foi pregador o Rev. P.e António Rodrigues de Parada do Monte... 

Na atualidade, a capela apresenta uma planta retangular, tendo adossado à fachada lateral esquerda pequena sacristia. Os volumes são escalonados com coberturas diferenciadas em telhados de duas águas, rematadas em beirada simples. As fachadas são construídas em cantaria de granito de aparelho irregular, com os cunhais firmados por pináculos, a principal virada a poente, terminada em empena, encimada por sineira e rasgada por portal de verga reta, entre dois janelos e encimado por óculo.