A referência mais antiga a uma igreja em Rouças data de há mais de 800 anos, mas a que ainda hoje conhecemos tem apenas um pouco mais de 300 anos de antiguidade. Na verdade, o documento mais antigo que refere a existência de uma igreja data de finais do século XII. Sabemos que em 10 de Agosto de 1192, um tal Paio Soares, Elvira Vaz e filhos, doaram ao mosteiro de Fiães, a herdade de Corujeiras, nesta freguesia. Note-se que na escritura da doação, este topónimo aparece escrito com a grafia “Cruieiras” no início do documento, mas mais à frente o nome da dita herdade é assim escrita: ”Curugeiras sub ecclesia Sancte Marine Roucis”, ou seja, que a dita propriedade se situava abaixo da igreja de Rouças. Dessa primitiva igreja pouco ou nada sabemos. Quem terá mandado construir a igreja que ainda hoje conhecemos? Na verdade, a sua edificação deve-se um padre setubalense e vamos saber mais sobre a sua vida...
No alçado posterior da capela-mor da igreja paroquial de Rouças, encontra-se esta epigrafe comemorativa:
BLASIVS DE AN
DRADA DA GA
MA AbbAS in
VTROQ IVRE
LAVREAT A FUN
DAMENTIS ERE
XIT MDCLXXXX,
cuja leitura, aliás sem qualquer dificuldade, é a seguinte: “Blasius de Andrada da Gama abbas inin utroq (ue) jure laureat(u)s a fundamentis erexit. MDCLXXXX” e se pode traduzir deste modo: «O Abade Brás de Andrade da Gama, licenciado em ambos os direitos (canónico e civil), construiu (esta igreja) desde os alicerces, em 1690».
É possível que esta inscrição, apesar de divulgada pelo nosso conterrâneo e amigo, Sr. P. Маnuel António Bernardo Pintor, no seu Melgaço medieval, p. 45, continue sem qualquer significado para muitos paroquianos de Rouças. Pela nossa parte, há muito a consideramos do maior interesse para a história da freguesia, tendo, por isso, passado a figurar no nosso ficheiro.
O desejo de saber quem era o abade Brás de Andrade da Gama, cuja memória se perpetua nesta epígrafe, levou-nos a fazer algumas pesquisas nos Arquivos Distrital de Braga e da Universidade de Coimbra, felizmente, coroadas de êxito. Ficámos, assim, de posse de alguns dados biográficos deste culto e dinâmico abade de Rouças (...).
As fontes documentais utilizadas para apurar estes dados foram, essencialmente, o processo da inquirição de genere, vita et moribus, organizado para а ordenação do nosso biografado, e os livros paroquiais de Rouças, Caminha e S. Pedro da Torre, conservados no Arquivo Distrital de Braga, bem como os livros de matrículas em Cânones, nºs 16 e 17, e os de autos e graus, n. 42 e 43, do Arquivo da Universidade de Coimbra.
A referida inquirição de genere permitiu-nos conhecer a sua ascendência. Ficámos, assim, a saber que este ilustre abade de Rouças era filho ilegítimo de António de Andrade da Gamа, natural da vila de Caminha e de Francisca de Mendonça, da vila de Setúbal. Embora a documentação não o diga, é de supor que o pai de Brás de Andrade da Gama se dedicava ao comércio ou atividades marítimas, circunstância que lhe terá proporcionado o conhecimento de Francisca de Mendonça. Recorda-se, a propósito, que nessa altura a grande riqueza de Setúbal era constituída pelo sal, cuja exploração e comércio são bem conhecidos pelos estudos de Virgínia Rau, podendo-se acrescentar que, desde meados do século XV, era intensamente procurado pelos comerciantes do vale do Minho, que, a partir de Caminha e, sobretudo, de Valença, onde chegava por via fluvial, o distribuíam para todo o Alto-Minho e para a Galiza.
Brás de Andrade da Gama era neto paterno de Miguel de Andrade da Gama e de sua esposa, Maria Rodrigues Caminha, já falecidos quando, em 1679, se procedeu à inquirição que nos revela estes pormenores; pelo lado materno teve como avós Luís da Costa Beja e sua mulher, Iria de Carvalho, naturais de Setúbal e aí moradores, igualmente falecidos à data da referida inquirição.
Segundo os dados fornecidos pela Cúria Arquiepiscopal de Lisboa em resposta à carta requisitória enviada de Braga, os avós maternos deste candidato a ordens sacras eram cristãos velhos, confirmando, assim, a limpeza de sangue já comprovada em relação aos avós paternos.
As fontes consultadas ocultam-nos a data do nascimento de Brás de Andrade da Gama, que supomos ter ocorrido nos primeiros meses de 1654. Nos livros de batismo de Caminha, nada encontrámos a seu respeito e na certidão passada pelo reitor da matriz dessa vila para о processo de ordenação, não se menciona qualquer data nem há referências a livros consultados, dizendo-se textualmente: «Certifico que informando-me com pessoas fidedignas, christãos velhos, achei que o licenciado Braz de Andrade da Gama, morador nesta vila, filho natural de António de Andrade da Gamа...», по que aliás, coincidiam os depoimentos das seguintes testemunhas ouvidas na inquirição de genere: Pedro Gonçalves Homem e o Reverendo Gabriel de Castro, licenciado em Teologia, natural e morador em Caminha, de «setenta anos pouco mais ou menos».
O facto de o citado reitor o dar apenas como «morador nesta vila» permite-nos conjeturar que Brás de Andrade da Gama deve ter nascido em Setúbal.
Na impossibilidade de consultar pessoalmente os assentos de batismo desta vila, solicitámos a colaboração do nosso amigo, Sr. Dr. Carlos da Silva Cosme, Dig.mo Director do Arquivo Distrital de Setúbal, a quem agradecemos a minuciosa busca efetuada nos registos paroquiais de S. Julião, Anunciada, Santa Maria e S. Sebastião, que no século XVII pertenciam, como hoje, à referida vila. Nesta investigação, praticamente infrutífera, apenas se conseguiu detetar a fl. 106 do livro de batismos da paróquia de Santa Maria este curioso assento: “Aos dez de Fevereiro de 663 baptizei Brás filho de pais incógnitos. Foi padrinho Pedro João. Manuel Lobato de Carvalho”. Só com estes dados não possível garantir a sua identificação com o nosso biografado, que nessa altura andaria pelos dez anos de dade, embora não seja de excluir liminarmente tal hipótese.
Entretanto, devemos esclarecer que a nossa suposição quanto à data de nascimento acima proposta se apoia no facto de António de Andrade da Gama ter celebrado privada e secretamente o seu casamento com D. Ana Bernardes, filha de Manuel Bernardes Maciel e de Maria Rodrigues da Costa, no dia 12 de Fevereiro de 1654, “em casa sem pregons, em que dispensou o doutor Domingos Carvalho Oliveira juiz dos casamentos da Rellação de Braga”. À cerimónia presidiu o abade de Sta, Maria (no texto Marinha) de Ponte de Lima, Padre Lourenço da Costa do Prado, com delegação do reitor de Caminha, assistindo, como testemunhas, o licenciado Gaspar Soares Pereira e Jerónimo de Andrade Pereira, cujo apelido inculca algum parentesco com o noivo.
Para obter dispensa de proclames e autorização para o celebrar em casa, foram, sem dúvida, aduzidos motivos graves e urgentes, como tais reconhecidos em Direito. No entanto, o facto de o processo ter sido organizado secretamente e о саsamento celebrado nas circunstâncias acima referidas, fazem-nos pensar se não terá havido um empolamento das razões de urgência apresentadas, no intuito de conseguir uma antecipação deste ato ao nascimento de Brás de Andrade da Gama que, assim, ficou sem possibilidades de legitimação por subsequente matrimónio dos pais não fosse surgir algum óbice aо consórcio com D. Ana Bernardes.
A título de curiosidade, pоdemos informar que o referido António de Andrade da Gama só veio a falecer vinte e um anos depois, no dia 1 de Agosto de 1675, ficando sepultado na igreja do mosteiro de Sto. António de Caminha.
Nada se sabe da infância e juventude de Brás de Andrade da Gama até se matricular na Faculdade de Cânones da Universidade de Coimbra. Tanto nos livros de matrículas como nos de autos e graus, à semelhança da documentação bracarense, é sempre designado como sendo de Caminha, donde se pode concluir que muito cedo aí se fixou com sua mãe. Isto significa que António de Andrade da Gama, embora o não tenha legitimado, não enjeitou a paternidade e obviou à subsistência da mãe e do filho, ao qual proporcionou a formatura em Cânones e Leis na Universidade de Coimbra. Quando, em 1679, foi organizada a já várias vezes citada inquirição de genere, Francisca de Mendonca morava na freguesia de S. Pedro da Torre, no termo de Valença. Desconhece-se em que data aí se radicou, mas pode-se adiantar que o fez na sequência do seu casamento com Manuel Gomes da Ponte, vindo a falecer, em 23 de Novembro de 1681, no lugar de Chamosinho, dessa freguesia.
Segundo a documentação conimbricense, Brás de Andrade da Gama frequentou a Universidade durante o septénio de 1671 - 1678, ano em que se graduou em Cânones e Leis. (...)
Mercê de causa grave indeterminada, durante o terceiro ano de Universidade, viu-se obrigado a interromper a sua frequência, antes de começar o terceiro período, pois no livro de matrículas, falta a sua assinatura correspondente ao pagamento da última propina, tendo o secretário anotado: “...faltou-lhe a 3”. Isto equivalia à perda do ano, possivelmente, motivado por doença.
Apesar deste percalço curricular, no dia 11 de Junho de 1677, prestou provas públicas que o habilitaram ao grau de bacharel em Cânones. O ato foi presidido por D. José de Menezes, Reformador e reitor da Universidade, tendo exercido as funções de padrinho, o doutor António de Gouveia e Sousa, lente de Véspera, estando também presentes «os Senhores Doutores lentes juristas». Foi perante este júri que Brás de Andrade da Gama expôs «a sua lisão de ponto que lhe foi asinada em que lhe argumentarão os Doutores seus mestres», saindo aprovado por unanimidade - «nemine discrepante». A seguir, jurou defender o privilégio da Conceição Imaculada de Nossa Senhora, como se exige, desde 1646, a todos os formados pela Universidade de Coimbra, antes de lhes ser feita a colação dos graus.
Pouco mais de um ano depois, no dia 28 de Julho de 1678, obteve o grau de licenciado, em provas prestadas na sala dos actos da Universidade, perante os senhores Doutores juristas, tendo, desta vez, como padrinho, o doutor Jerónimo de Sousa de Magalhães, lente de Cânones, ficando igualmente «per todos approvado nemine discrepante».
Terminando o curso universitário, preparou-se para receber ordens sacras, incluindo о presbiterado. Por isso, conforme determinava o Direito, foi necessário proceder à inquiricão de genere, vita et moribus, bud et morious isto é, sobre a sua ascendência, vida e costumes, de que resultou o processo várias vezes invocado (...), donde extraímos elementos absolutamente insubstituíveis para a biografia deste abade de Roucas. Para o efeito, em 20 de Agosto de 1679, foi passada соmissão ao P. João Gomes de Castro, comissário do Santo Ofício, abade de S. Tiago de Sago, Monção, e beneficiado de S.to André das Taias, sendo-lhe dado como escrivão o Р. Ângelo Rodrigues Samora, morador na freguesia de Santa Mаria de Lovelhe e abade de Vila Nova de Cerveira.
Do pedido da inquirição consta, pela primeira vez, a condição de ilegítimo, de quе obteve dispensa.
A inexistência ou, pelo menos, desconhecimento atual dos registos e listas da colação de ordens, referentes a este período, oculta-nos a data exata da ordenação sacerdotal de Brás de Andrade da Gama. Conjugando, porém, as datas do processo da inquirição de genere com о facto de ter pedido e alcançado dispensa de interstícios, não será ousado admitir que ela teve lugar durante o ano de 1680 (...).
Faltam, igualmente, informações sobre os cargos por ele exercidos antes de chegar à freguesia de Rouças, onde se documenta a sua presença, pela primeira vez, em 26 de Dezembro de 1687. Com efeito, o primeiro assento do Livro de óbitos, n.° 1, referente aos anos de 1687-1720, está datado desse dia e ostenta a assinatura do abade Brás de Andrade da Gama.
Consultando o Livro misto, n. 2, da freguesia dede Rouças (1657-1706), verifica-se que o primeiro assento de casamento assinado por ele é de 28 de Fevereiro de 1688 (fl. 104), enquanto em relação aos batismos isso só acontece em 25 de Outubro seguinte (fl. 63v).
Nestas circunstâncias, ficámos a saber que no último trimestre de 1687 já se encontrava na freguesia de Rouças, onde viria a falecer, em 31 de Outubro de 1712, depois de a ter pastoreado cerca de vinte e cinco anos. Quando o licenciado Bráz de Andrade da Gama assumiu as funções de abade de Rouças, deparou com a igreja paroquial em más condições e sem capacidade para comportar todos os fiéis, logo projetando a construção da atual, que, pela sua traça arquitetónica, é uma das mais belas do concelho. Foi então demolida a velha igreja românica, de que, até há poucos anos, não se conheciam quaisquer vestígios. Posteriormente, porém, durante as obras de consolidação da torre, apareceu no alçado poente uma aduela enxaquetada, que, pela temática decorativa, sugere afinidades com a matriz de Melgaço.
Confrontando a data de 26 de Dezembro de 1687, em que pela primeira vez se regista a presença deste abade na freguesia de Rouças, com a de 1690, patente na epígrafe comemorativa transcrita no primeiro artigo, verifica-se que esta Igreja foi construída, pelo menos parcialmente, nos três primeiros anos seguintes à sua entrada na paróquia.
A construção desta Igreja, constituiu um empreendimento de vulto para a freguesia, relativamente pobre, e bem gostaríamos de conhecer em pormenor como se reuniram os fundos necessários para custear as enormes despesas decorrentes de obra de tal envergadura. Para além das conjeturas que se possam fazer quanto à contribuição da freguesia com ofertas e serviços e às dádivas dos padroeiros, cujo brasão permanece no interior da capela-mor, podemos adiantar que o Padre Gregório Vaz Pereira, natural de Rouças, mas falecido em Santa Bárbara de Souto Maior, termo de Trancoso e bispado de Viseu, no dia 12 de Março de 1694, foi um grande benemérito, hoje completamente ignorado. Com os campos, vinhas, soutos e casas que possuía em Cavaleiros, instituiu uma capela a favor da nova igreja de Rouças, impondo apenas a obrigação de quatro missas anuais: duas por sua alma e as outras duas pelas almas de seus pais. A administração desta capela seria confiada a familiares seus, de acordo com o critério por ele fixado, conforme consta de uma declaração registada e assinada pelo abade Brás de Andrade da Gama, em 13 de Agosto de 1705.
A este dinâmico pároco de Rouças se deve também o fontenário, vulgarmente designado Fonte do Sr. Abade, de 1707, talhado num barroco incipiente e adossado ao passal, no cruzamento dos caminhos da Pombeira e do Telheiro.
Interrogamo-nos se a residência paroquial não será igualmente obra sua. Além destas realizações de carácter material, organizou о livro dos usos e costumes e o livro das capelas, duas fontes preciosas para a história da freguesia. Embora tal facto não surpreenda por se tratar de um licenciado em Cânones e Leis, deve ser mencionado como expressão de zelo pastoral e preocupação pela salvaguarda das tradições e dos valores históricos desta comunidade paroquial. Como dissemos, a sua morte ocorreu em 31 de Outubro de 1712. Ao lavrar o assento de óbito, o abade de S. Paio, Padre João Bernardo de Morais Sarmento, bacharel em Direito, acrescentou que «está enterrado na capela-mor desta Igreja na sua sepultura e Igreja que fes a fundamentis», tal como se lê na epígrafe com que iniciamos estas notas.
Por uma questão de brevidade, transcrevemos na íntegra este assento de óbito, pois sintetiza o testamento do biografado e permite vislumbrar melhor o seu perfil sacerdotal, dispensando-nos de mais comentários: “Aos trinta e hum dias do mes de Outubro de mil e setecentos e doze faleçeo da vida presente com todos os Sacramentos o Doutor Bras de Andrade da Gama Abbade desta Igreja de Santa Marinha de Rouças às seis horas para as sete da noite. E fes testamento. Deixou de obradação tres mil reis e tres officios a vinte clerigos em cada officio a doze vintis (sic) de esmola a cada hum clerigo. A confraria do Senhor que lhe alimiaçem dois mezes e as mais confrarias lhe desem a cada hua a tres vinteis; e a todos os pobres que o acompanhacem lhe dessem meio tostão. E está enterrado na capela mor desta Igreja na sua sepultura e Igreja que fes a fundamentis. E por o marcar por costume destas Igrejas o fazer funeral e administrar ate haver encomendado fis o enterro de que faço este termo. Era ut supra. Abbade de S. Payo de Melgaço. João Bernardo de Morais Sarmento”. (...)
Texto de José Marques (publicado nas edições da Voz de Melgaço de 1 de Dezembro de 1980, 15 de Dezembro de 1980, 1 de Janeiro de 1981.
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