Moralidade, Costumes e abandono de crianças
Numa região em que as actividades comunitárias e de
interajuda eram frequentes, a presença e a estreita convivência entre os
elementos de ambos os sexos não deixava de preocupar os moralistas e até
aqueles que se manifestavam contrários à coexistência e complementaridade do
trabalho com o convívio social e a produtividade. São exemplos disso as
posições assumidas por Lima Bezerra, muito críticas em relação às “viciosas
folgas” com que frequentemente se interrompia o trabalho rústico, além de se mostrar
particularmente escandalizado com alguns costumes praticados nas desfolhadas tradicionais.
Depois de referir que cada freguesia tinha tantas
desfolhadas quantas as eiras dos lavradores ou proprietários, onde apareciam os
moços da lavoura mascarados para divertirem os presentes, este autor considerou
tal costume como sendo altamente perturbador do normal desenvolvimento do
trabalho. Além disso, não deixou de alertar para os perigos e males que
poderiam advir do convívio nocturno entre as moças do campo e os rapazes
mascarados.
Numa abordagem doutros costumes e tradições populares,
Lima Bezerra também se insurgiu contra as romarias que proliferavam por toda
esta região e que eram um pretexto para a folia e as diversões humanas.
Considerava que os arraiais populares, os ajuntamentos de homens com mulheres,
a que o vinho, a estação do ano, as cantigas e as danças davam tanto calor e
furor, não deixariam de contribuir para a depravação dos costumes, sobretudo
quando os romeiros se deslocavam juntos, de noite, pelos soutos e pelas
devesas.
O resultado desta estreita convivência entre indivíduos
de sexo diferente acabaria por se reflectir nos níveis de ilegitimidade que se
registavam nesta região, cuja aceitação dependeria muito do contexto e das
condições em que a mesma se gerava. Assim, enquanto a ilegitimidade que
resultava de “fragilidades humanas” pontuais era socialmente aceite e
protegida, o mesmo não se verificava nos casos de reincidência, muito menos se
a mesma resultasse da prostituição, uma actividade proibida e socialmente
condenada.
No primeiro caso, a sociedade e as instituições
mostravam-se complacentes para com as mulheres solteiras pobres, protegendo,
subsidiando e, se necessário, ocultando a criação dos seus filhos ilegítimos,
com esse “pecado” a merecer uma oportunidade de reabilitação. O mesmo já não se
verificava em relação às mulheres de “má vida”, interrompendo-se qualquer
tolerância e compreensão social e institucional, sempre que se comprovasse a
reincidência, embora as crianças acabassem por ser as principais vítimas desse
sistema de filtragem social.
A câmara de Melgaço mostrou-se implacável para com a
reprodução de comportamentos que deixavam de ser socialmente tolerados , como o
prova o facto de, em 1872, ter admitido no Hospício uma filha de Felicidade
Maria, «em virtude das suas circunstâncias». Tudo indica tratar-se de
uma associação estreita entre a ilegitimidade e miséria, a partir do momento em
que a autorizou a própria mãe a criar a criança, pagando-lhe um subsídio
equivalente ao vencimento que era destinado às amas dos expostos. Porém, em
1878, a câmara suspendeu-lhe esses pagamentos, «em virtude dela continuar em
caminho irregular, entregando-se ao deboxe, além de ter outro filho».
A mesma administração, um ano depois de ter concedido um
subsídio para a criação de uma filha de Maria Luisa Puga, solteira, decidiu
retirar-lhe esse vencimento e dar-lhe baixa «por continuar a mãe em
mancebia, grávida e sem emenda». Na mesma altura, mandou «lançar fora do
Hospício» um filho de Maria Rosa Lamas, solteira, de Paderne, «porque a
mãe apareceu grávida, continuando a viver vida debochada e viciosa, não
querendo a câmara concorrer para este procedimento». Numa situação bem mais
complexa, registada no ano de 1888, a câmara não encontrou outra alternativa a
não ser a atribuição de um subsídio para pagar a criação de uma criança a quem
lhe havia falecido o pai e cuja mãe a desamparara. Esta, ainda em vida
do marido, já esquecia os «deveres de fidelidade conjugal e o amor maternal».
Extraído de:
- PONTE, Teodoro Afonso (2004) - No limiar da honra e da pobreza - A infância desvalida e abandonada no Alto Minho (1698 - 1924). Tese de doutoramento; Universidade do Minho, Braga.
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