"Quando voltar ao Alentejo as cigarras já terão morrido. Passaram o verão todo a transformar a luz em canto – não sei de destino mais glorioso. Quem lá encontraremos, pela certa, são aquelas mulheres envolvidas na sombra dos seus lutos, como se a terra lhes tivesse morrido e para todo o sempre se quedassem órfãs. Não as veremos apenas em Barrancos ou em Castro Laboreiro, elas estão em roda a parte onde nasça o sol: em Cória ou Catânia, em Mistras ou Santa Clara del Cobre, em Varchats ou Beni Mellal, porque elas são as Mães. O olhar esperto ou sonolento, o corpo feito um espeto ou mal podendo com as carnes, elas são as Mães. A tua; a minha, se não tivera morrido tão cedo, sem tempo para que o rosto viesse a ser lavrado pelo vento.
Provavelmente
estão aí desde a primeira estrela. E como duram! Feitas de urze ressequida,
parecem imortais. Se o não forem, são pelo menos incorruptíveis, como se
participassem da natureza do fogo. Com mãos friáveis teceram a rede dos nossos
sonhos, alimentaram-nos com a luz coada pela obscuridade dos seus lenços. Às
vezes encostam-se à cal dos muros a ver passar os dias, roendo uma côdea ou
fazendo uns carapins para o último dos netos, as entranhas abertas nas palavras
que vão trocando entre si; outras vezes caminham por quelhas e quelhas de pedra
solta, batem a um postigo, pedem lume, umas pedrinhas de sal, agradecem pela
alma de quem lá têm, voltam ao calor animal da casa, aquecem um migalho de
café, regam as sardinheiras, depois de varrerem o terreiro. Elas são as Mães,
essas mulheres que Goethe pensa estarem fora do tempo e do espaço, anteriores
ao Céu e ao Inferno, assim velhas, assim terrosas, os olhos perdidos e vazios,
ou vivos como brasas assopradas. Solitárias ou inumeráveis, aí as tens na rua
frente, graves, caladas, quase solenes na sua imobilidade, esquecidas de que
foram o primeiro orvalho do homem, a primeira luz.
Mas também as
podes ver seguindo por lentas veredas de sombra, as pernas pouco ajudando a
vontade, atrás de uma ou duas cabras, com restos de garbo na cabeça levantada,
apesar das tetas mirradas. Como encontrarão descanso nos caminhos do mundo?
Não há ninguém
que as não tenha visto com umas contas nas mãos engelhadas rezando pelos seus
defuntos, rogando pragas a uma vizinha que plantou à roda do curral mais três
pés de couve do que ela, regressando
da fonte amaldiçoando os anos que já não podem com o cântaro, ou debaixo de uma
oliveira roubando alguma azeitona para retalhar.* E cheiram a migas
de alho, a ranço, a aguardente, mas também a poejos colhidos nas represas, a
manjerico quando é pelo S. João. E aos domingos lavam a cara, e mudam de roupa,
e vão buscar à arca um lenço de seda preta, que também põem nos enterros. E
vede como, ao abrir, a arca cheira a alfazema! Algumas ainda cuidam das sécias
que levam aos cemitérios ou vendem nas feiras, juntamente com um punhado de
maçãs amadurecidas no aroma dos fenos. E conheço uma que passa as horas
vigiando as traquinices de um garoto que tem na testa uma estrelinha de cabrito
montês – e que só ela, só ela vê.
Elas são as
Mães, ignorantes da morte mas certas da sua ressurreição."
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