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quarta-feira, 17 de abril de 2013

Miguel Torga por terras de Castro Laboreiro



Miguel Torga, vulto da literatura portuguesa do século XX, era um apaixonado por Castro Laboreiro e pelo seu modo de vida. Esteve em terras castrejas várias vezes.
A prová-lo, escreveu: "Desanimado, meti para Castro Laboreiro à procura dum Minho com menos milho, menos couves, menos erva, menos videiras de enforcado e mais meu. Um Minho que o não fosse, afinal.
Encontrei-o logo dois passos adiante, severo, de curcelo e carapuça. A relva dera finalmente lugar à terra nua que, parda como o burel, tinha ossos e chagas. O colmo de centeio, curtido pelos nevões, perdera o riso alvar das malhadas. Identificara-se com o panorama humano, e cobria pudicamente a dor do frio e da fome. Um rebanho de ovelhas silenciosas retouçava as pedras da fortaleza desmantelada. E uma velha muito velha, desmemoriada como uma coruja das catacumbas, vigiava a porta do baluarte, a fiar o tempo. Era a pré-história ao natural, à espera da neta.
Ó castrejinha do monte,
Que deitas no teu cabelo?
Deito-lhe água da fonte
E rama de tormentelo.

Bonita, esbofeteada do frio, a cachopa vinha à frente dum carro de bois carregado de canhotas. Preparava a casa de inverno para quando chegasse a hora da transumância e toda a família —pais, irmãos, gados, pulgas e percevejos— descesse dos cortelhos da montanha para os cortelhos do vale, abrigados das neves.
– Conhece esta cantiga?
– Ãhn?
Falava uma língua estranha, alheia ao Diário de Noticias, mas próxima do Livro de Linhagens do Conde de Barcelos.
– É legitimo este cão?
– É cadela.
Negro, mal encarado, o bicho, olhou-me por baixo, a ver se eu insistia na ofensa. O matriarcado teimava ainda...
– A Peneda?
A moça apontou a vara. E, como ao gesto de um prestidigitador, foram-se desvendando a meus olhos mistérios sucessivos. Todo o grande maciço de pedra se abriu como uma rosa. A Peneda, o Suajo e o Lindoso. Um nunca mais acabar de espinhaços e de abismos, de encostas e planaltos. Um mundo de primária beleza, de inviolada intimidade, que ora fugia esquivo pelas brenhas, tímido e secreto, ora sorria dum postigo, acolhedor e fraterno.
Quando dei conta, estava no topo da Serra Amarela a merendar com a solidão. Tinham desaparecido de vez as cangas lavradas e coloridas que ofendiam as molhelhas do suor verdadeiro. A zanguizarra dos pandeiros festivos e as lágrimas dos foguetes já não encandeavam a lucidez dos sentidos. Os aventais de chita garrida davam lugar aos de estopa encardida. Nem contratos pré-nupciais ardilosos, nem torres feudais, nem rebanhos de homens pequeninos, dóceis, a cantar o Avé atrás do cura da freguesia. Pisava, realmente, a alta e livre terra dos pastores, dos contrabandistas e das urzes."


Fonte:

http://www.arraianos.com/Arraianos%20n1%208-2004%20Web.pdf

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