“Morava
eu com os meus tios. O meu tio, que se chamava Cândido, era um corpo aberto:
falava sozinho..., arrastava os socos..., tinha, assim, um comportamento
diferente, mas era boa pessoa.
Uma
noite, estava eu a arrumar a cozinha, mesmo ali perto da janela que dava para
um caminho que ia para Castro Laboreiro. Mesmo junto havia uma Capela do Santo
Cristo. Eu estava, então, a arrumar a cozinha e fui abrir a janela. Por ali
passavam as gentes de Castro Laboreiro para irem para as feiras. Eles iam às
feiras da Barca, dos Arcos, e saíam à quarta-feira. Traziam os porcos, os
animais e outras coisas. Lá ao fundo, na entrada da vila, havia um posto de
gasolina onde as camionetas paravam para meter gasolina.
Quando
era noite, as luzes, assim viradas para cima, para Castro, enchiam tudo de luz.
Antigamente era tudo escuro..., não havia luz como agora! E eu ouvia os
castrejos a rir e a falar, o ruído dos porcos... Era um divertimento! Naquele
tempo não havia nada, nem rádio. Aquilo para mim era uma alegria.
O
meu tio chegou à minha beira e disse: Rapariga! – Que é que me quer? - Fecha a
janela! E eu respondi: Não fecho! Pois eu estava ali só a me divertir... Mas
ele disse-me assim: ou fechas a janela ou levas uma bofetada! Ele nunca me tinha
falado assim! Vi que era coisa grave e fechei a janela.
Fechei
a janela e deixei-o ir para a sala. A sala era grande e ficava ao fundo da
casa. Ele lá foi, com os socos a rasto e a falar sozinho... era seu hábito...
hui!, quantas vezes eu já o tinha escutado a falar assim....
Mas
depois, para me vingar dele, abri a janela. Ao abrir a janela vi aquelas luzes
todas..., de varias cores: umas eram como a luz do sol, clarinhas; outras de um
cor-de-rosa também clarinho; outras verdinhas..., mas muitas luzes! Diabo!». A
gente quer-se ter mais que as outras, e afinal não somos. Quando nós julgamos
que somos mais que as outras, não somos. Somos menos! E descemos um degrau
ainda mais abaixo do que elas. E isto foi o que lhe aconteceu a ela!»
Quando
fixei melhor o olhar, aquilo saltitava de um lado para o outro...; umas mais
altas e outras mais baixas (os homens são mais altos e as mulheres são mais
baixas.... Nos enterros vão homens e mulheres). E saltitavam e iam a correr ali
pela estrada fora, pelo caminho. Eu fiquei assim um pouco tonta: isto não é uma
procissão de velas...., não vejo nenhuma pessoa!, só vejo ali as velas. Como é
que elas saltam? E depois na frente vi uma grande luz, e essa grande luz ia lá
no alto, por cima de todas! No outro dia vi o enterro e compreendi: era o
mordomo que ia à frente e levava o crucifixo lá no alto. E a cabeça
do Santo Cristo, aquela imagem na cruz, parecia uma roda de luz como uma tigela
cheia de luz, fluorescente. Tinha uma cor... assim um encarnado que não era bem
encarnado... um cor-de-rosa ....
E
aquela luz ia na frente e comandava as outras luzes. As outras iam todas atrás
dela. E eu não tive medo nenhum! Hoje é estrada, mas antigamente era um caminho
fundo. E aquelas luzes meteram-se para o caminho do cemitério, e foram
desaparecendo com a outra luz lá em cima.
No
dia seguinte morreu um homem que vinha lá à Quinta, que eu conhecia muito bem.
Ele tinha trinta e três anos e deixou uma mulher com trinta e três, trinta e um
anos, com dois filhinhos. Eu fui ver o enterro, na beira da estrada, e aí vi
que o Cristo era mesmo a luz que ia lá em cima. Não disse nada ao meu tio
porque tinha medo que ele me batesse, pois talvez ele pensasse que me
acontecesse o mesmo que lhe acontecera a ele, como me contou a minha avó.
Quando
ele tinha dezasseis anos, e diziam até que era um homem muito bonito.... Um dia
vinha de tapar uma água ali para os lados do cemitério, com um bonito chapéu
(daqueles redondinhos, como se usava naquele tempo) na cabeça. Então, passou
por ele um grande cavalo branco que ia no caminho para Castro Laboreiro, e que
atirou o chapéu dele para longe, e ele assustou-se! Assustou-se e ficou com o corpo
aberto. Depois quando morria uma pessoa, ele sabia-o na véspera. Eu própria sou
testemunha, pois a minha cama ficava encostada à parede do quarto ao lado do
dele. De noite, ouvia-o gemer. E perguntava-lhe: Tio Cândido, o que é que teve
ontem à noite? – Ah moça, eles «judiam» de mim..., botam a burra à camisa; a canga
às calças.... judiam de mim!
Ele
quando passou pelo cavalo ficou maluquinho. Mas a minha avó disse que fora com
ele a uma mulher e que o fecharam com sete chaves de sete igrejas. Mas ele
ficou sempre assim com o corpo aberto a estas coisas. Depois não era maluco,
mas era assim bonzinho..., não se metia com ninguém. Via-se que, às vezes, com
«a vista à ferida»... aquela vista, assim fixa nas pessoas... O maior sofrimento
dele era à noite.
Sempre
a gemer, queixava-se que as pessoas se metiam com ele:
«Judiam
de mim!».
Um
dia encontrei-o de baixo de uma «lata», assim deitado com os olhos abertos....Pensei
que tinha tido um ataque: – Ó tio Cândido, vocemessê o que
é que tem?
–
Atiraram comigo..., atiraram comigo.... Passaram com uma burra muito grande... -
Mas aqui não passa uma burra! –
Atiraram
comigo moça....”.
Extraído
de:
CAMPELO,
Álvaro - Caminhando pelo Mundo do Fantástico no Vale do Minho. “A Procissão dos
Defunto”. Testemunho de Dª Conceição, de Melgaço, Paderne.
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