Camilo e o efeito dos Bifes de Presunto de Melgaço
"Assistira, um dia, Gertrudes ao meu jantar e viu que eu
me confrangia enjoado pelo espectáculo repulsivo de meia franga recozida e um caldo
branco em que boiavam uns olhos amarellos da enxúndia do oveiro da ave. Ela cheirou
de longe o caldo fumegante, e disse com engulho:
—Captiva ! Isto nem com fome de cão se podia tragar! Que
o medico me não deixava comer outra coisa,—balbuciei
tão extenuado e ofegante que me parecia despegar-se o último colchete da existência
n' um esvahir de desmaio.
—Sinto-me morrer... — murmurei flebilmente.
—E morre decerto! — confirmou ella com sinistra solemnidade—morre,
se não mudar de comida. Quer que eu o ponha rijo? Diga á dona da hospedaria que
a sua enfermeira e cozinheira sou eu.
Não esperou resposta e sahiu. Pouco depois, voltou muito
afreimada, tirou a mantilha de sarja, mudou de calçado para não fazer bulha com
os tacões das botinhas, cingiu um lenço na fronte recolhendo os bandós, atou um
avental de riscadinho na cintura e foi para a cozinha. Quando entrou com uma caçoula
coberta, o perfume vaporado do rebordo da tampa abriu subitamente no meu olfacto
uma fonte de vida, uma sensação entre espiritual e nazal, um quasi extasis, como
a evidência da imortalidade do eu. Arranjou a mesa de leito com o taIher, afofou-me
as travesseirinhas nas costas angulosas, escadeadas como um pedaço de velho cancéllo
desengonçado, a cair das dobradiças despregadas,:—e passou para uma travessa o acepipe
fumegante. Eram duas
mãos de boi guizadas, loiras, de uma untuosidade oleosa
que punha carícias feroses nos dentes, e aguçava na abobeda palatina as cobiças
dantescas do faminto Ugolino e de um professor portuguez de instruçao primária.
Devorei uma das mãos, sopeteando no molho pedaços de
pão que engolia inteiros, sofregamente, numa intallação.
—Poderei comer a outra mão, senhora Gertrudinhas? - perguntei
esperando em anciosa incerteza a resposta duvidosa.
—Se tem vontade, coma. Que sente lá por dentro?
—Fome, senhora Gertrudes, fome!
—Então coma; a natureza que lho pede, é por que não lhe
faz mal.
E não fez. Fumei um charuto que até aquele momento me
nauzeara. Pedi café e cana de Paraty. Estive quasi a pedir as calças para me levantar.
—Nada de boticadas ! intimou ella; e pegando em dois frascos
de pílulas de ferro de Blaud e de Vallet, e de meia garrafa de vinho quinado despejou
tudo na primeira vasilha concava que se offereceu á sua indignação.
— Fora com a porcaria! — bradava gesticulando, com a
cólera cientifica e a justiça indefectível de um medico homeopata.
No dia seguinte deu-me de jantar troixas de recheio,
bifes de presunto de Melgaço e meio melão. O medico assistente, o João Ferreira,
grande clinico, veio á tarde, e pôs-se a farejar.
— Que lhe cheirava a melão! Se eu praticara a loucura
de comer melão?!
A Gertrudes acudiu á minha perplexidade:— que fora ella
quem o comera; que eu, coitadinho, estava a caldos e asas de franga, uma desgraça!
O doutor tomou-me o pulso, e fez um gesto de satisfação
tranquilizadora:
— Que eu estava melhor quanto ao pulso, um pouco rápido,
mas regular; auscultou-me a região precordial; já mal percebeu o ruído de fole;
porém, continuava a fariscar o melão, desconfiado, chegando o seu descompassado
nariz absorvente ao meu pérfido hálito, quando me auscultava as artérias
carótidas.
A noite, visitou-me outro medico, interessado na minha
cura duvidosa, como amigo. Era Camará Sinval, lente da Escola Medico-Cirurgica,
um que pregava, não por hypocrisia, mas por paixão desvairada da Arte dos Vieira
e Bourdaloue, sermões ultramontanos empavezados de sapiências académicas com grandes
empolas de latim pagão.
Nunca me receitava. Para as insomnias mandava-me ler philosophos
e poetas épicos. Disse-me que, na sua clínica, empregava primeiro as epopeias
desde a Ilíada até á Henriqueida; e, em ultimo recurso, os systemas philosophicos
desde Platão ate Victor Cousin.
Que tivera — contava
— um doente de insomnia rebelde que resistira singularmente ao 1º e parte do 2º
Canto dos Luzíadas; mas, perdidas as esperanças de anesthesia, lhe lera duas paginas
de Kant, e o enfermo ficara sopitado n'um lethargo de Epimenides. Aconselhou-me
a Homeopathia, medicina inoffensiva e de vantagem para fantasistas supersticiosos.
Entretanto, achou-me espantosamente melhor. Não acreditava.
Queria saber o que eu tinha tomado. Referi-lhe a verdade — as mãos de boi, os bifes
de presunto de Melgaço, as troixas, o melão, a Providencia, sobretudo a Providência
na pessoa de Gertrudes."
Extrato do livro "O Vinho do Porto - Processo de uma bestialidade ingleza" (edição de 1884) de Camilo Castelo Branco.
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