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domingo, 2 de julho de 2023

Onde ficava o Campo da Feira de Dentro na vila de Melgaço?



Na vila de Melgaço, Campo da Feira, Campo da Feira de Dentro, Praça do Comércio e Praça da República são topónimos que, grosso modo, correspondem ao mesmo local, embora sejam designações usadas em diferentes períodos da História.

O Campo da Feira, na vila de Melgaço, em tempos antigos, correspondia a um largo situado em frente à Porta da Vila, ou seja, a porta do castelo sita ao lado da igreja matriz. A sua designação denuncia o facto de, neste espaço, se ter realizado, durante séculos, a tradicional feira. Entre meados do século XVII e o século XIX, foi aqui construído uma fortificação que era conhecida como o Forte da Vila, e que foi demolida na segunda metade do século XIX, sendo por isso este espaço designado como o "Campo da Feira de Dentro". Nesse mesmo século, este espaço passou a ser designado de “Praça do Comércio”, fazendo jus à atividade que sempre desenvolveu, antes de se passar a chamar “Praça da República”, honrando o novo regime político a partir de 1910. 

Foi nesta área que as tropas de D. João I concentraram boa parte dos esforços no assalto ao castelo em 1388. De facto, esta área, em frente à Porta da Vila, junto à igreja, na Idade Média, era a parte da muralha mais difícil de proteger. Ao contrário dos demais setores, esta porta era a única que abria para um terreno topograficamente acessível. O reforço deste setor foi inicialmente concretizado com a construção da couraça nova, que já nos aparece no desenho de Duarte d’Armas de 1509. Segundo ALMEIDA (2003), a construção da couraça é a última grande obra realizada na estrutura defensiva da vila de Melgaço, antes das grandes modificações feitas neste setor no século XVII, aos quais nos vamos referir mais à frente. 

Conforme se pode observar no desenho de Duarte D’Armas, de 1509, a área correspondente ao Campo da Feira, não é habitada, estando todas as casas da vila dentro das muralhas. A única exceção é a chamada “Casa da Audiência”, assim assinalada no desenho e que se encontra junto à porta nascente da muralha, perto da igreja matriz, mas fora de muros. 


  

Recorte do desenho da Vila de Melgaço de Duarte D’Armas (1509) 

  

No último terço do século XVI, inicia-se, neste Campo da Feira, a construção da Capela de Santo António. A sua edificação terá começado por volta desse ano de 1570 mas apenas foi concluída alguns anos mais tarde já no tempo de Gil Gonçalves Leitão, juiz de fora de Melgaço e provedor desta Santa Casa da Misericórdia. Na realidade, quem a mandou iniciar foi Pêro de Castro, alcaide-mor de Melgaço e, provavelmente, Provedor da Santa Casa, à época. Contudo, este, com muitos outros fidalgos, rumou a Marrocos com o rei D. Sebastião e participou na batalha de Alcácer-Quibir, tendo à semelhança do monarca, desaparecido para sempre. A capela ainda nem os muros tinha acabados quando o citado provedor da Santa Casa, em 1595, determinou que se terminassem as paredes desta ermida. Tal é citado no Livro dos Provedores da Santa Casa, onde se lê numa memória posterior de 1597: “O Licenciado Gil Gonçalves Leitão juiz de fora que foi nesta vila e provedor que foi nesta casa fez acabar a ermida de Santo António de paredes que havia muitos anos que estava começada por ordem de Pêro de Castro, alcaide-mor desta vila”. Será já com outro provedor em funções, também juiz de fora, um tal António de Távora, que a capela foi terminada em Janeiro de 1600, tendo sido realizada um evento para a bênção da pequena ermida em 27 de Março do mesmo ano. Vamos desenvolver a História desta capela mais à frente. 

As primeiras menções a habitações e residentes no Campo da Feira remetem-nos já para o primeiro quarto do século XVII. Podemos citar uma das mais antigas menções a residentes neste local, uma escritura de venda em que a 11 de Maio de 1618, uma tal Sabina da Rosa, viúva de António Pereira, citada como sendo moradora no Campo da Feira, nos arrabaldes da vila, vendeu a “Pero Gonçalvez morador nos tendais junto da igreja da ditta vila e a sua mulher Cezilia Guomes para eles e seus herdeiros” um pedaço e ponta dum campo sito nos Chãos, freguesia da vila, dízimo a Deus, com a água que deve ter, mais ou menos um quarto de centeio de semeadura a partir por todos os ventos com os compradores por mil e trezentos réis foros da sisa. Esta senhora Cecília Gomes deve ter falecido nos primeiros dias de 1627, pois a 7 de Março desse ano, estavam já cumpridas as suas vontades expressas no seu testamento. No documento, é citado como testemunha um tal Jerónimo Rodrigues, também ele morador neste Campo da Feira. 

Quando Portugal restaurou a independência em 1 de Dezembro de 1640 e a guerra com Espanha se avizinhava, foi posto em prática um plano de melhoramento nas fortificações fronteiriças e na praça-forte de Melgaço foi, além de outras obras de reforço, construído um forte (tenalha) que se ligava à muralha nascente e que envolvia todo o Campo da Feira (terrenos da atual Praça da República). Esta foi a forma de resolver a fragilidade defensiva deste setor da muralha, conforme referimos atrás. A partir desta segunda metade do século XVII, passamos a ver nos documentos a menção a este local como o “Campo da Feira de Dentro”, por estar dentro desse forte. Tal estrutura é designada na planta de Villlabos como “obra coroada” e na de Gonçalo Brandão como “Obra corna”. O “Forte da vila”, como é designado em alguma frequência em assentos na documentação paroquial, é uma obra de braços alongados que resultam em dois meios baluartes (ANTUNES, 1996), que se situariam próximos de onde se encontra o edifício do antigo hospital da Misericórdia, sendo que um deles ficaria posicionado no local onde a rua Velha inflete em direção à rua da Calçada. Tanto os meios baluartes como os muros da tenalha rematavam em parapeitos de torrão. O acesso ao interior desta fortificação fazia-se através de duas portas, praticamente simétricas. Uma delas encontrava-se no enfiamento do caminho que vinha da ponte sobre o Rio do Porto e que, na atualidade, corresponde à rua Afonso Costa e que continua para a rua do Rio do Porto. A outra porta situava-se no lado oposto, e dava para o caminho que dava acesso à Fonte da Vila, ainda hoje conservada entre quintais e casas de habitação. (ALMEIDA, 2003) 

As duas portas a que nos referimos atrás, eram mencionadas, num documento da segunda metade do século XVIII, mais concretamente de 1760, como a Porta de entrada para o Campo da Feira e Porta para a Fonte. 

Se repararmos nesta planta da vila de Melgaço em 1700, já mostrada nesta obra, o Campo da Feira de Dentro já se apresentava com algumas construções no seu interior, particularmente junto à muralha sul. Não muito longe da porta sul do forte (a que sai para a rua do Rio do Porto), encontra-se a capela de Santo António, a que já aqui aludimos, acabada de construir cerca de um século antes da feitura desta planta.


 

Praça forte de Melgaço em planta de 1700 

 

Essa ocupação crescente de construções do espaço do forte do Campo da Feira traduz-se no crescimento da população que residia neste espaço ao longo dos tempos. Note-se que no início do século XVIII, apenas pouco mais de trinta anos depois de a Guerra da Restauração ter terminado, o número de batismos de nascidos aqui já tem algum significado. Acrescente-se que não vemos um crescimento excecional do número de batismos nos séculos seguintes já que temos que ter em conta que neste Campos da Feira, o uso dos edifícios não se limitava à habitação mas repartia-se também com a presença de estabelecimentos onde havia comércios e  prestadores de diversos serviços.


  


Conforme se pode observar nas plantas da fortaleza de Melgaço no século XVIII, a edificação da tenalha transformou este antigo terreiro do Campo da Feira, num recinto murado e solidamente defendido por bocas de fogo postadas nos meios baluartes e por um rego de água que circundava a parte externa da fortificação e que corria de nascente para poente. 

Segundo um relatório da inspeção, enviado a D. Luís da Cunha pelo Sargento-Mor de Batalha, António Carlos de Castro e datado de 17 de Dezembro de 1761, o mesmo refere que precisava-se “fazer portas novas para as entradas norte e sul da tenalha, repor cantaria no parapeito da praça na distância de 200 palmos e na altura de 5, mandar fazer as plataformas de madeira para a artilharia…” 

Em 1856, a 13 Agosto, chega um aviso do Ministério da Guerra com orientações no sentido da demolição da tenalha. Sabemos que em 1857, segundo uma planta da época, boa parte da área militar à volta desta fortificação estava agricolamente aproveitada, sobretudo do lado norte. Também temos conhecimento que em 1859, ainda subsistia a "couraça nova" desenhada por Duarte D’Armas, embora tivesse encostada do lado de fora uma casa e, do lado de dentro, três prédios. Podemos comprovar tudo isso na planta à frente mostrada.  

Num relatório de 15 Dezembro de 1859, se defende que “a povoação não deveria ser sacrificada ao imobilismo da História, pelo que o recinto magistral deveria ser demolido e o seu material vendido, tal como o quartel dos veteranos, casa da guarda das portas de cima, e terrenos militares no perímetro da praça”, incluindo o Forte da vila. 


  

 Planta da vila de Melgaço em 1859 


Esta será a última planta que hoje conhecemos onde se pode observar a muralha e a tenalha ainda intactas, antes da sua demolição que começaria pouco tempo depois. 

A partir da década de sessenta do século XIX, avança a demolição do denominado Forte da Vila. Nesta planta de 1863, podemos observar que a rua da Calçada que antes apenas tinha continuidade para a rua Velha, já prossegue para o Campo da Feira de Dentro, já que parte da muralha a nascente já tinha sido derrubada. Assim foi possível rasgar a rua a que deram o nome de “Nova de Melo” em oposição à rua Velha, paralela a sul. 

 

Planta da muralha nascente e da área do Campo da Feira (vila de Melgaço, 1863) 

  

Nesta planta, a rua da Calçada já tem uma abertura na muralha nascente do forte mas a rua Nova de Melo ainda não está rasgada completamente. Para isso, vai ser preciso demolir uma serie de construções que existia no Campo da Feira de Dentro, junto à muralha sul. Conforme se podem observar nestas plantas, a presença de todas aquelas construções neste espaço conferia-lhe uma certa caraterística caótica em termos urbanísticos, sem qualquer padrão de ordenamento. As casas foram sendo construídas ao longo dos tempos, aparentemente, sem grande controlo por parte do poder municipal. Assim, para rasgar a rua Nova de Melo, vai ser preciso demolir a capela de Santo António do Campo da Feira e outras construções nas suas imediações. 

Note-se também que o chamado Campo da Feira de Dentro ia até aos terrenos onde assenta o edifício do antigo hospital da Misericórdia. Para a sua construção, iniciada em 1876, assentou-se que a construção do hospital deveria ser concretizada no terreno pertencente ao Ministério da Guerra, onde existiu a antiga obra córnea da praça, a qual confrontava, do lado norte e nascente, com terras de Joaquim Maria de Magalhães e casa em construção do médico João Luís de Souza Palhares, e de sul com a Rua Nova da vila. Atendendo pois a que a importância militar de Melgaço na época era já tão insignificante que poucos poderiam esperar que a velha estrutura militar fosse algum dia revitalizada, estando por isso o espaço desaproveitado. Desta forma, o assunto do terreno foi levado ao Parlamento onde foi defendida a sua doação à Misericórdia por António Correia Caldeira, deputado pelo círculo n.º 2, Monção e Melgaço, no debate parlamentar de 14 de Março de 1872. Nas atas dessa sessão parlamentar, podemos compreender a forma e os argumentos usados pelo deputado para convencer a câmara: “Senhores, há muitos anos que na villa de Melgaço se tem feito sentir a necessidade de um hospital de caridade, onde os desgraçados possam encontrar um abrigo quando, acommetidos pelas enfermidades, lhes seja impossível continuar sua vida laboriosa. A irmandade da Misericórdia desta villa, compenetrada de tais sentimentos e também convencida de que o exercício da caridade, a maior e a mais augusta das virtudes evangélicas, constitui o principal fim da sua instituição, deliberou erigir na dita vila um hospital de caridade, dependente da mesma irmandade, para o que já obteve a necessária autorização do governador civil do distrito, a qual lhe foi concedida por alvará de 28 de Novembro de 1860. 

Para a construção de tão útil estabelecimento, e atendendo aos escassos recursos destinados à mesma, a mesa da Santa Casa da Misericórdia da vila e Praça de Melgaço solicitou e obteve do governo a concessão da pedra de uma parte da antiga e arruinada muralha do castello daquella vila, que lhe foi concedida por Portaria de 6 de Agosto de 1863. Têm decorrido alguns anos, durante os quais a referida irmandade, coadjuvada por uma comissão expressamente nomeada para promover a realização de tão útil melhoramento, tem para este fim empregado os maiores esforços, chegando a conseguir das irmandades e confrarias do concelho, a aplicação de parte dos seus rendimentos para a sustentação do projetado hospital, e ajuntar alguns meios, ainda que poucos, para acorrer às despezas de construção. Ouvidos os facultativos do concelho acerca do local mais apropriado para levantar o respectivo edifício, e ouvida também a opinião de mais dois facultativos, bem como a opinião do conselho de distrito, assentou-se que a construcção do hospital de que se trata deveria efectuar-se no terreno pertencente ao ministério da guerra, onde existiu a antiga obra córnea da Praça, a qual confronta ao norte e nascente com terras do Francisco Joaquim Lobato, do poente com o quintal de Joaquim Maria de Magalhães e casa em construção do médico João Luiz de Sousa Palhares, e do sul com a Rua Nova da villa, medindo de superfície 1381,8 m2.” Assim, em 1873, a 16 Julho, concretiza-se a tão almejada assinatura da escritura de doação do terreno no antigo Campo da Feira pelo Ministério da Guerra. A dita escritura foi lavrada na vila de Valença, na Secretaria do Governo Militar e o Provedor da Santa Casa de Melgaço foi representado por José Joaquim Lopes, morador naquela vila. 

Uns anos mais tarde, mais concretamente em 25 de Abril de 1883, é feita, formalmente, a entrega à Câmara Municipal da parte das antigas fortificações da vila, compreendida entre a porta do lado Sul e a do Este, assim com o reduto que defendia esta última porta e, nesse mesmo ano, dá-se início à demolição da cerca da vila, assim como da couraça nova ao fundo do Campo da Feira. 

Entretanto, ao espaço do Campo da Feira, dado o seu papel comercial ao longo dos séculos, foi dado o nome de Praça do Comércio, denominação que iria perdurar até 1910, e por essa altura, o município batizou-a como “Praça da República”, ato formalizado em sessão de Câmara de 12 de Outubro desse ano, sendo esta designação toponímica que ainda conserva na atualidade. 

A 31 Agosto de 1892, o vereador Baltasar Luís de Araújo Azevedo, em substituição do Presidente da Câmara, apresentou o projeto e o orçamento para a rua lateral à Praça do Comércio, que seria feita com o produto da venda da pedra da muralha. 

Em 5 de Julho de 1903, um tal Joaquim D’Egas Afonso, arrematou por 708$788 réis, a empreitada da mudança da Fonte do Jordão (Fonte de S. João) ao senhor João da Assadura, para a Praça do Comércio, bem como a construção do tanque-lavadouro contíguo à mesma. A dita fonte não irá ainda para a localização atual mas irá ser instalada à direita da Escola Conde Ferreira, no sítio onde se encontra a Caixa Geral de Depósitos. 

A 14 Outubro de 1914, procedeu-se à demolição da cerca desde a Porta de Cima, a que ligava com a couraça nova, para a Porta de Baixo, vendendo-se a pedra. 

Tal como foi aqui já mencionado, nesta obra, a demolição das muralhas do castelo não foi consensual, tendo chegado a ser suspensa em 1918, devido ao facto de, à época já terem sido vendidos talhões da muralha que faltava demolir, nomeadamente o setor junto à porta de baixo, com a inscrição afonsina. Tudo sem ter sido ouvida a Comissão dos Monumentos. 

Apesar de tudo, no espaço ao fundo da Praça do Comércio, em 26 Junho de 1919, a Câmara decide vender o material proveniente da demolição de uma casa situada no largo do Chafariz e a pedra da muralha da couraça nova. O entulho deveria ser deitado no espaço onde estavam os canastros, sobranceiro ao antigo lavadouro público (o jardim que rodeia o castelo). Falta aqui respondermos a uma dúvida que poderá assaltar a mente do caro leitor: onde ficava o Largo do Chafariz? 

O referido largo situava-se ao fundo da atual Praça da República. O tal Largo do Chafariz situava-se nas traseiras da capela de Santo António e junto ao local onde ficava o edifício que albergava o célebre “Café  Melgacense”. Num artigo na edição da “Voz de Melgaço” de 1 de Maio de 1956, Aldomar Soares escreve: “Entrava-se no desaparecido Largo do Chafariz, então separado da Praça da República pela capela de Santo António e pelo prédio em cujos baixos estava instalado o antigo Café Melgacense”. 


  

 Antiga Praça do Comércio (vila de Melgaço) no início do século XX 


Na fotografia antes apresentada, datada de início do século XX, a Praça do Comércio ainda não tem o arranjo urbanístico que conhecemos na atualidade. Nesta época, a Fonte São João está ao lado da Escola Conde Ferreira, que funcionava numa casa situada onde hoje existe a agência da Caixa Geral de Depósitos. Note-se que em primeiro plano, do lado esquerdo, vemos o telhado da escola e logo à direita ainda se vê a extremidade cimeira da fonte. Ainda em primeiro plano, e do lado direito, ainda vemos a extremidade de uma casa armoriada , que viria a ser demolida em meados do século passado. No interior da Praça, já não existiam algumas construções que ainda são representadas em plantas de meados do século XIX. Contudo, na fotografia, vemos ao fundo um conjunto de edificações, dos quais se destaca a tal capela de Santo António. Contudo, em 7 de Agosto de 1915, em sessão da Câmara Municipal, foi deliberado expropriar a dita capela, outrora da Senhora da Lapa, ao fundo da Praça da República, e os três prédios contíguos, o primeiro com frente para a referida Praça, onde funcionava o Café Melgacense, e os dois últimos, com frente para o antigo Largo do Chafariz, rebatizado Largo Bernardino Machado, depois da implantação da República. Sabemos que em 22 de Agosto de 1915, na Praça da República, se procedeu ao leilão do prédio onde se achava instalado o Café Melgacense. No caso da capela, só mais de dez anos depois é que foi efetivamente demolida. Convém esclarecer algumas dúvidas que possam surgir ao caro leitor relacionadas com as duas capelas que existiram neste antigo Campo da Feira de Dentro, às quais agora vamos dedicar algumas linhas:

  

As capelas de Santo António e da Senhora da Lapa,  

no Campo da Feira de Dentro 

 A extinta capela de Santo António, ficava situada no antigo Largo do Comércio, na atual Praça da República, na vila de Melgaço, mas foi demolida em finais de 1926.


  

Planta da fortificação de Melgaço (1713) 


Na planta antes apresentada, podemos identificar a localização primitiva da capela de Santo António dentro da área fortificada e assinalada com a letra “I”, no interior do círculo assinalado a vermelho, junto à muralha sul. Esta capela mais antiga iria ser demolida por volta de 1867 e mudada para outra localização próxima conforme se pode ver nas fotografias mais à frente. Vamos dar conta da sua história vamos agora. 

Na verdade, este pequeno tempo foi mandado construir por Pêro de Castro, alcaide-mor da vila, morto na batalha de Alcácer-Quibir, em 1578, e era local de paragem obrigatória das principais procissões organizadas pela Misericórdia. ESTEVES, A. (1957) esclarece que “fora das muralhas, a um dos lados daquele terreno onde se realizava mensalmente a feira local e quando ainda se não tinha levantado a obra córnea da praça com o fim de aumentar o poder de resistência e protecção das forças militares, Pero de Castro, um dos fidalgos caídos para sempre na desgraçada batalha de Alcácer-Kibir entre gente do Duque de Bragança, Dom Jaime, aí pelo ano de 1570, abriu os alicerces e principiou a levantar as paredes de uma ermida em honra de Santo António...” 

A sua construção terá começado por volta desse ano de 1570 mas apenas foi concluída alguns anos mais tarde já no tempo de Gil Gonçalves Leitão, juiz de fora de Melgaço e provedor desta Santa Casa da Misericórdia. Sabemos que este determinou em 1595 que se terminassem as paredes desta ermida. Estas informações podemos encontrá-las no Livro dos Provedores, onde se lê numa memória posterior de 1597: “O Licenciado Gil Gonçalves Leitão juiz de fora que foi nesta vila e provedor que foi nesta casa fez acabar a ermida de Santo António de paredes que havia muitos anos que estava começada por ordem de Pêro de Castro, alcaide-mor desta vila”.  

Foi já com outro provedor em funções, também juiz de fora, António de Távora, que a capela foi concluída, logo depois de uma pequena festa organizada por sua esposa, Dona Maria de Anciães, para comemorar o dia do batizado de seu filho Jerónimo em 16 de Janeiro daquele ano de 1600, festa que marcou pela roda de fidalgos amigos reunidos à sua volta. Nessa altura, o carpinteiro tinha-lhe dito que o retábulo da capela estava terminado mas para o santo sacrifício, faltavam os últimos retoques. Urgia dar-lhos e não desperdiçou tempo. 

Em 16 de Fevereiro de 1600, reuniram-se os irmãos nobres Gonçalo Rodrigues de Araújo, escrivão e tabelião, o comerciante Henrique Coronel, Estevão d’Amorim, sargento-mor das Ordenanças, Manuel da Cunha, para quem tinha sempre um gracejo por causa dos compadrios, Manuel Ribeiro, casado com Isabel Gomes, morador em Eiró e secretário da Câmara e João Gomes Ribas, mercador e homem de grandes negócios ao tempo e os irmãos mecânicos João Dias, Pero Gomes, António Martins, Gonçalo Coelho, o carpinteiro Álvaro Vaz e Gaspar Rodrigues Pereira, alfaiate e então deixam escrito para memória futura “assentou-se em mesa que por a Casa de Santo António do campo da feira ser anexa a esta Casa é esta consertada e ordenada para nela se dizer missa e sagrar Francisco Soares, abade na vila, o capelão desta Casa e provedor e mais irmãos abaixo assinados em seu nome e dos que em diante foram ditos que eles se obrigavam com as esmolas da dita casa a fabricar todo o necessário à fábrica da dita igreja de Santo António e isto com declaração que não chegando as esmolas desta casa, a dita fábrica se obriga a tudo satisfazer de suas fazendas e o irmão que for do mês será obrigado a arrecadar as esmolas que aí se derem para todo o ano; cada irmão seu mês para as dar para as dar aos tesoureiros da dita casa que agora e em diante forem e sendo necessário fazer nesta caso escritura pública se obrigavam a fazer logo para o qual requereram ao arcebispo a licença de se dizer missa na dita capela”. 

O Sargento-mor Estevão d’Amorim deixou um relato da festa da bênção da pequena ermida em 27 de Março de 1600, que era segunda-feira da semana santa. Nele pode ler-se: ”Aos vinte e sete do mês de Março do ano de mil e seiscentos anos nesta Casa da Santa Misericórdia desta vila de Melgaço onde estava o provedor e irmãos em cabido com campa tangida se levou desta Casa da Santa Misericórdia o bem-aventurado Santo António com procissão a sua Casa que para ele estava fabricada no Campo da Feira por ordem da dita Casa no qual dia acima se disse a primeira missa cantada com licença do Vigário Geral desta Comarca como dela e dos papeis consta que estão no Cartório desta Casa de que mandou fazer este assento para todo o sempre constar desta verdade e assinaram estando presente o senhor abade Francisco Soares…” 

Há ainda uma questão curiosa acerca desta capela nesta época dos seus primórdios que envolve, além desta ermida, os almocreves que abasteciam Melgaço de mercadorias de fora e o alcaide e provedor da Santa Casa, o licenciado António de Távora. Estaríamos em 1599 e os mercadores de Melgaço eram então abastecidos de fazendas e de outras várias mercadorias pelas praças de Braga e de Guimarães dum modo mais saliente e neste negócio de traz e leva empregavam-se algumas dezenas de almocreves. Profissão como qualquer outra, esta marcava na terra pela rópia de uns tantos e pelo número elevado de servidores.  

Ora por obrigações ainda hoje desconhecidas, mas contraídas anteriormente a esta data, os almocreves, como corpo moral, tinham-se comprometido com a Câmara não só a tomar parte nas festas religiosas em que os vereadores intervinham, como a do Corpo de Deus, a do Anjo e outras, mas também a representar nas respetivas procissões, organizadas pela Misericórdia ou outras entidades, um jogo ou pantomina, conhecida então por fazer o papel dos diabretes ou fazer de diabo. 

Até hoje nenhum documento apareceu a desvendar a sua organização na terra. “Mas como em Vila Real de Trás os Montes sobre a mesma classe dos almocreves pesava igual obrigação de fazerem os diabretes, a pantomina devia aqui cifrar-se no mesmo: - umas tantas figuras, vestidas exoticamente, mas com simbolismo religioso a exaltar qualquer passo da religião; no fundo, uma fábrica de perenes gargalhadas e de constantes dichotes escarninhos do povo” (ESTEVES, A., 2003), ou seja, os almocreves eram obrigados a participar nessas procissões, desempenhando papéis que provavelmente não lhes agradavam. De facto, pensa-se que esta exibição pelas ruas da vila devia ser molesta à laboriosa classe dos “burriqueiros de São Martinho”, porquanto eles preferiram muitas vezes pagar multas mais ou menos pesadas a comparecer nas procissões, onde de contínuo eram alvo de gracejos e de chufas do povo. 

Então, o licenciado António de Távora, juiz de fora, e como tal presidente da Câmara, sendo também provedor da Santa Casa, aproveitou a animosidade dos almocreves em fazer de diabretes e acordou com os almocreves que este deixavam de estar obrigados a participarem nas procissões. Em substituição desse dever, aqueles ficaram obrigados a constituir uma confraria dedicada a Santo António, instituída na referida capela, com a obrigação de duas missas rezadas cada mês. 

Em 1746, foi aqui, nesta capela, erigida a venerável Ordem Terceira de São Francisco de Melgaço. Mais tarde, depois da construção do convento das Carvalhiças, a sua sede foi para lá transferida. 

Com o andar dos tempos, foram construídos anexos a esta capela, pequenos alpendres do lado norte a nascente. Estes eram frequentemente aproveitados por negociantes de fora, por meio de arrematação, para neles guardarem os seus fardos de fazenda, já que a capela ficava integrada no espaço onde se fazia a feira.  

Embora dependente da Santa Casa da Misericórdia, a capela, aparentemente, não estava isenta da jurisdição do prelado da diocese (ESTEVES, 2003), já que encontrámos registos de diversos sacerdotes visitadores. Por exemplo, em 4 de Setembro de 1746, o visitador Dr. Gonçalo Pinto de Carvalho Medeiros anotou que a pedra de ara estava em pedaços e mandou ao juiz da igreja instruções para que a substituísse por uma capaz.  

Em 25 de Setembro de 1765, o visitador, padre Félix Rodrigues, de Seixas, anotou no seu relatório da visita que não consentia que, dentro da capela, se recolhessem fazendas, pendurem quaisquer mercadorias nas paredes, portas ou alpendres sob pena de 800 réis, ou que dentro dela dormissem qualquer pessoa sob pena de condenar ao pagamento de 500 réis a pessoa encarregada de fechar as duas portas. As ameaças referentes a estas situações fazem-nos presumir que tais factos realmente acontecessem. Tal é-nos confirmado por uma nota em que o visitador afirma “porquanto em acto de visitação conheceu que nas ocasiões das festas se costumam praticar estas indecências”. 

Mais tarde, já durante a segunda metade do século XVIII, esta capela encontrava-se num estado bastante degradado. O arrefecimento da devoção a este santo veio com o rodar dos tempos e a consequência do facto foi o desinteresse de todos pela capela. Em 1773, ameaçava ruína e por isso «dentro dela se anda rectificando e se lhe faz um grande acrescentamento», registou o Padre Manuel da Ribeira, abade da vila de Melgaço. 

Pelos vistos, as ameaças do padre visitador de 1765 foram ignoradas já que continuavam-se a guardar nos alpendres da capela e no interior da mesma, fazendas dos feirantes, entre outras práticas consideradas indecentes. Tal afirmação sustenta-se na nota do visitador, o Padre António Manuel da Costa e Melo, reitor de Mazedo, que em 7 de Março de 1780, deixou escrito: “não permita o pároco que nos alpendres da capela de Santo António façam os mercadores das feiras neles estrebarias para as suas bestas como oculamente presenciei.” 

Não pense o caro leitor que o uso dos tais alpendres anexos à capela constitua total abuso dos feirantes em relação à proprietária: a Santa Casa da Misericórdia de Melgaço. Na verdade, a Santa Casa cobrava um aluguer pelos mesmos. Com efeito, nos livros de contas da instituição, podemos encontrar, por exemplo, referências a entradas de dinheiro referentes à rubrica “Do arrendamento dos alpendres da capela de Santo António”, nos anos de 1838-1839, 1840-1841 e 1842-1843, respetivamente, 3$580, 10$900 e 20$000 réis. 

No ano confrarístico de 1842-1843, gastou a Misericórdia mais de duas dezenas de escudos na compra de barrotes para o telhado desta capelinha e o conserto do mesmo. Sabemos porém que nos princípios de 1854 estava «em partes completamente arruinada e até próxima a ir a terra». Segundo ESTEVES, A. (2003), precisava de vários madeiramentos novos e reparos para a segurança de outros, necessitava ainda de forro novo, pelo menos para o pedaço que estava arruinado ao entrar da capela, do lado direito e havia mesmo, além de tudo isto, necessidade de “calçar a banqueta da parte do nascente, endireitar a parede da capela do mesmo lado, aprumando-a e lançar uma peça de cornia que lhe falta”. As obras de que necessitava foram concretizadas e custaram, na totalidade, 40$510, ainda que permanecessem danos estruturais irreparáveis. 

Dado o seu mau estado de conservação, ”...e pelo desejo de engrandecer a terra, alindando-a, tirando-lhe as beleza arcaicas…” (ESTEVES, A. (2003), em 1867, foi decretada pela Câmara, a sua demolição. Num ofício datado de 29 de Julho desse ano, redigido pelo presidente da Câmara, podemos ler: “Tendo a Câmara da minha presidência tencionado regular e levar à melhor ordem possível, o terreiro do Campo da Feira de Dentro desta vila, ao nascente do qual se vai construir a Casa da aula do ensino primário, legada ao Concelho por virtude da disposição testamentária do benemérito Conde de Ferreira, sem cuja regularidade não é possível dar-se alguma assim no mesmo edifício, como na Rua Nova, com que tem de confinar pela parte do sul, é um dos obstáculos e o que mais entorpece o pensamento da Câmara, o alpendrado chamado de Santo António, e a capela antiga, de construção irregular, e em bastante ruína, de que é orago o mesmo Santo, que tudo se acha sob a administração, e gerência da Santa Casa da Misericórdia desta vila, da qual é V.a S.a, digno Provedor, e dignos mesários são pessoas que conhecem a necessidade da Câmara tomar a respeito medidas enérgicas. 

Decidia-se portanto a Câmara a promover a necessária expropriação, para qual tratava de se habilitar, mas sabendo deste desígnio o cidadão Tomás José Gonçalves, desta vila, que tem um edifício ao sul da mesma capela e que forçosamente o devia de chegar algum tanto à frente para o devido alinhamento, propôs à Câmara ocupar essa área de alinhamento sem embaraço, ou ónus: dar duzentos mil réis na expropriação se atender à indemnização do rendimento do alpendrado, e permitir todos os materiais deste e da capela para os fins que convenham; oferecendo mais à Câmara para regularidade do terreiro, e Rua Nova, e seu processo, ou preço de expropriação o terreno e casa que conserva ao nascente do alpendrado, e sul da mesma rua. 

Nestas circunstâncias, dirige-se a Câmara  à Il.ma Mesa da Misericórdia e lhe propõem, ou expropriação do alpendrado, e capela nos termos regulares  da Lei, ou lhe oferece tudo quanto aquele cidadão Tomás José Gonçalves lhe garante, que é duzentos mil réis em dinheiro, e todos os materiais do edifício; não cumprindo à Câmara ponderar razões para a deliberação que a V. S.as cumpre tomar. 

Também a Câmara podia propor a mudança à sua custa do edifício; porém, abstém-se de tal proposta por entender que talvez V. S.as possam aplicar a quantia com mais vantagem por haver capela na Vila que não tendo dotação, sendo de gosto elegante, e achando-se sob a administração da Junta da Paróquia, será fácil conseguir que ela passe para a Misericórdia. Aguarda a Câmara a resolução de V. S.as para, segundo ela, se deliberar convenientemente e com a prontidão que o caso pede, pois o oferecimento caduca havendo demora…”  

Note-se que a Rua Nova, ou Rua Nova de Melo, a que se alude no ofício transcrito, corresponde, ao traçado da rua que ladeia a atual Praça da República do lado sul, que é o prolongamento da Rua da Calçada. Conforme se refere no ofício, para se rasgar esta Rua Nova, era essencial a demolição da capela já que esta se situava sobre o traçado projetado. 

Na perspetiva da demolição da ermida, a Santa Casa da Misericórdia de Melgaço requereu então à Arquidiocese de Braga, autorização para transferir a imagem do orago para a capela de Nossa Senhora da Lapa, nas proximidades, do lado oposto da praça. A resposta da autoridade eclesiástica é exposta neste despacho de 22 de Agosto de 1867: “Obrigando-se a administração da Misericórdia de Melgaço a edificar nova capela, em sítio conveniente, para a colocação da Santa Imagem do milagroso taumaturgo, empregando-se na construção da mesma, as madeiras da que se pretende demolir, deferimos…” 

Contudo, segundo ESTEVES, A. (2003), a Câmara Municipal e os administradores da capela conseguiram influenciar o arcebispo a substituir o despacho. Assim, a imagem do Santo acabou por ser mudada, as paredes da velha ermida bem como o seu alpendrado, demolidos. De facto, a imagem de Santo António seria transferida para a ermida dedicada à Nossa Senhora da Lapa, que se situava do lado oposto da praça conforme se pode observar na fotografia que se apresenta de seguida do início do século XX. Note-se que essa capela, no início do século passado, era frequentemente referida como capela de Santo António e cada vez menos as pessoas se lembravam de que, em tempos, tinha sido dedicada a Nossa Senhora da Lapa. 


 

Planta com a localização das Capelas de Santo António e de Nossa Senhora da Lapa, em 1859


Em 1884, a capela sofreu um pequeno incêndio que lhe queimou as portas deixando a entrada franqueada e foi assaltada por uns indivíduos espanhóis. Podemos conferir esse facto no jornal espanhol “La Republica”, na sua edição de 5 de Fevereiro, que escreve que “una partida de ex-carlistas españoles quemó la puerta de la iglesia de San Antonio de Melgazo em Portugal, y franca así la entrada, se llevaron la custodia, los vasos sagrados y cuantas alhajas encontraron...” 

Em 7 de Agosto de 1915, em sessão da Câmara Municipal, foi deliberado expropriar a capela de de Santo António, antes da Senhora da Lapa, que existiu ao fundo da Praça da República, e os três prédios contíguos; o primeiro com frente para a referida Praça, onde estava o Café Melgacense, e os dois últimos no antigo Largo do Chafariz. Contudo, este pequeno templo seria apenas demolido em meados da década de vinte do século XX. Todavia, foi um temporal que precipitou o desaparecimento desta pequena capela. Assim, no dia 1 de Novembro de 1926, de noite, um violento temporal fez ruir o telhado desta ermida, com um pouco menos de três séculos de existência. Menos de dois meses depois daquela intempérie, em 27 de Dezembro de 1926, deu-se início à demolição da capela. 


Não terminamos este modesto artigo sem citar o facto de nesta praça, também terem funcionado, durante décadas, outros serviços tais como a estação de correios e telégrafo. Sabemos que o correio, na vila de Melgaço, em 1890, estava já instalado na Praça do Comércio, num prédio, de onde, em 13 de Abril de 1940, passou para uma casa armoriada que se situava onde hoje se encontra o prédio que alberga o Banco BCP. Aqui se conservou até 4 de Maio de 1955, data em que mudou para o novo edifício, na esquina da Rua Dr. Afonso Costa. 

Depois do desaparecimento da capela de Santo António e das casas contíguas ao fundo, a Praça da República adquire um arranjo em termos urbanísticos que não difere muito daquele que podemos ver na atualidade. Em meados do século passado, a Praça apresentava um jardim de que muitos ainda hoje se recordam com saudade...



 

 

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