Aqui estamos de novo junto à tua sombra gloriosa, ó velha
torre de menagem, e desta vez para evocar algumas das tradições honrosas que se
ligam ao teu passado glorioso e sob a recordação das quaes queremos deixar
Melgaço.
Nas guerras de D. João I contra Castella, todo o
Alto-Minho tinha sacudido já o jugo castelhano e só Melgaço resistia ainda,
confiado na sua guarnição de 300 infantes e outros tantos cavalos, que o
alcaide-mor Álvaro Paes Sotto-Mayor capitaneava com denodo.
Impaciente, D. João I por tal notícia, dirigiu-se ele
próprio de Braga, onde reunira cortes, para o alto da província, e pessoalmente tomou o comando das tropas do
sítio. Iam perdidos dez dias em escaramuças ligeiras e, como nada se
conseguisse, mandou o rei edificar um castelo de madeira, que fosse em altura
superior aos baluartes, enviando antes de uma tentativa de força, que dizia ser
a última, João Fernandes Pacheco para tratar à boa paz das condições da
rendição da praça.
Não se quis dar a partido Álvaro Paes e D. João, impaciente deveras, ordenou que tudo
se ativasse para o assalto, a que ele próprio iria.
Os seus brios de guerreiro acendiam-se ainda, porque à
sua mulher e quase noiva, Filipa de Lencastre, queria oferecer, como espetáculo
de bravura, o assalto geral da praça.
A rainha achava-se já em Monção com João das Regras e
João Affonso de Santarem, damas e criados da sua casa, e dali tencionava passar
ao mosteiro de Fiães, para ficar mais perto do arraial.
Foi nesta ocasião que um facto de acaso, um combate singular
entre duas mulheres, decidiu a sorte da campanha.
Vivia dentro da praça uma mulher valente, parcial dos
castelhanos, e a quem os de fora chamavam a
Arrenegada, por ser uma portuguesa que contra a sua pátria combatia.
Soube esta mulher que no acampamento estava a sua conterrânea Ignez Negra, que
tinha por igual uma aureola de virago. Mandou-a desafiar a combate singular e
Ignez, que era mulher de não levar “duas em capello”, pronta aceitou o desafio,
que devia ter lugar a igual distância das muralhas e do arraial e para esse
ponto se dirigiu.
A Arrenegada esperava-a já e a luta começou logo,
encarniçada e terrível, ferindo-se com as mãos, unhas, e dentes, depois de
partidas as armas, de que iam munidas. Não diz Duarte Nunes de Leão (Crónicas
de D. João I) que qualidade de armas eram essas; mas o que ele assevera é que a
pimpona da Arrenegada, depois de ficar de baixo, foi para dentro da vila,
corrida, com os cabelos arrancados, e levando nos focinhos muitas nódoas das
punhadas da de fora, que ficou vitoriosa.
Imagine-se a grande algazarra que os portugueses fizeram
aos castelhanos e o desânimo que estes experimentaram.
No dia seguinte, a praça era de D. João I e Ignez Negra,
na plataforma da torre, onde o pendão das quinas ondeava doravante, dizia para
os besteiros ques c a rodeavam, olhando com orgulho a velha praça:
-- Mas vencemos-te! Tornaste ao nosso poder! És do rei de
Portugal!
E eis aí como uma melgacense de heróicos brios e pulso
sólido deixou na história da sua terra uma tradição gloriosa!
Texto extraído de:
VIEIRA, José Augusto (1886) - O Minho Pittoresco. Tomo I; Edição da Livraria António Maria Pereira; Lisboa.
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