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domingo, 15 de setembro de 2013

O cerco ao Castelo de Melgaço contado no livro "Neves de Antanho" (1918) pelo Conde da Sabugosa (parte III)

O episódio da Inês Negra




Sabendo que os dois chefes não se tinham acordado resolveu então provocar um combate singular, pois sabia que entre a gente do arraial se achava um contendor digno dela. Era uma mulher daquela região, a quem chamavam Inez Negra. Negra por apelido de família ? Talvez.
David Negro se chamava o rabi de Castela que urdiu o enredo contra D. Leonor Teles. E Afonso Pires—o Negro —era o escudeiro de Nun'Alvares na véspera de Valverde. Famílias com o nome de Negrão e Negreiros tem havido em Portugal, pertencendo à primeira, no século XVIII, o poeta da Arcádia — Almeno Sincero. Ou, seria antes a nossa Inês, negra, porque a sua pele exageradamente trigueira, como a da Sulamite do Cântico dos cânticos, contrastasse com a das suas conterrâneas, quási todas alvas, de olhos claros cabelos aloirados, revelando a origem celta das nobres raças?
A iconografia portuguesa é assas pobre. E, se nos faltam retratos de tanta figura predominante, não é maravilha que a galeria das mulheres ilustres careça de qualquer documentação acerca das feições da modesta, mas valente portuguesa dos arredores de Melgaço. Figuramo-la, porém, por artifício de imaginação, com encrespado cabelo da côr do seu apelido. De olhos igneos como o seu nome de Inês, a pele acastanhada, adusta e curtida pelo mordente
sol dos campos, na ceifa. Magra, musculosa e com farto buço a atapetar-lhe o lábio superior. Peito chato como a das amazonas. Tipo levemente aciganado e plebeu, mas não destituído de encanto. E no seu todo o interêssse que provoca
sempre uma personalidade fortemente acentuada. Visitando a casa onde segundo a tradição ela habitou depois da sua proesa, —a Venda de Angelina—(hoje um prédio modernizado), ou percorrendo as ruazinhas estreitas que descem até à porta de D. Afonso, encontrámos algumas moradoras ao soalheiro, que, por comparação retrospectiva, nos ajudaram a recompor uma efígie da Inês Negra, porventura sua remota parente. Devia ser assim como a evocámos!
Quando lhe chegou aos ouvidos o desafio da Arrenegada aceitou o repto. Entretanto El-Rei enviara à Rainha recado para que viesse. Os engenhos estavam concluídos, e quási aplanado o caminho pelo qual se de via fazer rodar a bastida e encostá-la às muralhas. É possível que o mensageiro anunciasse também no Mosteiro de Fiais, onde D. Filipa se achava, o desafio entre as duas mulheres de Melgaço. E isso seria certamente escutado com curiosa atenção pelo mundo feminino que rodeava a Rainha. Ávidas deviam estar por certo as suas Damas e cuvilheiras, de distrações e recreios, tão escassos naquela solidão. E logo entre o mulherio quantos comentários sobre o projectado duelo! Nas velhas, altos escarcéus, e motivo para ralharem de tão descomposta escaramuça. Nas novas, grande jubilação com a espectativa de comoções. Por isso quando naquela manhã do princípio de Março a Rainha, com a sua Corte, se aprontou para descer de Fiães a Melgaço, eram agitadas as discussões acerca do projectado combate. A primavera anunciava-se prometedora. O ar gelado da manhã bafejava a pele do rosto das senhoras, que, ao montarem, se embuçavam friorentas nos seus mantéus e biocos. Na descida, quási a pique, da íngreme ladeira, que durante uma hora percorreram, caminhando pelos carreiros do monte escalvado, algumas das boas donas iam só atentas ao perigo, que oferecia o marchar hesitante dos cavalos sobre os pedregulhos das veredas agrestes. E quando as facas em que iam montadas punham o pé com menos segurança, o que trazia a iminência de um tropeção, ouviam-se exclamações aflitas das mais timoratas, provocando risadas escarninhas entre as resolutas .Outras olhavam maravilhadas a paisagem deslumbrante, o panorama das extensas ondulações que formam o berço delicioso em que se espreguiça voluptuosamente o rio Minho.
Além à esquerda os montes de Pernidclo, em cuja verdura se aninhava o conventinho de Paderne. Mais ao largo Monsão, a terra de Deu-la-Deu. E, como a manhã era clara, lá muito ao longe, quási se distinguia a nobre Valença. Para a direita inferiormente, e já em terra estranha, as pequenas povoações galegas tão maneirinhas... que apetecia dá-las como brinquedo a uma criança!
A maior parte, porém, da comitiva só tinha olhos para a vila de Melgaço, ali em baixo com a sua airosa torre quadrada, que uma coroa de ameias enfeitava, e para a povoação em redor dela, metida nas faixas das muralhas defensoras, prometendo um espectáculo atraente, quando se rendesse à força, como fêmea dominada pelo seu legítimo senhor. Por de fora dessa muralha estendia-se em arruamentos de tendas de campanha o arraial português, sobresaindo a barraca elegante tomada em Aljubarrota aos Castelhanos, que já servira em Ponte de Mouro para firmar a aliança inglesa.
E, informe, como um animal antediluviano, destacava-se a medonha bastida, pronta a atacar. A comitiva da Rainha continuava a sua marcha descente. O caminho agora começava a estreitar-se entre muros e sebes avivadas de silvados e plantas agrestes, e tão apertado que mal cabiam a dois de fundo todos os do acampamento, sendo difícil a passagem quando de frente encontravam um boizinho barrosão de hastes enormes, ou as recuas de mulas que levavam provisões ao convento. Esse corredor serpenteante (quási escadaria) de mais de meia légua, desembocava abruptamente em pleno acampamento Neste, o Rei que logo veiu receber a Rainha, começou explicando o modo de arremeter, e como se realizaria a escaramuça entre as duas mulheres. Na Corte dos Valois perto de três séculos depois, em plena Renascença, os combates singulares, antigo julgamento de Deus, tornaram-se solenidades quási festivas, que chegariam ao apogeu de brilho no célebre torneio em que Jarnac, o favorito da Duqueza d'Etampes, i arretou o pomposo Chataignerie, defensor de Diana Poitiérs, na liça rutilante de St. Germain, sob os olhares do Rei, da nobreza, e de todas as sumidades da França.
Aqui, porém, nesse final do século XIV, e neste canto da Península, as escaramuças, perante uma Corte mais guerreira, que polida, mais austera que licenciosa, se não tinham o esplendor das cerimónias teatrais que deslumbram, não eram menos importantes os seus resultados. Pelo contrário. Na Corte de Henrique II digladeavam-se dois adversários para liquidarem uma intriga de alcova.
No arraial de D. João I batiam-se duas mulheres, disputando a honra de dois exércitos, empenhados em fixar a fronteira do Reino. Nessa manhã do começo de Março em que a Arrenegada saiu pelo postigo da fortaleza, para vir defrontar-se com a sua competidora Inês Negra, todos, de um lado e outro, se dispuzeram a presenciar o espectáculo desta pugna de nova espécie, a que deram foros de combate, e que a crónica regista com a designação honrosa de escaramuça entre duas mulheres bravas. Bravas no sentido de valorosas, e bravas na acepção de ferinas. Os de dentro subiam aos parapeitos das cortinas e bastiões, debruçando-se curiosos. Os do ariaial formavam círculo em volta das lutadoras, saudando com vozearia carinhosa Inês Negra a portuguesa, e enchendo de vaias e apupos a desnaturada castelã. As almas também têm sexo, como os corpos. Assim se aclaram, quando a natureza as troca, tantos casos inexplicáveis, tantas anomalias flagrantes—homens mulherengos, mulheres viragos.
Nos corpos destas duas moravam almas de lutadores valentes, herdadas talvez de seus avoengos, dos que em eras remotas haviam ajudado a expulsar da Península as raças invasoras. Foi logo impetuoso o primeiro embate das justadoras. Com fúria, com sanha, com rancor atiraram-se uma à outra sem mais armas do que as unhas, com que reciprocamente rasgavam as carnes, e os dentes com que se esfacelavam. Atropelando-se, arrancando os cabelos, afogando-se nos fortes braços nervosos, derrubando-se alternadamente na luta. Ensanguentadas, esfarrapadas, e rugindo como feras prolongaram durante minutos a encarniçada peleja. Davam mais a impressão de dois monstruosos animais enovelados em trapos, cabelos e sangue, que de duas mulheres humanamente construídas.

O drama começava a abalar o ânimo ainda dos menos- susceptíveis de sofrer comoções, quando a Arrenegada, ou porque tivesse menos elasticidade nos másculos que a Inês Negra, ou porque o espírito dos que renegam crenças e opiniões é sempre menos resistente, entrou a fraquejar, saindo logo desfalecida. Então Inês, que a suplantara, foi gloriosamente levada em triunfo e saudada com aclamações, ao som de trombetas e charamelas festivas. 

...CONTINUA...

Texto extraído de:
CONDE DA SABUGOSA (1918) - Neves de Antanho. Edição da Livraria Bertrand, Lisboa.

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