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terça-feira, 10 de setembro de 2013

O cerco ao Castelo de Melgaço contado no livro "Neves de Antanho" (1918) pelo Conde da Sabugosa (parte II)

As tropas de D. João I chegam a Melgaço e começam as escaramuças...


-- Ano de 1388 --

Aqui e além deparavam-se numa volta do caminho povoações ou casas isoladas. E do fundo escuro dos estreitos postigos, perfurados nos rústicos tugúrios de pedra cinzenta, debruçavam-se bustos de mulheres com olhar curioso. De sobre os muros, com as cabeças hirsutas os camponeses olhavam embasbacados os comboieiros de munições, e pasmavam para as hacâneas em que cavalgavam as donas, as aias, as criadas e as cristaleiras. Dos cancelos surdiam garotos a misturarem-se na comitiva, mendigando sobejos dos farnéis, enquanto bandos de galinhas e de patos fugiam espavoridos da perseguição da soldadesca, que dissimuladamente tentava deitar-lhes a mão, na espectativa de uma ceia restauradora. E a extensa comitiva coleando pelos caminhos do vale deixava à esquerda os montes levemente ondulados de Galiza a padrasto do rio Minho, e começando a subir a encosta, que vai ao Prado, avistava já a senhoril Melgaço com a sua torre tão nobre a destacar-se sobre o verde escuro dos pinheiros de Bouças.
A Rainha com a sua Corte, contornando Melgaço, foi aposentar-se no opulento mosteiro de Fiães, onde os oitenta monges beneditinos, com o Dom Abade à frente, a vieram receber fidalgamente na avenida que conduzia à portaria do convento.  
El-Rei D. João I, ficou com as suas mil e quinhentas lanças, afora a gente de pé, no campo a nordeste de Melgaço, onde logo ordenou que se assentasse o arraial. Armaram-se as tendas em que pousaram, além do soberano, o Prior do Hospital, D. Álvaro Gonçalves Camelo. D. Pedro de Castro, que havia pouco abraçara a causa de Portugal, JoãoFernandes Pacheco ; (filho de Diogo Lopes, assassino de Dona Inês), de quem Mem Rodrigues dizia ter as qualidades de Lancelote do Lago, e muitos outros capitais e senhores. Tudo se preparou para a arremetida. Melgaço, dentro das fortes muralhas em que D. Dinis envolvera a quadrada torre afonsina guarnecida de dentes que mordem o céu, era defendida por Álvaro Pais de Souto Maior, e Diogo Preto Eximeno, que tinham trezentos homens de armas e muitos peões.
Além da gente de guerra, era a pequena vila povoada por moradores pacíficos, cujas famílias habitavam as casinholas de granito, com pequenas escadas exteriores, de poucos degraus, e um varandim, que formavam junto à parte interna das muralhas estreitos arruamentos. Entre as famílias que nesse fim do século XIV se acoitavam naqueles habitáculos, havia a de uma portuguesa a quem, por se ter bandeado com os castelhanos, tinham dado a alcunha de Arrenegada. Era esforçada. Aquilo a que o povo chama uma refilona e, como todos os renegados, odiava fidalgamente os seus antigos compatriotas. Fervia-lhe o sangue em cachão com o presencear, do alto das muralhas, os preparativos do campo português. Ardia em fúria e ância de arremeter ela própria. E não foi estranha aos primeiros lançamentos de trons contra os nossos. Assistiu também inquieta e fervilhante às primeiras escaramuças, rejubilando logo que viu que, com uma seta, fora ferido Pêro Lourenço de Távora, um português do arraial. Era uma verdadeira virago, mais aguerrida que muitos dos seus camaradas castelhanos. Durante nove dias houve tiroteio sendo lançadas contra o arraial sessenta pedras de trons, ao que do lado português foi correspondido, não havendo grande dano de parte a parte. Resolveu-se então El-Rei a mandar armar em cima da ponte da vila, um engenho, com que os sitiantes arremessavam muitos projecteis que destruiram algumas casas e caramanchões de Melgaço.
Ao mesmo tempo mandou que nas imediações se cortasse madeira, e se acarretassem materiais para se construírem duas escadas e uma bastida, formidável máquina de guerra sobre rodas, de temeroso efeito contra as praças fortes.
Descreve Fernão Lopes minuciosamente essa bastida, muito larga de roda a roda, e de padral a padral; com os seus três sobrados madeirados de pontões, para serem guarnecidos de homens de armas ; com estrados de mui grossos caniços para se andar por cima. Com escadas de alçapão e nos pontões superiores, três mil pedras de mão, que mandaram apanhar pelas regateiras. Havia também trebolhas cheias de vinagre para evitar o fogo, e seis grandes caniços forrados de carqueja, assim como vinte e quatro couros verdes de boi para guardar do fogo que viesse.
Era um rudimento do moderno tanque, era o precursor dessa máquina de guerra, que nos campos da Bélgica está actualmnte  exercendo a sua terrível acção devastadora.

Esta de D. João I, que levou quinze dias a construir, era mais modesta e de mais acanhados recursos. Mas o seu efeito, ainda antes de manobrar, foi eficaz, pois os de dentro, que assistiam aterrados à fabricação do aparatoso engenho, apressaram-se a pedir tréguas, propondo que João Fernandes Pacheco conferenciasse com Álvaro Pais. Por mandado de El-Rei chegou-se o Pacheco à barbacã, e de dentro, encostado ao muro, falou-lhe o comissário castelão. Longo espaço de tempo durou esta conversação entre os dois guerreiros arvorados em plenipotenciários. E enquanto eles falavam, assediados e assediadores suspenderam as investidas, acudindo ao ânimo de uns, (os mais pacíficos) esperanças de uma concordância. Refervendo no de outros (os mais belicosos) desejos impacientes de recomeçar a pugna. Destes o mais irreprimível era o da Arrenegada que ardia em sanha. Sabendo que os dois chefes não se tinham acordado resolveu então provocar um combate singular, pois sabia que entre a gente do arraial se achava um contendor digno dela. Era uma mulher daquela região, a quem chamavam Inez Negra.

...CONTINUA...

Texto extraído de:
CONDE DA SABUGOSA (1918) - Neves de Antanho. Edição da Livraria Bertrand, Lisboa.

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