As tropas do rei marcham em direcção a Melgaço
Cumpria caminhar sobre Melgaço, única praça que no Minho ainda conservava voz por Castela. Foi resolvido partir logo, de Coimbra para o Porto, onde El-Rei e a Rainha, que o acompanhava, despediram o Duque de Lancastre e a sua reduzida hoste, que, em seis galés, numa clara manhã de fins de Setembro largou de foz em fora, para Bayonna, então inglesa.
Desembaraçado
assim do hóspede, e aviados outros assuntos, que se antolhavam urgentes, dirigiu-se
D. João I para Braga a reunir as Cortes. Foi durante elas que D. Nuno Álvares Pereira,
o Condestável, teve notícia da morte de sua mulher. Correu ao Porto onde ela
falecera, fez-lhe exéquias solenes, mandou a filhinha para Lisboa à guarda da Avó—Iria
Gonçalves—e, arrumadas assim as cousas domésticas, voltou para Braga onde o reclamava
o interesse do Estado, verdadeiro fulcro do seu espírito.
Negócio
de Estado eram também por certo e de alta importância para D. João I, essa viuvez
de Nuno Álvares. Grande conchavador de casamentos, até mesmo sem audiência
prévia dos interessados, El-Rei resolveu logo, de acordo com a Rainha, casar o
seu Condestável com D. Beatriz de Castro, filha do Conde D. Álvaro Pires, «uma donzella
assaz formosa e bem filha d'algo». Próxima parenta da linda Inês, collo de garça
possuía porventura o mesmo poder de encanto, que seduzira o Rei D. Pedro. Este viúvo,
porém, era pouco susceptível de se deixar captivar com graças femininas.
Avesso
por índole ao tracto conjugal, não lhe sofria também o ânimo independente
aquela imposição de um consórcio, assim improvisado. Resistiu bisonhamente, —ao
Rei com uma simples negativa ; à Rainha, pela qual professava um respeitoso afecto,
respondeu esquivamente : — «Para offerecer a D. Brites os braços, era preciso que
estivessem desarmados e não convém ainda lançar a espada.» Escusa de guerreiro !
Sentir de monge!
Desobrigado
assim, e livre da teia em que podia ser enleiado, levantou voo para entre Tejo e
Guadiana, onde a fronteira estava ameaçada. D. João I conhecia o seu irmão de
armas. Era inútil insistir, podendo até qualquer teima provocar alguma daquelas
desavenças, que entre os dois às vezes surgiam.
D. Beatriz,
se acaso edificara naquele terreno o castelo da sua felicidade, viu-o desfeito em
névoa, antes mesmo de o habitar. E continuou, (até que ao diante levou outro destino)
a ser ornamento na Corte de D. Filipa, acompanhando-a
como
as outras na jornada que logo El-Rei empreendeu sobre Melgaço, e onde por certo
foi das que mais aplaudiram a aventura da aguerrida Inês Negra, que logo vamos presencear.
Compunha-se a casa da soberana de nobres senhoras
que
El-Rei puzera ao seu serviço. A ela pertenciam : como aia a camareira-mór D. Beatriz
Gonçalves de Moura viúva de Vasco Fernandez Coutinho, senhor de Liumil, e como
damas a filha desta, Tareja Vasques Coutinho, viúva do filho do Conde D. Gonçalo,
e, portanto, cunhada de Leonor Teles ; a irmã daquela, Leonor Vasques, que depois
casou com D. Fernando, que chamaram de Bragança, filho do Infante D. João; D. Biringueira
Nunes Pereira, prima do Condestável e filha de Rui Pereira, que morrera na peleja
das naus ante Lisboa; e ainda outras que formavam um luzido batalhão volante, nesse
cortejo que ia assistir ao mais típico episódio daquela época.
D. João
I preparava-o adrede para mostrar à Rainha como se assediava uma praça, e para exibir
perante a sua Corte, a valentia dos homens de armas, que vinham consolidando a independência
do Remo. Era uma genuína galanteria de guerreiro medieval, esse desejo de fazer
assistir a fina flor da Corte feminina ao rude embate dos seus besteiros contra
a fortaleza rebelde. E era ao mesmo tempo um poderoso incitamento para a hoste,
esse torneio revelador da arte, da dextreza, e do valor com que se pelejava. Era
também uma vistosa parada de forças combatentes perante os olhares mulheris, o mais
aguilhoante estímulo da cavalaria gloriosa.
Era,
finalmente, uma ala de namorados de nova espécie, batalhando em frente de suas damas.
Era, em resumo, uma fantasia de herói! Marchou a numerosa comitiva de Braga para
Monsão, onde D. Filipa foi acampar, indo logo a seguir ao mosteiro de Santa Maria
de Fiães, perto de Melgaço. Acompanhavam-na João das Regras —o Doutor, João Afonso
de Santarém, e ainda outros letrados e jurisperitos, mais exercitados no manejo
das Pandectas e das Institutas, que no brandir das espadas e dos arremeções.
Corria
o mês de Janeiro de 1388. As chuvas tinham ensopado os campos. A paisagem minhota,
tão festiva de cambiantes durante o verão, com os seus soutos de castanheiros florentes;
com as suas videiras de enforcado enroscando-se nos troncos e ensombrando os
páteos das habitações; com os fetos de franjas recortadas, adornando as sebes; com
as eras e musgos revestindo os penedos graníticos; com o veludo esmeraldino das
nogueiras, e as folhas bicolores das tílias opulentas ; com a pradaria clara rindo
alegremente
na voluptuosidade
das regas abundantes ; toda essa sinfonia de verde, executada a grande orquestra,
sob a regência de um sol brilhante, que vivifica o torrão ; que se reflecte nas
lantejoulas de feldspato e de mica, tapete dos caminhos feito como do pó de
diamantes, e que dá a essa região o geito de um sorriso da natureza; essa paisagem
apresentava naquela quadra do ano a fisionomia rabujenta de uma criança amuada.
O inverno ia rigoroso. As chuvas tinham engrossado as levadas, e avolumado os
regatos, dificultando a marcha da hoste guerreira, e os movimentos da comitiva real.
Por isso o séquito proseguia lentamente, mas sem desfalecimento. O tropear dos cavalos
e dos machos sobre o lagedo da estreita estrada romana, que segue de Monsão a
Remoães, e dali à aldeiazinha do Prado, galgando os rios com a ponte do Mouro e
a ponte da Folia (duas relíquias de eras já idas), que as urzes e as eras enfeitavam
com garridice; o vozear dos homens de armas; as exclamações e gritos femininos;
e as pragas rouquenhas dos moços bagageiros e condutores de equipagens, alvoraçavam
a gente do campo.
...CONTINUA...
Texto extraído de:
CONDE DA SABUGOSA (1918) - Neves de Antanho. Edição da Livraria Bertrand, Lisboa.
...CONTINUA...
Texto extraído de:
CONDE DA SABUGOSA (1918) - Neves de Antanho. Edição da Livraria Bertrand, Lisboa.
Sem comentários:
Enviar um comentário