A acção passa-se em Melgaço em 1958. Devido à extensão do conto, dividi-o em várias
partes...
"Bebeu o vinho que restava na tigela,
resmungou uma despedida para o Félix, o dono da taberna e encaminhou-se para a
saída. Parou junto à mesa onde se jogava à sueca, enrolou um cigarro, apreciou
algumas vazas, trocou um olhar com o Carlos, um olhar que pretendia ser casual.
O estabelecimento era grande, de um
lado a taberna, os pipos alinhados na parede do fundo, o balcão forrado a zinco
onde os clientes se encostavam Destacava-se o pequeno armário envidraçado onde
habitualmente tomavam lugar os pratos com as iscas, as pataniscas ou postas de
peixe frito.
Do outro lado ficava a mercearia, com
as tulhas em madeira, os fardos e as seiras, o medidor do azeite, a balança, os
livros do fiado por baixo da gaveta do dinheiro. Do lado da taberna duas
grandes mesas com bancos corridos, pouso dos jogadores de cartas e dominó. Eram
quase sempre os mesmos, a aldeia era pequena e os afazeres do campo não
deixavam muito tempo livre. Nas épocas de maior labor como nas lavradas, na
poda da vinha ou nas colheitas, só mesmo ao domingo é que se juntava mais
gente, vindo até das aldeias em redor provar a pinga e os petiscos do Félix.
Saiu para o caminho, piscou os olhos
por causa do sol, puxou o boné para baixo, encaminhou-se para casa, já fora da
aldeia. Na última volta do caminho, onde o velho castanheiro do Tio Rapão
espalhava sombra, sentou-se sobre o estrado de um carro de bois ali
desatrelado. Com a navalha entreteve-se a aparar um pauzinho, fazendo tempo
para o encontro que se adivinhava.
O Carlos chegou afogueado, tirou o
velho chapéu de feltro, limpou o suor da testa à manga da camisa.
- Vamos ali para trás – diz-lhe o
Alípio – Espero que não tenhas dado nas vistas…
- Pensas que nasci ontem?
Passaram a cancela de madeira tosca e
foram-se abrigar debaixo da vinha frondosa, onde já despontavam pequenos cachos
de uvas.
- Então? – Questiona o Carlos.
- Então, esse filho da puta do tenente
não ia adivinhar sozinho por que banda íamos passar. Se soubesse quem foi o
malandro que o avisou, já lhe tinha dado um tiro.
- Ó homem, assim ainda te desgraças…
- Pelo menos ficavam todos a saber que
não admito traidores. Sim, traidores, porque isto foi obra de um dos nossos.
- Podia não ser, podiam ser os de
Cochos que falaram. Sabes que eu não me fio desses galegos! Até podiam ter sido
os de Fiães. Sei lá!
- Não acredito, isto é obra de alguém
cá da terra. Se Deus quiser hei-de encontrar o bandido e logo ficará sem
vontade de ir bufar à Guarda. Malditos! – Vocifera o Alípio – Fizeram-nos
perder toda a carga e ainda perdemos a mula do Zé Albino que caiu à mina. Vais
a Fiães e deixa-te ficar por lá até ao fim da tarde. Conversa como se nada
tivesse acontecido. Encontramo-nos aqui, à noite, quando se puser a lua, mais o
Tone das Águas e o Barbeitas. Já sabes, nem uma palavra a ninguém sobre a desgraça
da noite passada.
Como em muitas aldeias da raia galega,
o contrabando era a forma de aliviar a miséria da vida dependente da
agricultura. As terras eram pobres, o clima agreste, de verão uma torreira de
sol, no inverno tudo branco de neve ou queimado pela geada traiçoeira. Os mais
novos tinham abalado para Lisboa e alguns até para o Brasil, mas aqueles que
tinham mulher e filhos, por aqui se aguentavam, tirando a custo o pouco
sustento que a terra consentia dar.
Montes de agrestes pendentes, salpicadas
de áspero granito, onde as cabras se empoleiram, onde os lobos espreitam, os
garranos pastam em manadas ariscas, onde o milhafre e a águia vigiam das
alturas, assim era aquela terra.
Pequenos pastos de erva amarelada
mostravam que a seca ia prolongada, bom para o vinho, mal para o milho que
tardava a engrossar a espiga.
Foi direito à loja onde guardavam as
ferramentas, pegou na enxada, pô-la ao ombro e juntou-se à Olímpia e à Maria
Rita, respectivamente sua mulher e sua irmã, que com eles vivia. Ambas
manejavam a enxada entre as fileiras de milho, desalojando com golpes certeiros
o gramão, a junça, os saramagos e outras ervas bravas.
Em casa os candeeiros já tinham sido
apagados há muito, todos descansavam menos o Alípio, que fumava um cigarro sob
a luz baça da lua, filtrada pela latada de vinha que cobria as escadas de
pedra. Pacientemente esperava; esperava que a lua desaparecesse, esperava por
novidades que os seus homens lhe haviam de trazer, esperava por saber quem era
o malandro que os tramara. Podia desconfiar de todos, mas daí a ter certezas ía
um passo muito grande. Não lhe saía da cabeça que quem os atraiçoara uma vez,
podia muito bem voltar a atraiçoá-los outra e outra vez.
O sino da igreja badalou duas vezes,
eram dez e meia, a lua já se aninhava por detrás dos montes do Soajo. No ponto
de encontro aguardava o Barbeitas, um homenzarrão com físico de gladiador
romano, que adornava a feia carantonha com uma barba espessa.
- Ainda não chegaram os outros? –
Pergunta o Alípio, só para fazer conversa.
- Devem estar a chegar… Parece que oiço
barulho…
- Também eu, devem ser eles.
Chegaram, sentaram-se no chão e o
Carlos começou a contar as novidades.
- Não se falava noutra coisa em Fiães.
Todos comentavam a apreensão que o novo tenente da Guarda de Melgaço fizera a
noite passada. Mas eles pensam que a carga vinha por conta dos Cunhas, a mim
até me perguntaram se tinha visto algum deles por aqui.
- Por aqui?
- Sim, parece que andam fugidos. Logo
de manhã foram às casas deles, revistaram tudo e não os encontraram. Segundo
dizem, foi esse tenente que comandou a rusga e chegou a dar umas chicotadas ao
filho de um deles, um miúdo, para ver se o rapaz falava. Ainda troquei umas
palavras às escondidas com o Mendes, disse-me que este tipo veio da Régua e é
dos que não come, nem deixa comer. Um animal da pior espécie!
- Mas afinal soubeste como eles deram
connosco? Quem é que bufou?
- Não pude falar à vontade, mas o
Mendes garantiu-me que ficaram surpreendidos ao darem connosco. O tenente
tinha-lhes dito que iam apanhar uma carga de café que ia para lá. Ah… ele
disse-me para te avisar, que temos de estar quietos umas semanas até isto sossegar
e que não tardarão a fazer uma ronda por aqui.
- Então é melhor tirarmos do teu
palheiro o que sobrou e mudar para outro lado, fora da aldeia, senão ainda nos
encontram a mercadoria."
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Fonte: Este interessante texto foi publicado no blogue "Vila Praia de Âncora" em http://vilapraiadeancora.blogs.sapo.pt. Não resisti a partilhá-lo com vocês!
Autor do texto: Brito Ribeiro.
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