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sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

O Tenente da Guarda (Parte II)

Posto Fronteiriço de S. Gregório 
(Foto de Germano Brigadeiro) 

Melgaço,1958...
O Alípio e o Tone da Águas estiveram presos duas semanas em Melgaço, depois da guarnição da guarda-fiscal ter passado pela aldeia e revirado tudo sem nada encontrar que incriminasse quem quer que fosse. Estes dois foram levados como podiam ter sido outros, que todos sabiam contrabandistas, se contrabandista se pode chamar aos passadores de mercadorias para lá e para cá e que apenas ganhavam a jorna. Os verdadeiros contrabandistas eram outros que, tal como hoje, não davam a cara e raramente se aproximavam da raia.
Pelo meio, viviam os guardas, quase todos recebiam uma parte dos ganhos para fazerem vista grossa e para os avisarem quando havia perigo.
De vez em quando aparecia um ou outro guarda que combatia ferozmente o estado das coisas, mas que invariavelmente acabava por ser “amaciado”. No caso de ser um graduado era mais difícil, geralmente tinham de esperar que fosse transferido para outro lado.
O país estava em efervescência, as eleições presidenciais tinham sido disputadas pelo Humberto Delgado e a vitória do novo delfim de Salazar, o Almirante Américo Thomaz, tinha o gosto e o cheiro acre da fraude eleitoral. A repressão policial não se fez esperar e os oposicionistas foram implacavelmente perseguidos.
Na cadeia, o Alípio levou algumas bastonadas mas aguentou firme, repetiu sempre a mesma cantiga, “trabalho no campo de sol a sol, não tenho tempo para contrabandos”, “isso é nas outras aldeias, na minha aldeia não há disso”, “não sei de nada, de noite estou a dormir”. O tenente quando viu que nada lhes conseguia tirar e que apenas tinha entre mãos peixe miúdo, libertou-os com a ameaça dos maiores castigos e tormentos, se lhes pusesse outra vez a vista em cima.
 Ao chegarem à aldeia um profundo silencio os acolheu. Estavam todos reunidos em frente à igreja e o Alípio depois de abraçar a mulher, os filhos e a irmã, foi sucessivamente abraçado por todos os presentes.
A certa altura interrogou-se “será que o Judas também me veio beijar”, mas afastou esse pensamento, pois agora estava quase convencido que apenas tivera muito azar, pois o mais certo era terem tropeçado neles quando procuravam outros contrabandistas mais importantes.
Durante meses a rede de passadores da aldeia esteve inactiva, o tenente volta e meia reaparecia e redobrava as ameaças, na expectativa de obter informações. Soube-se que tinham matado dois homens para os lados de Castro Laboreiro e os carabineiros espanhóis tinham feito uma rusga na qual prenderam mais de uma dúzia de mulas carregadas com ovos, café em grão e barras de sabão.
Dizia-se que tinha sido o tenente que tinha forçado os espanhóis a agir. Seria verdade? Era o que constava e o Alípio que tinha ido a Lamas de Mouro comprar semente para a próxima primavera, ouvira esta versão na venda do Grémio.
O tempo passava devagar e a tensão subia lentamente.
Nunca a pressão da Guarda tinha sido tão intensa, nem a incerteza no futuro tinha sido tão grande. Falava-se agora em ir trabalhar para França, já tinham ido alguns, sem papéis e sem haveres, ao Deus dará. Parte deles tinham sido apanhados e devolvidos pelos espanhóis, um grupo já estava a passar os Pirenéus, que diziam ser maiores que o Gerês, maiores que a Serra da Estrela.
 Todos matutavam na forma de apartar o tenente do caminho e vingar as humilhações sofridas ao longo dos últimos meses. Um dia o Alípio foi a Melgaço e no posto da Guarda-fiscal pediu para falar com o tenente, mas informaram-no que não estava, tinha ido em serviço a Monção, só devia voltar passados dois ou três dias. Montou o cavalo e regressou a tempo de ajudar a Olímpia a lavrar o”Beirado de Baixo”, o terreno onde, ano após ano, semeavam batatas e que eram das melhores das redondezas.
Na semana seguinte voltou a procurar o comandante do posto e, depois de esperar mais de duas horas, fizeram-no entrar no gabinete onde o tenente o esperava.
- Então, que queres?
- Lembra-se de mim, senhor tenente?
- Achas que me ia esquecer de um malandro como tu? Diz o que queres, que não tenho a tua vida.
- O senhor não quer informações sobre os contrabandistas?
- Hum… E tu o que é que sabes? Bem me parecia que sabias mais do que dizias! Fala!
- Eu não sei nada, venho apenas dar-lhe um recado.
- Um recado? De quem?
- Sei lá, não o conheço.
- O quê? Estás a gozar comigo?
- Deus me livre, senhor tenente. Eu explico, na semana passada apareceu um homem em Lamas de Mouro, lá na venda e propôs-me vir aqui dar-lhe um recado. Pediu-me para lhe dizer que os contrabandistas que você persegue o tinham expulsado sem motivo e ele queria vingar-se. Por isso está disposto a falar, a dizer-lhe tudo o que sabe.
- Ai sim? E quem é esse tipo?
- Já lhe disse que não sei, mas ouvi dizer na venda que era de Caminha ou Seixas, não sei bem.
- Então diz lá a esse tipo que pode vir aqui.
- Não!
- Não? – Admira-se o tenente.
- Se ele quisesse vir aqui não me tinha dado cem mil reis pelo frete.
- Então que raio quer ele? Não sabe que eu é que sou o comandante…
- Sabe sim, senhor tenente, mas é que ele tem medo dos seus companheiros, quer dizer dos seus antigos companheiros. Ele disse-me que espera por si no próximo domingo na aldeia da Gave ao pé do cruzeiro, às dez da noite. Se aparecer só e me prometer que não lhe faz mal e o deixa ir em paz, ele lá estará à sua espera. De contrário não há acordo.
- Então o patife ainda dá ordens?
- Isso não sei, não é nada comigo. Então que lhe digo?
- Diz-lhe que estarei lá, mas à mínima suspeita, abato-o logo com um tiro.
- Esteja tranquilo senhor tenente, ele não me pareceu homem de violências.


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Fonte: Este interessante texto foi publicado no blogue "Vila Praia de Âncora" em http://vilapraiadeancora.blogs.sapo.pt.  Não resisti a partilhá-lo com vocês!
Autor do texto: Brito Ribeiro.

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