terça-feira, 10 de setembro de 2024

O Peso (Melgaço) na primeira metade do século XX: entre a opulência e os pedintes

 



Nas Termas do Peso (Melgaço), na primeira metade do século passado, a opulência convivia com a pobreza que povoava a vida da maior parte das pessoas da terra. Enquanto que a realidade no complexo termal era a de um crescimento prometedor, a realidade socioeconómica no restante território de Melgaço era muito aflitiva. Tal facto, fazia convergir para a área envolvente às termas, grandes quantidades de mendigos que procuravam a generosidade entre os aquistas. Atente-se numa notícia no jornal “A Manhã”, na sua edição de 25 de Agosto de 1918 onde podemos ler o seguinte: “PESO, MELGAÇO, 19 – (…) Como já lhes referi, a mendicidade aqui nestas termas constitui uma enorme legião. À entrada do pavilhão das águas, pelas estradas, em frente dos hotéis, em todos os cantos, enfim, a peregrinação dos indigentes é um verdadeiro flagelo. Entre os hóspedes do Ranhada, fez-se, há dias, uma quête, que, rendendo 26$00, serviu a contemplar cinquenta e dois desses desgraçados.  

Agora, uma outra iniciativa benemérita, partida de algumas senhoras que se encontram em uso de águas, constituídas em comissão, a qual tem à sua frente as senhoras D. Vitória Sardinha, D. Amélia de Sousa e D. Laura Borralho, vêm em socorro da indigência do Peso e de Melgaço. Essa comissão está, afanosamente, angariando, entre os hóspedes dos diferentes hotéis, objectos para uma quermesse que deve, talvez, inaugurar-se na próxima quinta-feira e produzir, decerto, atento o simpático fim, avultado rendimento. Têm essas senhoras, além do nosso insignificante auxílio material, todo o nosso aplauso moral. Aqui lho deixamos, gratamente, consignado. 

Na década de quarenta do século XX, um visitante assíduo das Termas do Peso era o Dr. Pires de Lima, que era Chefe da Clínica de Cirurgia do Hospital de Santo António e dirigiu a Escola Médico-Cirúrgica do Porto. Em várias publicações, deixou-nos algumas impressões acerca das suas visitas ao Peso. Num dos seus livros, “Ao Correr do Tempo”, publicado em 1947, fala-nos de algumas das pessoas que encontrava a rondar as termas e que vinham pedir esmola aos frequentadores da estância. Num dos capítulos do livro, podemos ler: “A primeira visita que recebem os aquistas nas Termas de Melgaço é a do Herculaninho, débil mental, a quem um eritema pelagroso, na Primavera, exfolia pele dos braços e das pernas. Ao encontrar hóspede conhecido, trata-o pelo nome e, estendendo o boné, suplica: -- Camarada e amigo, uma esmolinha! O Herculaninho é bem criado, e todos são generosos para com ele. Apesar disso, passados momentos, esquecido dos donativos recebidos, estende outra vez a mão: -- Uma esmolinha, camarada e amigo! E, para reforçar o pedido, esboça uma dança rudimentar, e cantarola: Galeguinhos da Galiza, 

Bós que bindes cá buscar?  

Bimos ó binho barato 

Para nos imbubedar. 

Gosta muito que lhe deem dinheiro; mas também aceita espigas de milho ou um cigarrito da «fábrica do se-me-dam». Contam-se episódios curiosos da vida do Herculaninho. Uma vez, o Dr. Vitoriano comprou uma pescada e encarregou-o de lha levar a casa. O pobre homem pendurou-a nos dedos pela boca e sentiu que ela o picava. «Ai, tu ferras?» E amarrou-lhe um cordel ao rabo, levando-a a rasto pelo monte acima. Uma tarde, à hora da sesta, muitos aquistas estavam sentados nos aviões, à espera do correio. O Herculaninho começou a contar os carinhos que recebia de sua mãe e a narrar como se passaram os seus últimos momentos. O pobre rapaz era filho de namoro. Antes de expirar, a pobre mulher despediu-se pateticamente de seu filho, que deixava sozinho no mundo. A narrativa comoveu de tal maneira, que, nos olhos das senhoras, começaram a aparecer lágrimas. E os representantes do sexo forte, para não fazerem má figura, retiraram-se discretamente... 

Na véspera de S. João, pela hora calmosa, fui-me sentar a ler debaixo duma frondosa tília, que rescendia perfume, à espera da abertura da Fonte principal. As aves soltavam os seus gorjeios, acompanhadas pelos zumbidos das abelhas e pelos ruídos metálicos dos grilos. Uma formosíssima libélula de cores vivas poisou no livro aberto, e não tive mais coragem de virar a folha em que ela mostrava as suas brilhantes asitas. Lembrei-me de um episódio contado por Venceslau de Morais. A noite era escura e o escritor não acertava a encontrar o buraco da chave da porta de casa. Nisto, um pirilampo poisou na fechadura. O luminoso bichinho, que ajudou Venceslau de Morais a abrir a porta, seria o espírito, já libertado pela morte, de alguma das suas bem amadas do Extremo Oriente? Que mensagem me traria o subtil e formoso insecto? Estava nestas cogitações, quando reparei que, sobre a ponte do ribeiro de Martingo, a contemplar a queda da água, estava uma mulher esguia, vestida de branco, de longas saias. Aproximou-se de mim, dizendo textualmente: «Eu sou santa. Estive a conversar com a água, e soube que o senhor está em perigo; vá depressa para o Porto, senão matam-no. Por causa da frota, está a cadeia cheia de gente e vão matá-Ia toda. Fuja para o Porto, fuja enquanto é tempo» E a pobre louca, que está convencida de que é a Rainha Santa Isabel, só me largou quando lhe prometi solenemente que aceitaria o seu conselho. Outra mendiga bem conhecida dos frequentadores das Águas do Peso é a Tia Maria Caldas, nonagenária que costuma guardar cabras pelos montes de Paderne e que, na época balnear, desce, trôpega, à ribeira, apegada a duas canas, com uma linda cestinha de Monção enfiada no braço. Traz ali a sua roca, em que fia linho. Fala constantemente, quer encontre interlocutor, quer esteja só. Conta histórias muito longas e, com as suas informações, poderia escrever-se um livro inteiro de folclore do Alto-Minho. Vive de esmolas, mas tem um carácter inteiramente diverso do do Herculaninho. Enquanto este revela uma ganância hebraica, Tia Maria Caldas quase não pede. E, quando lhe dão esmola, ela, às vezes, recusa-a orgulhosamente, explicando: «Hoje não preciso». Um dia, estava Tia Maria Caldas a contar as suas intermináveis histórias em dialecto minhoto, tão próximo do galego. Um dos ouvintes disse a meia Voz: «Eu não a entendo!». E ela, com um ar de orgulhosa superioridade: «Como é que me há-de entender, se isto é latim?...» A memória da nonagenária de Paderne é verdadeiramente notável. Para exemplificar, arquivarei, por fim, um lindo romance ouvido da boca da Tia Maria Caldas: 

 A PASTORINHA 

Deus te salve, pastorinha, 

Que vosso gado guardais!  

Vinde com Deus, passageiro,  

De Deus salvado sejais!  

Eu salvei, vós salvastes,  

Cumpri o meu dever; 

Foi criação que me deram,  

De a tudo responder.  

Uma bela rapariga  

Como Vós, linda pastora,  

Tão bela e tão formosa,  

Fala tão encantadora... 

Não venha o senhor, de fino,  

Escarnecer da inocente, 

Que anda a guardar o seu gado: 

Na serra principalmente,  

Sempre foi habituação minha  

Pelo meu gado olhar... 

Como pode o cidadão  

Vir-se de mim agradar?  

Ando a guardar o meu gado,  

É o meu entretimento. 

-- Eu não posso acreditar  

Em falas dadas ao vente.  

Eu dou-te a minha palavra,  

Não queres acreditar nela? 

Anda comigo, pastorinha, 

Deixa ficar essa serra, 

Nada posso estranhar,  

Sendo na serra nascida.  

Como posso ir p'ra cidade,  

Sem ter lá modo de vida? 

Para comer e beber  

E andar bem asseada 

 Bem te bonda a formosura, 

De seres tão delicada. 

Já que o senhor me promete  

O meu casamento seguro,  

Eu a vós me entrego,  

Desde hoje para o futuro.  

Digo adeus à minha terra,  

Aos adros dos meus pais:  

Agora Vou acompanhar  

Quem me Quer fazer feliz.  

Adeus pai, adeus mãe,  

E gado que eu guardei!  

Adeus manos, adeus manas,  

E terra onde me criei!» 

Talvez se trate de variante do romance «Linda-a-Pastora», recolhido no Romanceiro de Garrett..."