Melgaço, em meados do século XX
Na novela "O Morgado de Fraião" (1963),
Aquilino Ribeiro fala-nos de Carmencita, uma espanhola que vivia em Melgaço e
que se dedicava ao contrabando, entre outras atividades:
“Morava
na vila de Melgaço, passada para ali da terra de Verim não se sabia em que
barca, uma rapariga espanhola, Cármen Salvatierra, espelho de salero e donaire,
que vivia com a mãe e o padrasto. Abrira este ali uma quitanda, onde cambiava
dinheiro e, a meia porta, exercia o melhor contrabando daquela raia, levando
para Espanha e trazendo para Portugal mercadoria a primor, com beneplácito
manifesto dos carabineros. Dizia-se à boca pequena que D. Jesus Martinez - que
tal era o seu nome - era agente secreto ao serviço de Calomarde e dos
Apostólicos. O certo, certo é que Carmencita era uma lasca de arregalar o olho,
em torno da qual arrulhavam pombos mariolas de alto topete, entre os quais
contavam o morgado de Gondim, um galo doido por mulheres, e o abade de Cerdal,
este um peneireiro de alto lá com ele para toda a espécie de fêmea que
mostrasse proa, bom peito e anca. A moça ria, que nem de cócegas, ante os
devaneios dos galanteadores e recebia os cortejos de uns e de outros com
grandes alardes de virtude e mesmo sobranceiros desdéns. Um dia, o morgado de
Fraião viu-a e ficou a morrer por ela. Tinha mulher e filhos, embora, dava
tudo, inclusive a salvação, ele que batia o dente quando o frade lhe pintava as
profundas do Inferno, para cativar a beldade. Não foi a ponto de inventar uma
héctica galopante para D. Mécia e prometer casamento à franduna após o funeral
da ilustre dama, que louvores ao Senhor estava anafadinha e da melhor saúde? A
moça, rindo muito, respondeu:
- Pues
deje usted volar su mujer al cielo de los gorriones y que todo el mundo lo sepa.
Perante
semelhante obstinação, que magicou Albano de Carvalhais? Preparou uma expedição
a Melgaço com seis dos seus bravos, capitaneada pelo Tomás Ruivo, e raptaram a
espanhola. Tinha-a agora como uma rainha, sege, aias, su madre, na casa de S.
Pedro da Torre, com uma quantia tão alta à sua ordem no Banco del Espírito
Santo de Vigo que bastaria para dotar meia dúzia de burguesinhas honradas.
Assim calou a pombinha, garantidos fartamente os seus dias e de su madre e um
novio para quando batesse asas. Mas a aventura deixou rescaldo. Uma noite que
Albano de Carvalhais saía do seu alcácer de sultão sofreu a espera de quatro
homens emboscados que lhe mataram o cavalo com uma zagalotada e deixaram por
morto um dos homens da escolta. Quem foi, quem não foi, assentou-se que a
cilada partira de Martinez, que jurara tirar-lhe a vida e continuava a
mostrar-se relutante a qualquer concordata.
Porém,
mediante inculcas daqui, indícios dalém, ficou estabelecido que o autor da tranquibémia
tinha sido o abade do Cerdal, Joaquim da Cunha Silvano, que com as dores de
cotovelo dera urros que se ouviram até no paço do arcebispo.”
Extraído de:
- RIBEIRO, Aquilino (1963) - Casa do Escorpião: novelas. Bertrand, LIsboa.
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