domingo, 12 de maio de 2013

1948 - Um qualquer dia no Hotel Ranhada nos seus anos de ouro (parte II)


Fachada do Hotel Ranhado em 1914
A senhora condessa da Saborosa está a sair agora mesmo do hotel Ranhada. Sobressai pelo seu cabelo branco, com carrapito bem feito atrás e popa alta à frente, são arranjos que encaixam melhor ainda nas suas feições muito finas, diferenciando-se, à saída, das demais senhoras da sua condição, que lhe seguem o passo. Salta à vista que sabe zelar a linha. Apesar de sexagenária, irradia ainda beleza e faz adivinhar que, na mocidade, fora bem capaz de arrastar atrás de si muitos pretendentes. Cá fora, o arruado que conduz ao balneário termal ainda se resguarda do calor arrebentadiço neste começo de mais uma manhã estival. A fresca vem-lhe do manto sombrio destes plátanos e destas acácias, que correm o trajeto, embelezando-o como prelúdio de uma vida termal que se advinha intensa lá para o meio da manhã. À porta, está o calhambeque do hotel para que estas senhoras e outros hóspedes não façam a caminhada a pé, que é sempre coisa para um quilómetro (noutros tempos, ia-se de charrete, o cocheiro era o senhor Rocha, que acumulava estas funções com as de corretor do hotel, até ia à Estação de Monção esperar os hóspedes, depois deu-lhe para ser também dono de um hotel, o Hotel Rocha, hoje devoluto).
O senhor Mário Ranhada faz questão que embarquem todos no pequeno autocarro, mas não há nada a fazer: todos recusam. A pé é que se vai bem, as diabetes mandam andar. Partem assim cedo para guardar vez no balneário termal. A meio da manhã, já bebidas as águas e tomados os banhos, a senhora Condessa de Saborosa encontra-se no Parque das Termas com a senhora D. Amélia. Esta sua grande amiga é esposa do professor doutor Eduardo Costa, director do Instituto Pasteur em Lisboa, que acumula agora estas funções com as de director clínico da estância. Andam atarefadas com a quermesse, que organizam todos os anos a favor dos pobres das redondezas, enquanto estanciam no Peso de Melgaço. Passam estes dias a recolher donativos e compram roupas e outras coisas necessárias. Depois da cura do corpo, fazem a do espírito. A excelentíssima D. Amélia é uma senhora muito alta. Quando está ao lado do marido, que é assim sobre o baixinho, vê-se que a diferença entre ele e ela vai a modos de capela para catedral. O distinto médico anda sempre de lacinho clássico, mesmo de bata branca nunca o tira, fica a dar consultas até tarde, às vezes são nove da noite e ainda está a atender aquistas. La noblesse oblige.
Por esta manhã a meio, já outros aquistas percorrem, por mero passeio, as avantajadas alamedas do Parque das Termas, colmadas pela abundante ramaria. O seu traço urbanístico saiu do lápis do senhor José Ranhada, tio da Julinha, quando geriu as termas, faz já alguns anos. Por esse tempo, o senhor José Ranhada tinha o estranho hábito de se entrincheirar no escritório das termas, nas quentes tardes de Verão, e, de arma de pressão apontada, mirava, de olhinho caído, toda a truta que subisse, arteira, o regato cristalino que desce à ilharga daquele ponto. Qual águia-real, era certeiro de visão e muito mais de mira, não precisava de garras, nem de voos picados, a chumbada garantia-lhe boa pescaria para a janta.
A senhora Condessa de Saborosa será dessa época, pois há muito ano que vem aqui às termas. Escolhe sempre o Julho ou o Agosto. São os meses melhores para estar, em grupo, com a gente da sua posição. Nunca reserva hotel em Setembro. Este é o mês mais procurado pelos novos-ricos, e a senhora condessa e o seu grupo não querem misturas. Mas, se espreitarmos a bolsa duns e doutros, veremos que uma outra D. Amélia, a senhora D. Amélia de Ascensão Moutinho, burguesa típica do Porto, mete muita fidalguia no bolso. Ostenta joias até ao pescoço, põe-se toda ‘um luxo’, é podre de rica, não tem descendentes, vai deixar tudo a uma afilhada (“Boa senhora, esta D. Amélia Moutinho. Estava atenta às asneiras que eu e as minhas irmãs fazíamos em pequenas, metia-nos respeito, mas, apesar da sua aparência austera, repreendia-nos com um coração de mãe”, recorda, hoje, a D. Maria Júlia Ranhada, a Julinha).


(Continua)

Fonte: "Termas de Melgaço: os dias saborosos de uma glória submersa", texto de Pedro Leitão, in: SIM, Revista do Minho, editado em 6 de Maio de 2013.
Artigo gentilmente enviado por pela Sra. Teresa Lobato a quem agradeço a partilha!

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