Fachada do Hotel Ranhado em 1914
A senhora condessa da Saborosa está
a sair agora mesmo do hotel Ranhada. Sobressai pelo seu cabelo branco, com carrapito
bem feito atrás e popa alta à frente, são arranjos que encaixam melhor ainda
nas suas feições muito finas, diferenciando-se, à saída, das demais senhoras da
sua condição, que lhe seguem o passo. Salta à vista que sabe zelar a linha.
Apesar de sexagenária, irradia ainda beleza e faz adivinhar que, na mocidade,
fora bem capaz de arrastar atrás de si muitos pretendentes. Cá fora, o arruado
que conduz ao balneário termal ainda se resguarda do calor arrebentadiço neste
começo de mais uma manhã estival. A fresca vem-lhe do manto sombrio destes
plátanos e destas acácias, que correm o trajeto, embelezando-o como prelúdio de
uma vida termal que se advinha intensa lá para o meio da manhã. À porta, está o
calhambeque do hotel para que estas senhoras e outros hóspedes não façam a
caminhada a pé, que é sempre coisa para um quilómetro (noutros tempos, ia-se de
charrete, o cocheiro era o senhor Rocha, que acumulava estas funções com as de
corretor do hotel, até ia à Estação de Monção esperar os hóspedes, depois
deu-lhe para ser também dono de um hotel, o Hotel Rocha, hoje devoluto).
O
senhor Mário Ranhada faz questão que embarquem todos no pequeno autocarro, mas
não há nada a fazer: todos recusam. A pé é que se vai bem, as diabetes mandam
andar. Partem assim cedo para guardar vez no balneário termal. A meio da manhã,
já bebidas as águas e tomados os banhos, a senhora Condessa de Saborosa
encontra-se no Parque das Termas com a senhora D. Amélia. Esta sua grande amiga
é esposa do professor doutor Eduardo Costa, director do Instituto Pasteur em
Lisboa, que acumula agora estas funções com as de director clínico da estância.
Andam atarefadas com a quermesse, que organizam todos os anos a favor dos
pobres das redondezas, enquanto estanciam no Peso de Melgaço. Passam estes dias
a recolher donativos e compram roupas e outras coisas necessárias. Depois da
cura do corpo, fazem a do espírito. A excelentíssima D. Amélia é uma senhora
muito alta. Quando está ao lado do marido, que é assim sobre o baixinho, vê-se
que a diferença entre ele e ela vai a modos de capela para catedral. O distinto
médico anda sempre de lacinho clássico, mesmo de bata branca nunca o tira, fica
a dar consultas até tarde, às vezes são nove da noite e ainda está a atender
aquistas. La noblesse oblige.
Por
esta manhã a meio, já outros aquistas percorrem, por mero passeio, as avantajadas
alamedas do Parque das Termas, colmadas pela abundante ramaria. O seu traço
urbanístico saiu do lápis do senhor José Ranhada, tio da Julinha, quando geriu
as termas, faz já alguns anos. Por esse tempo, o senhor José Ranhada tinha o
estranho hábito de se entrincheirar no escritório das termas, nas quentes
tardes de Verão, e, de arma de pressão apontada, mirava, de olhinho caído, toda
a truta que subisse, arteira, o regato cristalino que desce à ilharga daquele
ponto. Qual águia-real, era certeiro de visão e muito mais de mira, não
precisava de garras, nem de voos picados, a chumbada garantia-lhe boa pescaria
para a janta.
A
senhora Condessa de Saborosa será dessa época, pois há muito ano que vem aqui
às termas. Escolhe sempre o Julho ou o Agosto. São os meses melhores para
estar, em grupo, com a gente da sua posição. Nunca reserva hotel em Setembro.
Este é o mês mais procurado pelos novos-ricos, e a senhora condessa e o seu
grupo não querem misturas. Mas, se espreitarmos a bolsa duns e doutros, veremos
que uma outra D. Amélia, a senhora D. Amélia de Ascensão Moutinho, burguesa
típica do Porto, mete muita fidalguia no bolso. Ostenta joias até ao pescoço,
põe-se toda ‘um luxo’, é podre de rica, não tem descendentes, vai deixar tudo a
uma afilhada (“Boa senhora, esta D. Amélia Moutinho. Estava atenta às asneiras
que eu e as minhas irmãs fazíamos em pequenas, metia-nos respeito, mas, apesar
da sua aparência austera, repreendia-nos com um coração de mãe”, recorda, hoje,
a D. Maria Júlia Ranhada, a Julinha).
(Continua)
Fonte: "Termas de Melgaço: os dias saborosos de uma glória submersa", texto de Pedro Leitão, in: SIM, Revista do Minho, editado em 6 de Maio de 2013.
Artigo gentilmente enviado por pela Sra. Teresa Lobato a quem agradeço a partilha!
Reveja a parte 1 deste texto em http://entreominhoeaserra.blogspot.pt/2013/05/1948-um-qualquer-dia-no-hotel-ranhada.html
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