A rendição dos castelhanos
Alguns
escritores, seduzidos pela ideia de atribuir a este episódio o resultado da empresa,
outros copiando aqueles, (o que é pecha vulgar em quem não se dá grande trabalho
nas investigações) afirmam ter sido decisiva para a entrega do castelo a pugna entre
as duas mulheres. Fantasias!
A verdade
é que, se este duelo animou e excitou a coragem dos Portugueses, foi só daí a horas,
na manhã de Segunda-feira, três de Março, que a praça se rendeu pela acção dos
nossos guerreiros e poder dos engenhos. Conta-o Fernão Lopes fazendo-nos assistir
ao movimento da bastida sobre as suas rodas, avançando dezoito braças. Depois à
escalada dos que «se chegavam tanto à Villa que punham um pé no muro outro na escala»,
atirando-se, primeiro que todos, o Prior do Hospital. A peleja foi feroz. Dez homens
no mais alto estrado levavam pedras de mão que arremessavam aos de dentro, (como
agora se arremessam granadas) enquanto outros se atiravam ao muro com grossos
paus, De cima choviam pedras e fachos incendiados de mistura com imprecações e insultos
(«desmesuradas palavras») que assanhavam o animo de D. João I. Por isso, o Rei
assomado e iracundo, quando os de dentro, reconhecendo a própria inferioridade,
pediam novamente tréguas, recusou qualquer avença e resolveu continuar o assédio
à viva força. Então João Rodrigues de Sá, o das Gales, —voz sensata— alvitrou que
era de boa política aceitar
a capitulação. D. João I, brutalmente, retorquiu : — «Quem medo houver não vá na
escala». Subiu uma onda de sangue às faces do guerreiro, que tinha
ainda frescas as quinze cicatrizes de feridas, que recebera quando foi do
ataque das Galés na Ribeira de Lisboa. E resentido respondeu :
— «Eu, Senhor, não
sei se dizeis vós isso por mim, mas cuido que nunca me vós a mim por tal conhecestes».
E o
Rei, caindo em si, pois que nele estes assomos de cólera eram logo dominados pela
força calmante da razão, emendou : — «Nem eu não o digo por vós. Mas digo-o, porque
os hei já por tomados.»
Dividiam-se
ainda as opiniões. Uns queriam continuar o assalto, na esperança de farta presa.
Outros seguiam o alvitre razoável do ponderado Sá, com o qual o Rei concordou afinal,
enviando o Prior do Hospital a aceitar a preitesia e estipular as condições. Foram
todas aceites. Não só entregariam a vila
e castelo a El-Rei, mas obrigavam-se a sair da fortaleza em gibões sem outra coisa...
Assim
foi. No dia seguinte, o rapazio foi apanhar feixes de varas verdes, e cada um dos
que pela porta do castelo ia saindo era, por escárneo, obrigado a empunhar um desses
ramos. Alguns mordiam-se de raiva pela humilhação imposta.
Houve
até um escudeiro fidalgo que, fincando os joelhos em terra, pediu a El-Rei que lhe
entregasse as suas armas e lhe poupasse a desonra, ao que D. João I galhardamente
acedeu. Outros, contudo, com riso forçado, e levemente alvar,
como gracejando, tomavam o expediente «por sabor» de dizer aos garotos que lhes
davam as hastes verdes : — «Ai, rogo-te ora que me dês uma bem direita e boa».
Não ficou
nenhum ! Quando na Quinta-feira seguinte, depois de cinquenta e três dias de assalto,
o castelo e vila de Melgaço foram entregues a João Rodrigues de Sá, para
governar. E quando El-Rei
e a Rainha retiravam festivamente com a sua comitiva em direitura a Monsão, do alto
da muralha, que olha para noroeste, um vulto de mulher (segundo reza a tradição
local), empunhando a bandeira gloriosa das quinas, agitava esse pendão
redentor. Era Inês Negra a batalhadora, imagem simbólica das energias
femininas, proclamando assim a vitória que consolidava de vez a fronteira no
extremo norte de Portugal. Se Aljubarrota tem a ilustrá-la pitorescamente Brites
de Almeida, a denodada padeira, e a sua lendária proeza, não é menos digno de registo,
no livro de ouro da epopeia joanina, entre as lutas pela independência, o feito
autêntico e mais significativo de Inês Negra a heroína de Melgaço.
CONDE DA SABUGOSA (1918) - Neves de Antanho. Edição da Livraria Bertrand, Lisboa.
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