A inscrição na muralha do castelo de Melgaço
A inscrição na muralha do castelo de Melgaço (Foto de C. H. Ivens - 1898)
Diz o
seguinte:
Em português significa:
(recorte retirado de VASCONCELOS, José Leite (1898))
Em português significa:
(recorte retirado de VASCONCELOS, José Leite (1898)
Trata-se de
uma inscrição lavrada em latim comemorativa da construção de parte da muralha
de Melgaço, gravada ao longo de três silhares da face externa do muro, à
direita da porta que facultava acesso à via que conduzia a Valadares e a
Monção.
A análise da inscrição da muralha de Melgaço foi
publicada pela primeira vez nos fins do séc. XIX por José Leite de Vasconcelos
numa versão correcta e acompanhada de magnífica gravura (VASCONCELOS J.L. 1898).
Nesta ainda é possível ver, junto do A de VILLAN, uma argola de ferro, chumbada
na parede, certamente destinada a prender animais de carga. Hoje essa argola
foi retirada, o que se traduziu na mutilação da parte terminal da penúltima
regra do letreiro, por lascagem do silhar. No entanto, a gravura publicada por
José Leite de Vasconcelos permite a leitura integral de "VILLAN",
confirmando a nossa transcrição. Alguns anos mais tarde, em 1921, a inscrição seria de novo referida, sem leitura,
no Arrolamento de monumentos do distrito de Viana do Castelo estabelecido por
Júlio de Lemos. No ano seguinte, em 1922, Francisco Marques de Sousa Viterbo
registava o nome de Fernando, mestre construtor da muralha de Melgaço, no
terceiro e último volume do seu Diccionário Histórico e Documental de
Arquitectos, Engenheiros e Construtores Portugueses, sem divulgar leitura
do letreiro e remetendo o leitor para o artigo de Leite de Vasconcelos. Alguns
anos mais tarde, Garcês Teixeira divulgou nova versão do letreiro de Melgaço,
com pequeno erro no início da última regra, onde leu "[HAC]" em vez
de IN (h)AC. Num momento de clara infelicidade, Garcês Teixeira apresentaria a
inscrição como inédita e sublinhava que Sousa Viterbo não referia o nome de
Mestre Fernando no seu Dicionário. Como já tivemos oportunidade de ver, a inscrição
já fora publicada por Leite de Vasconcelos (lapso que Garcês Teixeira ainda
teve oportunidade de corrigir, e o nome de Mestre Fernando fora referido por
Sousa Viterbo.
Em 1975 o P.e M. A.
Bernardo Pintor voltaria a publicar a inscrição da porta da Muralha de Melgaço,
apresentando lição quase correcta mas onde se devem anotar algumas
incorrecções: corrigiu para “M” todas as terminações em “N” da inscrição (um
pormenor para o qual já chamara a atenção J. Leite de Vasconcelos), suprimiu um
dos LL de CASTELLARIUS e transcreveu os numerais da Era em números árabes.
Em 1978
seria a vez de Carlos Alberto Ferreira de Almeida divulgar a sua versão da inscrição
de Melgaço, apenas incorrendo em pequeno erro na parte terminal, onde leu
"... VILLA IN / HAC PARTE", e corrigindo os NN para MM (em "COMPUSUIT",
"MURUM" e "ISTUM"). Depois de Carlos Alberto Ferreira de
Almeida, a inscrição de Melgaço não seria mais nenhuma vez publicada na sua
versão original uma vez que Matos dos Reis se limitou a transcrever a tradução
do seu conteúdo.
A inscrição da muralha de Melgaço
apresenta uma curiosa paginação, que nenhum dos autores que a ela se reportou
teve ensejo de sublinhar. Efectivamente, o primeiro silhar, uma pedra de
grandes dimensões, tem a sua superfície dividida de forma quase equitativa em
três regras, onde o texto se distribui de forma uniforme e regular. Ela revela
uma programação relativamente cuidada por parte do seu autor. No final da terceira
regra, encontramos a data - Era Ma CCCa Ia - que
parece encerrar o letreiro tal como ele foi planeado inicialmente. E,
efectivamente, as três linhas seguintes, que já não obedecem ao rigor de
paginação da primeira parte, parecem corresponder, em termos de conteúdo e
redacção, a um acrescento ao texto original, feito em momento posterior. No
entanto, devemos sublinhar que, paleograficamente, o letreiro foi feito pelo
mesmo autor ou lapicida, quer na "primeira" quer na
"segunda" parte. Os dois momentos teriam sido, portanto, muito pouco
afastados entre si, talvez quase consecutivos. Poderemos, portanto, estar
perante uma inscrição que foi gravada em versão curta (até à indicação da Era)
e que depois foi completada com o restante texto. Os motivos que estiveram,
eventualmente, por detrás dessa circunstância poderiam ter a ver com a vontade
pessoal de Martinho Gonçalves, Casteleiro do monarca em Melgaço, de ter o seu
nome perpetuado junto do muro da vila. Ou, como veremos de seguida, talvez pela
necessidade de esclarecer que a iniciativa régia apenas se circunscrevera a
essa porção do muro, e não se estendera à sua totalidade.
Melgaço
recebeu Carta de Foral das mãos de D. Afonso Henriques em 21 de Julho de
[1183], um diploma que seria confirmado por D. Afonso II em 1219. Este diploma
seria substituído em 1258 por nova Carta de Foral, outorgada por D. Afonso III
a 29 de Abril desse ano. No entanto, e perante a resistência oferecida pelos
habitantes de Melgaço, o novo diploma seria suspenso e o primeiro de novo restaurado
em 1261.
O início da construção da muralha de
Melgaço remonta, pelo menos, aos tempos de D. Sancho II. A necessidade de dotar
a povoação de um sistema defensivo eficaz foi sublinhada pelos eventos que, no
quadro da contenda entre D. Afonso II e as Infantas suas irmãs, conduziram à
invasão do Norte de Portugal pelas forças leonesas, em 1211-1212, altura em que
Melgaço foi tomada. Não admira, portanto, que no reinado de D. Sancho II, a
construção de uma muralha em Melgaço estivesse na ordem do dia. E,
efectivamente, em Fevereiro de 1245 o Mosteiro de Fiães comprometeu-se a
comparticipar na empresa com a construção de 18 braças de muro na zona onde se
encontrava a adega, incluindo-se nessa extensão uma torre. Este documento não
pode deixar de ser equacionado com os conturbados tempos que o país atravessava
e que culminariam em verdadeira Guerra Civil a partir dos meados desse ano,
levando D. Afonso III ao poder. O diploma revela-nos que em 1245 o muro já
estaria em construção e ajuda-nos, também, a compreender melhor as
circunstâncias que ditaram que, na nossa inscrição o lapicida se preocupasse em
assinalar que Martinho Gonçalves circundara a vila nessa parte (CIRCUNDAVIT
HANC VILLAN IN (h)AC PARTE). É que nem todas as partes do muro foram
construídas por responsabilidade do concelho e erguidas no tempo de D. Afonso
III. Havia, por certo, porções que tinham sido construídas por outras entidades
e nos fins do reinado de D. Sancho II.
E como no diploma de Fevereiro de
1245 o Abade e Mosteiro de Fiães se comprometiam a reparar, sempre que fosse
necessário, a porção de muro que iriam erguer, convinha esclarecer
definitivamente que a iniciativa do monarca e do Casteleiro se devia
circunscrever a essa parte e não alargar a toda a extensão do muro defensivo da
vila. E que se a inscrição declarasse que a muralha fora erguida na sua
totalidade por D. Afonso III, o Mosteiro de Fiães poderia sempre alegar, em
futuros momentos, que não tinha responsabilidade sobre a sua construção e,
logo, sobre a sua reparação.
Mas, por outro lado, a inscrição da
muralha de Melgaço não pode deixar de ser equacionada no contexto de um esforço
régio de dotar o país de uma defesa mais eficaz junto da fronteira terrestre e
fluvial com o vizinho reino de Leão e Castela, e no qual se devem incluir as
inscrições de Caminha (de 1260), de Estremoz (de 1261) e de Castro Marim (de
1274), para apenas focar as que foram devidas à iniciativa de D. Afonso III ou
cuja conclusão foi incrementada pelo monarca.
Nota: Na inscrição, o ano de 1301 corresponde ao ano de 1263, devido à passagem da era de César para a era cristã para efeitos de contagem dos anos. Até então os anos contavam-se a partir do nascimento do imperador romano Caio Júlio César Augusto (38 a C.). A partir de 1422 (ano de 1460 da era de César), por iniciativa do rei D. João I, a referência para a contagem dos anos passa a ser o nascimento de Jesus Cristo. Daí a diferença de 38 anos.
Nota: Na inscrição, o ano de 1301 corresponde ao ano de 1263, devido à passagem da era de César para a era cristã para efeitos de contagem dos anos. Até então os anos contavam-se a partir do nascimento do imperador romano Caio Júlio César Augusto (38 a C.). A partir de 1422 (ano de 1460 da era de César), por iniciativa do rei D. João I, a referência para a contagem dos anos passa a ser o nascimento de Jesus Cristo. Daí a diferença de 38 anos.
Informações extraídas de:
- BARROCA, Mário Jorge (2000) - Epigrafia Medieval Portuguesa - (862-1422), vol. II, CORPUS EPIGRAFICO MEDIEVAL PORTUGUÊS. Fundação Calouste Gulbenkian, Fundação para a Ciência e a Tecnologia, Porto.
- VASCONCELOS, José Leite (1898) - Inscrição latina de Melgaço do século XIII. Revista "O Archeologo Português".
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