Aveleira
Na sala grande,
frente ao televisor, uma senhora idosa estava sentada no cadeirão de couro
castanho a condizer com a restante mobília. Ao fundo, no fogão de sala,
amorrinhavam algumas brasas.
Cabelos brancos, um rosto enrugado onde
sobressaíam os olhos negros, com mais vida que o corpo alquebrado. Fez um
esforço e ergueu-se apoiada na bengala. Fomos ao seu encontro, instalamo-nos no
sofá à sua direita. O Esteves quis oferecer-nos os aperitivos que recusamos.
Estava mais interessado em ouvir a anciã e a Paula ainda estava mais curiosa
que eu.
- Então foram vocês que encontraram o
esqueleto lá em cima?
- Lá em cima? – Perguntei.
- Sim, na Branda da Aveleira.
- Ah!… Sim, fomos nós.
- Ó Mingos, vai-te lá embora, que tenho
que falar com estes senhores.
- Mas avó, não vê…
- Nem mas, nem meio mas… Quando acabar,
eu chamo-te. E não te esqueças de dizer à tua mulher para pôr mais dois pratos.
Obedientemente o Esteves saiu e fechou
a porta atrás de si. Notava-se que a velhota tinha uma personalidade forte,
apesar da idade e que sabia muito bem impor a sua vontade. Encarou-nos com um
olhar tão agudo que me incomodou e começou a falar.
- Quero que me prometam nunca dizer a
ninguém aquilo que vos vou contar. Mas a ninguém mesmo, compreendem?
- Sim…
- Então prometam!
- Ok, prometemos…
- A senhora também – diz a velhota,
olhando a Paula.
- Prometo, mas porque é que nos quer
contar não sabemos o quê, se nem nos conhece e nem quer que o seu neto escute?
- Já vos explico tudo, – inclinou-se
para a frente, as mãos apoiadas na bengala, a voz mais baixa meio-tom – eu não
sou desta terra, mas de uma freguesia perto da raia. Vim para cá depois de
casar com o meu Afonso, que Deus tenha… - fez um silêncio significativo em sua
memória e prosseguiu – Mas não é disso que vos quero falar. Eu sou de uma
aldeia lá mais para riba, perto de Espanha e antigamente nós só sobrevivíamos
com a ajuda do contrabando. A terra pouco dava, é como hoje, e a carregar umas
coisinhas para lá e para cá, amanhávamos mais uns tostões. Era uma vida
miserável, meus filhos! Na aldeia havia um grupo de homens que carregavam os
burros e as mulas com o que os verdadeiros contrabandistas queriam, lá iam eles
por aqueles montes acima, sempre com medo dos carabineiros espanhóis que eram
uns malandros. Os nossos eram melhores, bastava dar-lhes qualquer coisa e
fechavam os olhos, coitados, também passavam mal só com o soldo da Guarda. Mas
havia um deles, o comandante que era um filho da puta, com a vossa licença e
que muito nos apoquentou. Levou preso o meu irmão que era o que dava as ordens
aos outros homens. Ainda esteve em Melgaço algumas semanas, já não sei quantas,
a passar fome e a levar porrada para falar. Esse Guarda, um tenente, fez-nos a
vida negra durante meses e meses, embirrou com a nossa aldeia e com os de
Castro Laboreiro onde uma noite a Guarda, por ordem dele, matou dois homens a
tiro. Um dia disse para o Alípio, o meu irmão, que tínhamos de apanhar esse
cachorro do tenente. Ao princípio ele recusou com medo, mas levei a minha
avante e preparamos-lhe uma armadilha. Ninguém mais sabia o que preparávamos,
só eu e ele. Conseguimos que o tenente viesse sozinho aqui à Gave, eu levei-o
por um carreiro e o Alípio abateu-o com uma cachaporra na cabeça. Morreu ali
mesmo e nem lhe valeu ter a pistola na mão. Levamo-lo para a Branda e
enterramo-lo ainda durante a noite. Por cautela, matamos a mula que o carregou
e deixamo-la a apodrecer por cima da tumba do tenente. Assim, o mau cheiro
afastava qualquer um que ali passasse. Logo que acabamos de o enterrar,
metemo-nos a caminho para a Espanha pelos caminhos mais difíceis e depois de
muitos sacrifícios chegamos a França, onde vivemos mais de trinta anos. Durante
mais de uma semana andaram à procura do tenente, mas não encontraram rasto
dele. Um dia encontraram o boné e o casaco da sua farda perto de Ourense, fomos
nós que a levamos para lá, deixando-a onde era fácil encontrá-la. Só para
desviar as suspeitas e eles pensarem que o tenente tinha sido levado para Espanha.
Deu resultado porque deixaram de o procurar deste lado. Quando cheguei a França
comecei logo a trabalhar, a fazer limpezas e a ajudar no mercado, ainda de
madrugada, mas acabei por abortar. Foi quando conheci o meu Afonso, que
trabalhava nas obras do hospital e ia visitar-me sempre que podia. Estive muito
mal, quase três meses sem me poder mexer.
- Espere aí! Então abortou mal chegou a
França e só depois é que conheceu aquele que iria ser o seu marido? Foi
assim?...
- Foi...
- Então quem era o pai? Hum...
Desculpe, se calhar não devia ter perguntado...
- Não faz mal, meus filhos. Já passou
tanto tempo e eu prefiro contar-vos a verdade que levá-la comigo para o além. O
pai era esse filho da puta do tenente, com a vossa licença. Foi ele que me fez
o filho e depois negou-o. Assinou a sentença no dia em que se riu na minha cara
a dizer-me que não me conhecia de banda nenhuma, a mim, que me entreguei a ele
apenas para não voltar a prender o nosso Alípio. Ahhh... mas pagou-as! Só tive
medo que ele reconhecesse a minha voz quando o fui chamar, apesar de a ter
disfarçado. Estão a ver, se ele me reconhecesse ia o plano por água abaixo, mas
tudo correu bem. A história acaba aqui, senhores. O meu irmão já morreu há doze
anos e quando se estava a finar, obrigou-me a prometer-lhe que se um dia o
cadáver fosse descoberto eu devia contar a verdade a alguém.
- E porque é que nos escolheu Dona… nem
sabemos como se chama?
- Chamo-me Maria Rita e escolhi-os
porque foram vocês que o descobriram e porque queria conhecê-los.
- Mas nós podíamos agora ir contar tudo
à polícia.
- Ora, uma promessa é para se cumprir…
e vocês prometeram!
Fim
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Fonte: Este interessante texto foi publicado no blogue "Vila Praia de Âncora" em http://vilapraiadeancora.blogs.sapo.pt. Não resisti a partilhá-lo com vocês!
Autor do texto: Brito Ribeiro.
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