O rio Trancoso, à sua passagem por Cevide (Foto de Marco Caldas) |
Na edição deste mês de “A Voz de
Melgaço”, é feita referência a um conto intitulado “Lugar de Culto” da autoria de
António Pacheco Costa, com a pequena aldeia de Cevide (Cristóval – Melgaço) no
centro de uma bonita história. No conto, o autor parece querer misturar
ficção com uma verdade oculta em estórias dum tempo
passado desta bonita aldeia, Cevide. Vale a pena ler o conto! Tomei a
liberdade de o partilhar no blogue!
Lugar
de culto
“Houve
em tempos numa aldeia, na pequeníssima aldeia de Cevide, ponto mais
setentrional de Portugal, um bar, também ele pequeníssimo. Mal abriu, logo
declarou insolvência. Destarte, inaugurando-se às vinte e uma horas em ponto de
uma quarta-feira e fechando as portas a título definitivo na quinta-feira que
imediatamente se lhe seguiu à mesma hora, esse bar, como o leitor já se terá
apercebido, apenas esteve aberto ao público durante um dia – o que em matéria
de estabelecimentos nocturnos será o mesmo que dizer, uma noite. Tinha o
elucidativo nome de Finisterra e era um negócio, desde o seu
nascimento, condenado à ruína. O primeiro problema, e porventura o principal,
residia no cardápio. Tratava-se de um pesado volume de pele preta apenas
comparado a uma lista telefónica, em tamanho. No frontispício cintilava um
monograma gótico – FT – gravado a folha de ouro , e nas entranhas, com um
cuidado gráfico que deixaria lacrimejantes de orgulho os olhos de Gutenberg,
como formigas espalmadas, um índice de todas as bebidas do mundo em papel de
bíblia. Sejamos justos: preços, havia-os para todos os bolsos – desde uma
aguardente de medronho, com o valor simbólico de 1 cêntimo por copo comercializada
por um lavrador de Vinhais, até uma garrafa de Chateaux Lafite, envasilhada em
1847, subtraída da adega privada de um coleccionador de vinhos de Hong Kong e
assinalada com o preço da última licitação feita em leilão, passando por uma
cerveja conventual belga produzida por frades católicos que a confeccionavam
seguindo uma receita secular, para a vender ao portão do mosteiro onde viviam
numa embriaguez eterna.
O estabelecimento propriamente dito era,
de facto, mais antigo que Cevide. A entrada fazia-se por uma porta vassala que
servia um casario de dois pisos caiado de branco, de janelas empedradas na
fachada, viradas para a rua, e telhas portuguesas enegrecidas pelo sol e pela
acidez das chuvas – enegrecidas, enfim, pelo tempo, na sua dúplice acepção:
climatérica e cronológica. Mas na vez desse acesso servil se abrir, como seria
de esperar, para uma cozinha de casa fidalga, ampla e alta, de tachos
poeirentos ao dependuro, a abanar a heráldica de uma Casa extinta ante um forno
de lenha com espaço de sobra para acomodar, de pé, um cabrito, precipitava-se,
não sem perigo, para uma escarpa de degraus assimétricos de granito que
exalavam um odor bafiento a humidade e a passado, descendo muito, num
estreitamento espiral de convento manuelino, até se aliviarem numa pequena
salinha: o bar, strito sensu. Espante-se o leitor, tratava-se de
uma antiquíssima igreja visigótica subterrânea, despojada de símbolos, datada
do tempo em que esse povo germânico se convertera ao cristianismo, por sua vez
erigida, numa sobreposição de cultos – fisica e ideológica – sobre as ruínas de
um templo romano dedicado a Mercúrio.
A informação que se detém sobre esta
catacumba não é fidedigna, já que a fonte de que dispusemos é um documento
nebuloso, uma «História de Cevide» publicada em parcelas num jornal minhoto,
escrita por um historiador autóctone que, apesar de alguns vícios académicos,
demonstra todo o seu amadorismo na hora de preferir lendas na vez de factos.
Espremendo o essencial, e omitindo todas as suas referências a demasiados reis
de Portugal, que é sempre um recurso fácil para agigantar um povoado, a
«História de Cevide» diz-nos que para além da justaposição dos templos,
atestados com recurso à arqueologia, é sabido que o seu acesso primitivo se
fazia por uma porta anã, dissimulada num suposto estábulo. Daqui, deduz-se uma
intenção de segredo, apesar de se ignorar, ao contrário do que nos faz crer o
documento, os motivos do sigilo. Também desconhecemos em que circunstâncias se
ergueu o casario sobre as ruínas do suposto estábulo, apesar de sabermos que a
obra ficou concluída no ano de 1839, data essa que ainda hoje se pode ver
gravada na pedra, sobre a porta principal. O primeiro registo concreto data da
II Guerra Mundial, onde serviu de abrigo subterrâneo a um grupo de judeus
italianos naturais de Treviso, antes de embarcarem num paquete com
destino à América, revelação inédita feita nestas linhas. Esta função, de
esconderijo, terá estimulado a imaginação dos contrabadistas de Cevide – local
que pela sua geografia fronteiriça, separado de Espanha por um rio de curto
caudal, fizera parte da rota do contrabando durante as ditaduras ibéricas –,
servindo de arrecadação a muitos víveres até ao alvorecer democrático da
Península.
Entre esse tempo e o nosso, este lugar
acumulou camadas de pó e de esquecimento, umas por cima das outras, numa
escuridão pululada por morcegos e ratos, até que uma mão, de supino génio,
habituada a reabilitações e lides quejandas e evidentemente conhecedora da
importância de um património preservado com a mais alta estima, o converteu num
elegante abrigo de noctâmbulos. O soalho e a mobília de nogueira escura
providenciavam o achonchego vedado às paredes graníticas e o balcão, peça
única, minimalíssima, de aço inoxidável, lembrava um altar dedicado à veneração
de deuses concepturos – um arrojo audaz de futuro na antiguidade tumular da
atmosfera. Atrás dele, um espelho que cobria não apenas toda a parede, como
também o tecto, arquitectava uma grandeza ilusória que duplicava tudo: no lugar
de quatro mesas vazias havia oito, no lugar de dezasseis cadeiras trinta e
duas, e no lugar de um bartender, dois, que eram em tudo iguais
para quem os visse de cá, mas que se distinguiam pelo facto de um ser fronteiro
de cara e corpo, e outro traseiro, de nuca e rabo. Sobre este sujeito há pouco
a dizer: para lá da alva camisa sem gomos, colete e laço preto, como manda a
lei, e dos olhos lúcidos que pareciam encerrar os equilíbrios do Universo, nada
mais havia nele que fosse digno de menção – tão grande era o seu sentido de
discrição que nem se reparava que existia.
Um bar que apenas está aberto durante
vinte e quatro horas não pode conhecer as mais-valias da restauração em geral –
entre as quais se destaca, como benefício supremo, a reputação – mas
desengane-se aquele que estiver a pensar que este bar, tão generosamente
abastecido, não conheceu clientela durante a sua efémera vida. Com efeito, o
seu primeiro cliente fez-se chegar com uma pontualidade britânica às vinte e
uma horas e um minuto daquela quarta-feira inaugural e, à falta de melhor
informação, chamar-lhe-emos Freguês Primeiro. Quando este abriu a porta do Finisterra ouviu
música abafada, como vozes distantes, e foi com agrado que, à medida que descia
o caracol de pedra das escadas, reconheceu a big band de Charles
Mingus conjurando santos negros e senhoras de pecado. Era jazz, era
um bom presságio. Um bar, tal como uma pessoa, diz muito sobre si através da
música que elege. Pediu um gin-tónico em copo de long drink, já
que considerava efeminado o hábito recente de se servir gins em copos de balão,
e sentou-se a um canto, bebericando-o, e depois outro, e já ele ia a meio do
terceiro copo quando, às vinte e duas horas e dezoito minutos se ouviu
reverberar nas escadas os passos periclitantes do segundo cliente – que foi, em
simultâneo, o último –, e que por razões óbvias de coerência baptizá-lo-emos de
Freguês Segundo. Este, por sua vez, pediu um copo de água da torneira, bebida
que constava na lista com essa mesma designação singela, e sentou-se no outro
canto.
O ser humano é um mamífero com muitas
lacunas. Desde logo, não é anfíbio, o que num planeta com mais água que terra
só pode constituir uma desvantagem; também não tem asas, o que num planeta com
continentes separados por oceanos não deixaria de ser um apanágio. Mas se há
algo que não se pode dizer sobre a raça humana é que é uma espécie uniforme, na
acepção darwinista do termo. Estes dois fregueses, o Primeiro e o Segundo, eram
um exemplo de como o Homem, por se servir de algoritmos genéticos tão diversos,
pode chegar a parecer dois animais distintos: o Freguês Primeiro era um sujeito
elegante, moreno, esticado e seco de carnes; os seus olhos capciosos chamejavam
num constante luzir vulcânico que lhe alumiava o sorriso giocôndico, sempre
esquecido nos lábios finos. Vestia a última moda, mas não seria honesto
rotulá-lo de andrajoso. Não. É verdade que o português comum não se arriscaria
a passear na via pública com aqueles sapatos de camurça azul, aquelas calças de
sarja castanha descendo a perna fina como um funil, aquela camisa de linho
vermelho-sangue pontilhada por um padrão infinito de cornucópias minúsculas,
nem tão pouco aqueles anéis dourados que lhe ornamentavam as mãos musicais, de
pianista – curiosos adereços,
diga-se, para quem rejeitou de modo tão assertivo
um copo de balão por razões de virilidade. Mas também é verdade que esse mesmo
homem comum, que reprovaria, peremptório, a sua extravagância de Dalí, seria o
mesmo que não deixaria de admirar o seu queixo imperial levantado ao alto, ou o
seu nariz aristocrático, ou o seu jeito de cruzar a perna esquerda,
engavetando-a completamente na direita que marcava o compasso quatrenário que
Dannie Richmond produzia no bombo e na tarola...Exclamando, de si para consigo
– «Que dândi!».
Ao lado dele, o Freguês Segundo, coitado,
parecia um farrapo: mais baixo que alto, tinha as costas encurvadas sobre um
corpo de uma flacidez adiposa que a gravidade puxava sem piedade para o
hipocentro da Terra. Os seus sapatos quadriformes estavam tão gastos como as
mãos pálidas e langorosas, de unhas roídas, encafuadas numa camisola de lã
muito grossa, pautada de bolas gordas de borboto que se lhe agarravam como
aqueles peixinhos pegadores que nadam na sombra dos tubarões. A careca sebosa
emoldurada por dois tufos de cabelo grisalho nas têmporas, mais brancos que
pretos, lembrava um ovo pré-histórico e o rosto convexo de ratazana a converger
no lábio inferior ao dependuro, abanando-se como um pêndulo na boca sempre
aberta, tanto sugeria uma renite crónica como um indício de diminuição mental,
de bebé envelhecido; mas os olhos muito vivos, de um azul oceânico que evocava
marés, encerravam com toda a certeza muita inteligência em estado bruto. Fumava
tabaco de onça e, com uma paciência de Jó e um sossego infantil, embrulhava um
cigarro sem rugas, para gáudio do Freguês Primeiro que o observava
divertidíssimo do outro canto da sala, esperando pelo fim da liturgia, coroada
por um prazeroso influxo de fumo a flutuar no ar como um pedaço de alma, para o
interpelar. Atravessou a sala, e com uns trejeitos diplomáticos, mantendo uma
distância respeitosa, encetou conversa de copo na mão.
– O senhor e eu pertencemos à mesma
espécie de homens – disse.
– A saber? – murmurou o outro, curvado.
– Os misantropos – respondeu o Freguês
Primeiro, sorrindo fascinado, como se o evento mais sedutor da vida de um
misantropo fosse o paradoxo de encontrar um semelhante.
O Freguês Segundo anuiu, pensativo,
reflectindo mais do que concordando.
– Importa-se que me sente? – prosseguiu o
primeiro, apontando o queixo a uma cadeira vazia.
O Freguês Segundo consentiu
silenciosamente, fechando as pálpebras e abrindo-as com gravidade enquanto, de
cotovelo na mesa, segurava o cigarro recém-aceso entre os dedos em V.
– Um brinde aos lobos solitários – retomou
com grande pompa, elevando o gin – seres errantes num mundo que só tem olhos
para alcateias.
– Um brinde – disse o Freguês Segundo,
replicando o gesto com menos convicção.
– O mundo, de facto, ainda não atingiu o
grau de esclarecimento necessário para apreciar devidamente as qualidades dos
homens sós, o senhor não acha? Não sei se concorda comigo, mas a maioria deles
é provido de maiores aptidões sociais que o mais sociável dos indivíduos. Uma
vez encontrei um eremita, dos poucos que ainda persistem na Terra, e qual não
foi a minha surpresa quando reconheci nele as mais finas capacidades de
conversação que alguma vez apalpei: era intransigentemente surdo quando falava
e mudo quando ouvia. Já alguma vez se cruzou com algum?
– Algum eremita?
– Sim.
– Uma vez, há muitos anos. Era um abade
muito velho, o último de um mosteiro, que quando ficou só, quando todos
pereceram antes dele, escolheu ficar lá abandonado, comendo o pouco que
plantava numa horta e rezando muito.
– Espere – interrompeu o Freguês Primeiro
– penso não haver dúvidas que esse dito abade era de facto um ser solitário,
mas não será correcto apelidá-lo de eremita. Se bem percebi o caso, o sujeito
não optou por viver à margem da sociedade, antes se resignara a levar a vida de
clausura e penitência que sempre conhecera, com o agravo da solidão. Não
poderemos considerá-lo, portanto, o
arquétipo do eremita escolástico, sob a pena de nos vermos obrigados a alargar
o conceito até ao ponto de o deturparmos por inteiro.
– Talvez tenha razão... quando o pobre
velho me viu, na vez de me oferecer o seu repúdio, como seria de supôr de um
eremita, chegou até a emocionar-se de alegria, mostrando um genuíno sorriso de
gengivas. Aquele sorrir nunca me abandonou. Tinha tanto de franco como de
horripilante, queratinoso, de cetáceo, de baleia.
– Ah...a fealdade! Detesta-a? – volveu o
Freguês Primeiro, curioso.
– Do fundo do meu âmago, com amargura o
confesso.
O Freguês Primeiro voltou a mostrar o seu
sorriso capcioso, levantando os anéis ao balcão e guinchando estridentemente
«Mais um!», incapaz de dissimular a excitação de se encontrar numa conversa
estimulante.
– Cá eu sou um apreciador da fealdade, sem
remorsos. – sublinhou. – Considero-a nutrida de beleza: a beleza decadente que
têm as coisas tristes, que é, por vezes, quase artística. Por exemplo, a
guerra. É tão linda, não acha? Não? Por mais que o senhor me reprove, o Cinema,
a Literatura e a Pintura parecem concordar comigo, de tantas vezes se lhe terem
apropriado da poesia. É o impulso mais natural, mais primário, mais animal que
o homem pode ter. É uma necessidade que o espírito lhe pede, uma consequência
legítima da vida em grupo – desconfio que nunca um eremita tenha começado um
conflito armado – mas nos dias que correm já não se faz guerra como soía. Esteve
cá desde o princípio e estará cá até ao grande final que, com toda a
probabilidade, será por ela desencadeado, mas guerrear é cada vez mais difícil,
fala-se muito em balas de canhão, mas cheira-se pouca pólvora. Ladra-se muito,
morde-se pouco. Empurram-se uns países raquíticos para conflitos miseráveis de
paus e pedras enquanto as grandes potências bélicas se sentam em secretárias.
Secretárias! Pudera...Já viu as resmas de convenções e tratados internacionais
que a regulam, ou antes, que a tentam regular? Que ilusão! Como se ela fosse
possível de ser administrada pelas altas instâncias como uma empresa
multinacional. Hoje, para se começar uma guerra, quase que se tem de abrir um
processo!
– Mas como é que o senhor pode dizer que a
guerra é um instinto primário do homem? – perguntou o outro, incomodado.
– Meu caro, se fizermos um périplo pelo
reino animal, termo com que o homem se distancia da restante fauna por se
julgar mais do que aquilo que é, veremos que todas as espécies – os cães, os
gatos, os macacos, as girafas, só para citar mamíferos – fazem guerra, por
território, por fêmeas, e etecetera, que o que não falta são motivos. E, se
depois do safari, entrarmos num jardim de infância à hora do recreio, esses
orfanatos interinos onde os progenitores abandonam as suas crias durante o dia
para as poderem alimentar à noite, encontraremos pequenos guerreiros, aqui e
ali, gladiando-se sem razões num alvorecer ternurento de guerra sem motivos. A
guerra faz parte do jogo, porque não amá-la? O que seria de mim se não pudesse
voltar à Ilíada, e o que seria da Ilíada se Páris não tivesse raptado Helena –
aqui entre nós, mulher pouco séria – despertando a cólera do seu marido
Menelau? Eu respondo-lhe: um forte soporífero em verso, capaz de provocar
bocejos ao mais voraz dos leitores, sobre os longos gemidos de um jovem
príncipe troiano, suspirando de angústia no seu palácio por um
amor proibido.
– Se calhar o senhor precisa de se dedicar
a leituras mais fleumáticas – respondeu o Freguês Segundo, notoriamente perturbado,
e numa tentativa de saltar de tema –, se gosta de clássicos...
– Não me vai recomendar a sacrossanta
leitura da Bíblia Sagrada, pois não? – interrompeu o Freguês Primeiro.
– Não ia, mas posso...
– Pode? Meu caro, meu caro amigo! Haverá
livro mais sanguinário? Abre-se com a mais clássica forma de conflito bélico –
o conjugal –, segue-se-lhe um fratricídio, que é outra das
maneiras intemporais de guerrear – a testamentária. Depois, a lista é
longa: os sumérios à pancada com os acádios, os assírios com os babilónicos,
para não falar nos genocídios!
– Mas há um outro lado, uma outra leitura
– respondeu o Freguês Segundo, pedagogicamente.
– Mas é claro que há, meu caro. Faço minha
uma máxima axiomática de parca erudição: paz não existe sem guerra. E como uma
não existe sem a outra, e como existirá sempre uma coisa ou a outra, numa
alternância fatal, as duas existirão, sempre – assegurou, dando um longo gole
no gin-tónico, e reparando que não estava a ser conveniente lançou uma pergunta
jocosa para a qual já conhecia a resposta para arrefecer os ânimos: – Já agora,
diga-me, quem é que escreveu a Bíblia? Sabe? É que o autor esqueceu-se de
assinar a obra, e o Livro dos Números era digno de ser pelo menos rubricado,
nem que fosse com um pseudónimo.
O Freguês Segundo riu, aceitando as
tréguas.
– Decerto um homem que não viveu para
gozar os rendimentos da autoria – respondeu.
Enquanto o Freguês Segundo se recompunha
de uma gargalhada sonora, a big band de Charles Mingus guardou
os instrumentos nas caixas e deu o lugar do leme ao “Love Supreme” de John
Coltrane. Ambos se encolheram para receber, como uma hóstia, a apoteose do seu
saxofone tenor e o Freguês Primeiro aproveitou a pausa para esvaziar o remanescente
de gin e gelo derretido que lhe boiava no copo. Pediu mais um, agora só com um
gesto dilatório por respeito à Arte, e reparou que o Freguês Segundo ainda
tinha o copo de água da torneira mais cheio que vazio. «Tamanha penitência»,
pensou, tremendo de repulsa, «e ainda para mais, do cano!», mas não disse nada,
pois se havia algo que ele nunca fizera em vida fora impingir os seus maus
hábitos aos outros.
Quando o Freguês Primeiro ergueu os anéis
a pedir outra bebida, assomou-se no juízo do Freguês Segundo um forte querer
que o fez encarar seu bento copo de água com desdém, como se este fosse o
último líquido capaz de lhe atender a sede. Questionou a sua própria
abstinência. Teve vontade de abrir a pesada lista e procurar uma bebida
exótica, mas controlou-se para não renunciar, assim tão sem luta, aos rigores
rochosos que a sua consciência lhe impunha.
– Em que pensa? – inquiriu o Freguês
Primeiro de boa-fé, ignorando o acaso.
– Na vida – respondeu o Freguês Segundo,
como se largasse os olhos da popa de um grande veleiro à bolina, o que em todo
o caso, não deixava de ser verdade.
– A vida; convenhamos, é uma palavra com
pernas muito compridas... – volveu o outro, divertido, à laia de desafio.
– Será...pelo menos compridas o quanto
baste para ser difícil vestir-lhe um propósito que não lhe fique pelos
tornozelos. A cada segundo me pergunto: haverá sequer um propósito, uma
finalidade em tudo isto?
– E a que conclusões chega?
– Conclusões? A nenhuma. Sou como aquele
maratonista que, cruzando a meta, logo ouve um disparo a assinalar que na vez
de alcançar a linha de chegada se encontra na partida de uma nova corrida, e
depois outra, e assim sucessivamente, como dois espelhos que se enxergam num
reflectir infinito.
O Freguês Primeiro passou-lhe o nariz
pelas palavras e sentiu nelas, ou antes, nos espaços que as intervalavam, o
cheiro derrotista do desespero, e ficou calado, só a cheirá-lo, pois o mesmo
motivo que o levava a não impor os seus maus hábitos aos outros era o mesmo que
o impedia de emprestar a sua serenidade de alma a intelectos desassossegados.
Ainda assim, fingiu um semblante grave, verdadeiramente filosófico, como se
cogitasse sobre a alegoria labiríntica do marotonista com uma absorção
matemática.
– O senhor tem família? – perguntou-lhe o
Freguês Segundo, sentindo que caía nele o ónus de anular o silêncio.
– Só enteados, para quem não constituo uma
figura paternal, saliente-se – respondeu o Freguês Primeiro, resignado.
– Pois eu tenho muitos filhos, muitos. Eu
já trouxe tanta gente ao mundo que não posso senão ser considerado um
patriarca, na acepção tradicional do termo, e quando se é um patriarca é
legítimo esperar a colheita de muitos frutos. Mas sou-lhes um parente muito
distante, a todos eles, demasiado distante para me ser razoável a espera de
emolumentos. Eles amam-me – todos me amam – mas, coitados!, o amor deles
esgota-se no modo reverente com que se me referem...essa espécie de honrarias
estéreis que as famílias sem brilho prestam a antepassados ilustres. Sabe do
que falo? Ouça, uma vez cruzei-me com um sujeito numa praça pitoresca, virada
para um rio e ademais muito portuguesa, e o sujeito, antes de falar, levantou o
dedo hirto para a varanda sem janelas de um edíficio devoluto, decrépito, mas muito
augusto, com ares de Câmara Municipal, onde se adivinhava um passado dourado a
transbordar burguesia pelas chaminés, um porteiro diligente à porta, lajes de
mármore cheirando a lavado, rodapés ornamentados com madeiras exóticas, talvez
até um fresco no tecto da sala grande mostrando uma paisagem celeste com anjos
de cabelos louros dedilhando arpas...e o homem, que se tinha esquecido de
baixar o dedo, com olhos de estátua – como se vislumbrasse, numa admiração
interior, esse porteiro, esses mármores, essas madeiras, esses anjos – e uma
vaidade faustosa no falar, esclareceu-me «Ali, era o consultório do meu pai».
Pensei, Puxa! Noblesse oblige. E admirando o imóvel com regalo – um
consultório à antiga, do tempo em que a medicina era uma profissão liberal –
reparei nas suas mãos negras como raízes, na rebeldia dos dedos grandes dos pés
a espreitar pelos buracos dos sapatos velhos, na gabardina decomposta por
noites ao relento...Depois ouvi-o a condensar, numa diminuição breve mas clara,
a brilhante carreira que o papá tivera na oftalmolgia e na cátedra, antes de me
pedir uma moeda, porque não comia nada desde a noite anterior.
À medida que falava o Freguês Segundo, o
cheiro a desespero tornava-se mais forte nas narinas do Freguês Primeiro, e,
ainda que num falso socorro, os usos da convivência obrigaram-no a lançar uma
bóia de salvação para a tempestade atlântica daquele olhar, um pouco de humor,
bem para todos os males:
– Mas que beleza decadente tão linda! Dava
um filme! Quem é que escolhia para interpretar o papel de vagabundo? –
perguntou, com um sorriso corriqueiro.
– Meu caro – interrompeu o Freguês
Segundo, grave –, ainda não percebeu onde é que eu quero chegar. Eu sou esse
pai e esse filho, ao mesmo tempo, mas controvertidamente: em parte sou esse
pai, sem o incómodo de estar morto; em parte sou esse filho, sem a benesse de
uma esmola. E quão longa tem de ser uma vida, ou as suas pernas, para se
assumir estados de espírito tão heterogéneos! Longas demais – suspirou –,
longas demais...
Acto contínuo, voltaram a emparelhar
conversa e não deram tréguas ao silêncio, mas abordando temas mais leves, mais
quotidianos, menos metafísicos. Falaram como quem troca segredos em voz baixa e
pontuaram os discursos com aforismos que envidenciavam uma grande comunhão de ideias.
Riram muito, partilharam ansiedades, conjuraram memórias, elencaram fobias: em
suma, flanquearam-se, exposeram as fraquezas com o tipo de confissões
preliminares que atestam uma empatia imediata e costumam ser, em não raros
casos, prelúdio de amizades duradouras.
A conta ia num copo de água da torneira e
nove gin-tónicos, sem contar com aqueles três que o Freguês Primeiro consumira
de aperitivo, quando a música cessou e as luzes se acenderam, iluminando a
pedra, revelando que os pilares eram rematados por capitéis jónicos, até então
ocultos em sombras.
Quando saíram para a rua, Cevide
amanhecia. Um passáro ibérico executava um solo de bico em G menor, inspirado
pelos matizes arroxeados da manhã. Os fregueses, o Primeiro e o Segundo,
estacaram à porta do Finisterra porque iam para caminhos
opostos, e acenderam um último cigarro, adiando com bafuradas o fim inevitável
de uma noite que desejavam ser imensa, até que o Freguês Segundo, esfregando as
mãos por não ter nada melhor para fazer com elas, tomou a palavra:
– Parece que é a hora da despedida.
– Parece que sim – respondeu o outro,
conformado.
– Amanhã à mesma hora? – perguntou o
Freguês Segundo, com um sorriso que logo se desfez.
– Indubitavelmente que não! Não se
esqueceu? Somos misantropos, o senhor e eu, é essa a nossa natureza. Todas as
lutas travadas contra a natureza são lutas perdidas...
O outro, desconsolado, anuiu em silêncio –
eram-no, de facto.
– Estamos condenados a viver sozinhos, não
é? – suspirou.
– É o nosso fado. Mas, por favor, sem dramatismos
teatrais! Decerto que não ignora, tal como eu, a inutilidade das despedidas!
De súbito, o Freguês Segundo sentiu-se
duplamente só, se é que dentro da solidão cabem multiplicidades: duplamente
porque, antes de tudo mais, já o era, de antemão; e como se já não bastasse
apenas sê-lo, tinha sido abandonado. Endireitou as costas, solene, e um sopro
de vento assobiado da Galiza sacudiu-lhe as roupas e os cabelos – mas também as
folhas secas que jazem mortas, por varrer, nos claustros interiores da alma onde
os pensamentos se arrastam como serpentes na floresta – e de mão estendida,
perguntou:
– Como disse que se chamava?
– Não me cheguei a apresentar. Diabo. E o
senhor?
– Deus.”
(Conto: Lugar de Culto"; Autor: António Pacheco Costa; extraído de http://www.cim-altominho.pt/fotos/editor2/no19lugardeculto.nestorsaraiva.pdf)
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