sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Memória de uma viagem de Monção até às Termas do Peso nos anos quarenta


 

Desde finais do século XIX que as termas do Peso (Melgaço) atraiam distintas individualidades da sociedade portuguesa. Entre os ilustres frequentadores destas termas na década de quarenta do século passado, encontrava-se o Dr. Pires de Lima, que era Chefe da Clínica de Cirurgia do Hospital de Santo António e dirigiu a Escola Médico-Cirúrgica do Porto. Este distinto médico deixou-nos nos seus livros largos parágrafos de memórias das suas viagens ao Peso. No livro "A meu ver...", que o médico publicou em 1948, dedica um capítulo a descrever as paisagens que contempla na sua viagem entre a estação de comboios de Monção até às termas de Peso:

"De Monção ao Peso

Quem se dirigir, para tratamento, às Águas de Melgaço, atravessa uma das mais belas regiões de Portugal. Paisagens surpreendentes se estendem à vista dos doentes, em território da raia minhota, tão fértil em monumentos, em lugares de evocação histórica, no meio de gente rude e boa, de intensa tradição folclórica. 

O diabético sente-se bem nestes lugares, e a travessia pela bucólica estrada que vai de Monção ao Pêso já o predispõe agradavelmente para receber com êxito os misteriosos benefícios das Águas de Melgaço. 

Logo à entrada em Monção, evoca, na Praça de Deu-la-Deu, o feito duma grande heroína portuguesa. E, se acertar de passar por ali por ocasião do Corpo de Deus, terá ensejo para ver o espectáculo do combate contra a Coca, tremendo bicharoco alado, de dentes pontiagudos e língua bifurcada.  

A luta entre S Jorge e a Coca chama à Praça de Deu-la-Deu milhares de pessoas, entre as quais se contavam, antes da guerra civil de Espanha, numerosos galegos, muito devotos da imagem do gigantesco S. Cristovão, que figura na procissão do Corpo de Deus, e muitos admiradores da ferocíssima Coca, a que chegaram a dar foros de santa, bem como do boi bento e do carro das ervas que, por virtude de ordens dimanadas da Autoridade eclesiástica, fazem agora cortejo à parte.  

Saindo da vila, logo se divisam, de cá e de lá do rio Minho, sete montes, todos dedicados a Nossa Senhora, no cimo dos quais se encontram capelinhas em que a Virgem é venerada sob diversas invocações. As Senhoras são todas irmãs e vêem-se todas umas às outras, do alto de cada um dos sete outeiros, quer de Portugal, quer da Galiza.  

Faz-me recordar a lenda germânica de sete outeiros que se elevam nas margens do Reno. Quer na encosta portuguesa, quer na espanhola, ao longo das acidentadas margens do rio Minho, campos minúsculos de centeio loiro, pronto para a ceifa, de milho a tempo da primeira sacha, leirinhas de linho de um verde líquido, espessos canaviais, onde anualmente se vai buscar o frágil material com que constroem as latadas, tão baixinhas, que circundam os pequenos campos da região.  

Aqui e além, à face da estrada, afastados mais ou menos, solares abandonados, e às vezes em ruínas, atestam a antiga opulência da lavoura minhota. Entre eles, avulta o grande Palácio da Brejoeira, que não deve deixar de ser visitado por quem deambula pelo Alto Minho.  

Outros monumentos merecem ser visitados: os mosteiros de Friestas, de Paderne, e de Fiães, e ainda outros, onde os amadores de arte e arqueologia têm muito que aprender.  

Mas voltemos ao encantamento da estrada. As propriedades rústicas são divididas por esteios de granito postos ao alto, encostados uns aos outros. Jorra água por todos os lados, e a paisagem é alegrada por longínquos montes verdejantes, batidos pelo sol.  

Estamos chegados ao Rio Mouro e, de cima da ponte nova, não devemos deixar de contemplar a velha ponte romana, junto da qual, no dizer do venerando Fernão Lopes, o nosso Mestre de Avis teve a primeira entrevista com o seu futuro sogro, o Duque de Lencastre. A montante, vêem-se campos minúsculos, circundados de latadas rasteirinhas. Mas retrocedamos um pouco pelo caminho velho, na freguesia de Barbeita. Em cima de um tosco muro, encontra-se uma estatueta de granito, com um pau às costas e pintalgada de diversas cores. 

É a estátua de Pedro Macau, cuja lenda me foi assim contada: No meado do século passado, foi para a Galiza, em busca de trabalho, um pedreiro de grande habilidade, que esteve, na fronteiriça povoação de Las Nieves, ao serviço de um carabinero muito ruim, que o maltratava constanternente, e que era conhecido por Pedro Macau. O nosso pedreiro, um dia, pôde escapar-se do cativeiro que passava na Galiza e resolveu vingar-se do Macau: esculpiu em pedra a sua grotesca figura, colocou-a em cima do muro da sua propriedade e pôs-lhe por baixo o letreiro seguinte:  

Pedro Macau! 

Às costas tem um pau. 

Passam aqui muitos galegos,  

Uns de focinho branco e outros de focinho negro, 

e ninguém o tira deste degredo... 

Este letreiro já desapareceu há muito, mas toda a gente o sabe de cor. Os galegos não levaram a mal a chalaça do pedreiro. Pelo contrário, antes da guerra civil espanhola, vinham constantemente em peregrinação à estátua de Pedro Macau, pintando-a cada ano de cor diversa.  

Na minha última visita, o Pedro Macau estava adornado com ramos já secos de giestas floridas. O escultor do ruim carabinero era um pedreiro de raro mérito, que deu origem a lima dinastia de artífices, a família de nome Temprão, que ainda hoje possui a propriedade rústica onde se eleva a estátua. Na mesma propriedade, existe um formosíssimo canastro em forma de capela, que parece ter sido construído por um dos antepassados da família Temprão, talvez o próprio que esculpiu o Pedro Macau.  

Todas as casas de lavoura desta região, pequenas ou grandes, possuem um canastro, onde guar­dam as espigas de milho. Aparecem, às vezes, espigueiros muito lindos, como este, que é em forma de capela, ou como outro, que vi em Melgaço, na estrada de Roussas, lugar da Costa, freguesia de S. Paio. Este último ostenta na fachada um relógio de sol, por baixo do qual se vê a imagem radiante do astro-rei.  

Precisamente no ponto em que o concelho de Monção se continua com o de Melgaço levanta-se, à margem da estrada, como divisório, um belo cruzeiro. Conheço mais dois cruzeiros monumentais nesta região: o que fica ao lado da capela de S. Julião, na vila de Melgaço, e o que se levanta em frente da bela capelinha românica da Senhora da Orada, recentemente restaurada, que podemos admirar numa curva da encantadora estrada que vai de Melgaço para S. Gregório.  

Mas regressemos ao nosso destino e continuemos em direcção às Águas de Melgaço. Chegamos ao lugar do Peso, freguesia de Paderne, onde se encontram os hotéis. Logo a seguir, o Parque das Águas de Melgaço, coberto de centenas de frondosas tílias, cujas flores, pelo S. João, perfumam a atmosfera, e cortado de dois graciosos ribeirinhos.  

Em frente da entrada do Parque, do outro lado da estrada, numa pequena elevação do terreno, ergue-se esbelto um frondoso sobreiro, de tão elegantes ramarias, que bem merecedor é de ser catalogado, pelo Ministério da Agricultura, entre as árvores notáveis do nosso País. 

E, olhando em frente da estrada, para a esquerda, vê-se, batida pelo sol, a altaneira torre de menagem do Castelo de Melgaço, fortemente recortada num fundo glauco de pinheirais distantes.  

Ali se deu, como refere o Conde de Sabugosa, o combate singular entre a boa portuguesa Inês Negra e uma arrenegada que era por Castela. Quem tiver a felicidade de dar este passeio, mesmo sem ser diabético, convencer-se-á que muita razão tinha o Poeta, quando chamou a Portugal "Jardim da Europa à beira-mar plantado". 



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