sábado, 29 de maio de 2021

O lugar de Lobiô (Rouças - Melgaço) e a desaparecida capela de São Paio

 


Lobiô é um lugar da freguesia de Rouças situado junto ao limite administrativo com a vizinha freguesia de São Paio e relativamente próximo da cabeceira da Ribeira de São Lourenço que separa, desde tempos muito antigos, estas duas freguesias do concelho de Melgaço.  

A origem do topónimo Lobiô é germânica, sueva, muito antiga, e deriva do termo primitivo “Laubjo” que significa “alpendre” ou “alboio”, palavra antiga e em desuso para designar um coberto. Contudo, o termo citado tem um significado alternativo que é o de “emparrado de pouca altura”, segundo o Dicionário da Real Academia Galega. Posto isto, não dispomos de bases documentais para apontar com precisão a origem do topónimo devido à sua antiguidade.

Na Galiza, temos, por exemplo, Lobios, ou Lobio, que derivam da mesma raiz evolutiva. É provável que se tenha aplicado este substantivo para se referir a este lugar devido à presença de construções com alpendres ou alboios. Todavia, chama-se à atenção para o facto de o topónimo se apresentar no singular o que não será irrelevante. 

Trata-se sem dúvida de um topónimo muito antigo. Ainda que em relação a este lugar, não tenhamos menções em documentação medieval, na Galiza, em topónimos de origem similar tais como Lobios, temos referências desde o século XII. (VILLAR, 2014) 

Um pouco acima do lugar de Lobiô, até inícios do século XVIII, existia uma capela dedicada a São Paio.  Nessa época, esta ermida estava arruinada e os visitadores já tinham chamado à atenção anteriormente para o seu estado de avançada degradação.  

O ilustre e já saudoso cónego José Marques, natural da freguesia desta Rouças, num artigo escrito no jornal “Voz de Melgaço”, refere-se às últimas ruínas desta ermida que ainda chegou a contemplar, na sua infância, e fala-nos dos “restos das paredes, emergentes do solo, até à altura de uns cinquenta ou sessenta centímetros, muitas vezes vimos, quando menino e moço, com os nossos companheiros, depois das sementeiras dos campos, íamos bem cedo, por causa do calor, apascentar os gados para o monte baldio da encosta de S. Paio, cuja designação lhe adveio da presença da capela...” (MARQUES, J., 2019). Sabemos que, em 1707, a capela de São Paio já estava em ruína e por determinação do padre visitador, deveria ser reedificada junto do lugar de Lobiô, como deixou determinado o pároco de Rouças, Brás Andrade da Gama, Doutor em Direito Canónico e Civil no livro “Livro que serve para os Títulos das Sepulturas, Capellas, Altares e Irmidas desta Freguezia de Santa Marinha de Rouças”, rubricado e assinado, nos serviços arquidiocesanos de Braga, no dia 26 de outubro de 1707.  

Segundo MARQUES, J. (2018), a capela que o visitador mandou erigir junto de Lobiô, acabou por ser construída no local onde atualmente se encontra o Santuário de Santa Rita, praticamente implantada, dentro da cabeceira desta nova igreja.  

No documento do pedido de licenciamento para a construção da nova capela de São Paio em Vilela, datado de 26 de Junho de 1739, explica que a velha capela em Lobiô, estava em muito mau estado e que o caminho de acesso era muito difícil e tinha sido construído pelos moradores do lugar. No dito documento, pode ler-se: “… Diz Manuel da Cunha Lira, abade de Santa Marinha de Rouças, termo de Melgaço, comarca de Valença que havendo em a dita freguezia huma capella da invocassam de Sam Paio há tempo emmemorial sita em o lugar de Lovio que fica distante da egreja huma mea legoa e serra montuosa e caminhos empraticaveis fabricada pelos freiguezes por ser muito necessária para adeministrassam dos sacramentos para o sobredito lugar e outrossim, digo, e outro ser convizinho chamado Vilella que consta de sessenta vizinhos a sobredita  capela [em Loviô] por estar em parte desabrigada e sujeita às tempestades se foi arruinando; e vendo os Reverendos Vezitadores a grande necessidade que dela havia para os lugares sobreditos e desamparo do sítio, mandaram que os freguezes a reedificassem em milhor sítio e mais abrigado…” No documento, também se refere que a capela existia desde tempos imemoriais o que pressupõe que devia ser bastante antiga. 

MARQUES, J. (2012), acrescenta ainda que depois de “demolida a antiga capela de S. Paio, outrora, frequentada também pelas gentes de Cavaleiro-Alvo, os moradores dos seus dois lugares – o de Cá e o d’Além – construíram, a meia distância entre os dois aglomerados populacionais, a capela de S. Paio, que lá conservam, renovada e, recentemente, enriquecida com estrutura indispensável, na atualidade.  

A memória da utilização comum da antiga capela de S. Paio, demolida na sequência da referida legislação eclesiástica, deu origem a duas novas capelas a ele dedicadas: uma, em Rouças, no lugar da Eira – agora igreja de Santa Rita –, outra, comum aos dois lugares de Cavaleiro-Alvo, e, além de sobreviver no imaginário das populações dos lugares de Lobiô e de Cavaleiro-Alvo, vizinhos, mas de freguesias diferentes, traduz-se, anualmente, na gentileza dos moradores de Cavaleiro-Alvo, que levam a procissão da festa de S. Paio, realizada no primeiro domingo de Julho, até ao cruzeiro, donde se avista o lugar de Lobiô, situado na encosta fronteira, e ali aguardam, enquanto os moradores de Lobiô correspondem e agradecem a visita do Santo protector, com uma sessão de fogo, em sua honra, custeada por todos os habitantes”. 

Seguramente, o lugar de Lobiô é habitado desde tempos muito antigos. Sabemos com segurança que o povoado é, desde relativamente extenso, pelo menos desde o século XVII.  

Lobiô é referido nas Memórias Paroquiais de 1758 no rol dos lugares povoados. Podemos inclusivamente afirmar que teria dos povoados mais extensos da freguesia de Rouças, de acordo com a contagem de batismos e óbitos para os períodos analisados. Podemos ter uma ideia da dimensão do universo populacional de Lobiô ao longo dos últimos séculos na tabela seguinte: 

 


Por volta de 1885, passou no lugar de Cabana, desta mesma freguesia, o autor do célebre livro “O Minho Pittoresco”, José Augusto Vieira, deixando breve nota, na sua obra, de quando avistou este lugar de Lobiô: “Passamos em Cabana e vemos na baixa as pastagens de Lobiô, dum verde esmeralda macio e tenro.  

Estes lugares pertencem a ROUSSAS, cuja paroquial igreja nos fica à direita.” (VIEIRA, 1886). 


Fontes consultadas:

MARQUES, José (2012) – O culto de S. Paio em Portugal e em Melgaço. In: Jornal “A Voz de Melgaço; Edição de 1 de Junho de 2012.


MARQUES, José (2018) - De Rompecilha para Rouças - 1362. In: Jornal “A Voz de Melgaço; Edição de 1 de Março de 2018.


MARQUES, José (2019) – Origem da nova capela de São Paio – depois Santa Rita – em Rouças. In: Jornal “A Voz de Melgaço; Edição de 1 de Março de 2019.


VIEIRA, José Augusto (1886) - O Minho Pittoresco, Tomo I, Livraria de António Maria Pereira-Editor, Lisboa.

sexta-feira, 21 de maio de 2021

Barros Ferreira (1906-1997) - O maior escritor que Melgaço viu nascer


 

Miguel Ângelo Barros Ferreira foi um reputado jornalista, historiador e escritor que passou boa parte da sua vida no Brasil, na cidade de São Paulo onde viria a falecer. No entanto, na sua terra natal é muito pouco conhecido.

Barros Ferreira nasceu na vila de Melgaço à meia noite e meia do dia 6 de Setembro de 1906, em casa de seus pais na rua do Espírito Santo, perto da Igreja Matriz. Era filho de Miguel Augusto Ferreira, escrivão-notário em Melgaço mas natural de Monção, e de Alice da Conceição Barros Ferreira, de “serviço doméstico”, natural da freguesia da Vila de Melgaço. Era neto paterno de Justino Augusto Ferreira e Francisca Maria Teixeira de Queiróz, e neto materno de Agostinho Fernandes de Barros e Dona Filomena Rosa de Souza. Foi batizado no dia vinte do mesmo mês e ano na igreja de Santa Maria da Porta pelo presbítero Anacleto Ferreira, pároco de São Tomé de Aguiã, Arcos de Valdevez. Foram seus padrinhos José Fernandes de Barros, e Dona Júlia Ferreira dos Santos Barros, ambos negociantes. 

O sei pai, monçanense, já se encontrava a trabalhar em Melgaço, como escriturário-notário em 1884, pois o Diário do Governo n.º 231, de 10/10/1884, já o refere como 1.º escrivão do 1.º ofício em Melgaço. (…) Em 1901, 11 de Junho, no estado de viúvo, com 53 anos de idade, casou em segundas núpcias com Alice da Conceição, nascida em 1883, filha de Agostinho Fernandes de Barros, conhecido pela alcunha “O Cobra”, professor do ensino primário, e de Filomena Rosa de Sousa, residentes na sede do concelho, na Rua Direita. (ROCHA, 1997). 

O pai de Miguel Ângelo faleceu quando este ainda não tinha completado quatro anos, tendo aquele morrido em 20 de Agosto de 1910. Segundo, VAZ, J. (1996), depois do falecimento do pai, a família deixa Melgaço e parte para o Porto e nessa cidade o futuro escritor e jornalista fez os estudos de filosofia e letras. Num artigo no “Jornal de Notícias”, de 18 de Fevereiro de 1951, refere-se que “cedo começou os seus estudos e foi brilhantemente que os terminou. E como nascera no seio de uma família dispersa pelo mundo, aos 18 anos subia ele o Amazonas para conhecer o seringal pertencente a seus avós. Aos 19 anos andava pela África e aos 20 retornava no Brasil... 

No mesmo artigo, acrescenta-se que Miguel Ângelo nasceu no extremo norte de Portugal, com a Galiza defronte a sala de jantar. Sua terra é uma povoação secular, cercada de grandes muralhas, que tinham resistido a vários cercos históricos, cuja história escutava, nas noites de inverno, perto da lareira. Então latia o vento norte na chaminé, enquanto a neve caía em flocos. Uma velha empregada rezava o terço por intenção de pobre gente que se perdera na serra, para que encontrasse o caminho. Contava depois histórias tristes de pobres meninos pastores devorados pelos lobos famintos. O autor de “Serra Brava” cresceu assim num ambiente de temores, que davam a medida da hostilidade do meio e a luta ingente dos serranos para sobreviverem. E como sofria de uma bronquite asmática e o inverno era áspero, frequentemente ficava de cama, tendo como distração a biblioteca paterna, onde a par das edições antigas dos clássicos, desde Jacinto Freire de Andrade e D. Francisco Manuel de Melo a Herculano, havia edições de luxo primorosamente ilustradas. 

Assim, em 1925, chegava pela primeira vez ao Brasil, onde a sua família, nomeadamente os seus avôs, possuía vastas plantações de borracha na região da Amazónia. 

Os seus primeiros textos no jornal “Correio Paulistano” surgem por volta de 1927 a versam sobre literatura e teatro. Em 21 de Janeiro de 1928, no dito jornal, aparece mencionado numa notícia do mesmo jornal, a propósito de um jantar oferecido ao diretor pelo pessoal do dito periódico em que se diz que “era o mais novo da casa”, sendo feita uma alusão a um momento em que “o ‘neo’ Barros Ferreira saudou o mais velho da redacção”. É também neste ano de 1928 que começa a publicar os seus contos num outro jornal de referência, o “Diário Nacional” de São Paulo. 

Por esta altura, sobre o jovem Barros Ferreira, escreveu, no “Correio Paulistano”, o jornalista e colega Hermes Lima e descreve-o nestes termos: “...é no Correio o companheiro mais recente. Porque talvez a vida jornalística o tenha ainda empolgado ou absorvido inteiramente, ele não só ama, como realiza a literatura e tem até pronta uma novela. A não ser em casos excecionais, eu acho que a gente só deve publicar livros depois de ter gasto o entusiasmo literário, que nos leva, pelo comum, a exagerar sentimentos e a transmitir às coisas um tom postiço nessa ou naquela direção. Isso não são conselhos. É um pequeno prefácio à crónica seguinte de Barros Ferreira, companheiro jovem e inteligente, a quem, nesta manhã, cedo com prazer o meu lugar. 

O livro a que se refere Hermes Lima que estaria pronto é “A Cidade de um Deus amarello que seria publicado já em 1929. Sobre a obra, escreveu-se no jornal “Diário Nacional” de 26 de Abril de 1929: “O nosso companheiro de trabalho Barros Ferreira, que já tem provado em diversas crónicas publicadas na imprensa desta capital, possuir gosto invulgar pelas cousas literárias, acaba de contratar com a Companhia Melhoramentos de São Paulo a confecção de seu primeiro livro intitulado “A Cidade do Deus amarello”. Este trabalho literário de Barros Ferreira passará a fazer parte da “Biblioteca da Adolescência”, figurando assim merecidamente entre obras dos mais consagrados autores na literatura internacional. O livro de Barros Ferreira está sendo impresso com todo o esmero, num feitio moderno, nem faltando para caraterizar a sua feição artística sugestivas ilustrações. De resto, só pelo valor intelectual que no autor do próximo livro somos os primeiros a reconhecer, se poderá aquilatar de seu verdadeiro sucesso. Sobre o mesmo livro, ainda podemos ler no Diário Nacional de 22 de Dezembro do mesmo ano: “O Sr. Barros Ferreira, nome conhecido em nossas letras, acaba de publicar uma interessante novella, subordinada ao título “A Cidade do Deus amarela”, constituindo o livro 4, série 2 da “Biblioteca da Adolescência”. 

O seu trabalho, vasado em encantadora simplicidade, tem um desfecho atrahenteenquandrando-se perfeitamente, aos moldes dos contos maravilhosos, que tanto seduzem os animos juvenis. A sua edição foi feita pela Companhia Melhoramentos de São Paulo, apresentando bello aspecto material... Sobre esta primeira novela de Barros Ferreira, escreve-se um apontamento crítico na edição de 6 de Fevereiro de 1930: “...Estilo fluente, claro, narrativa simples, sem pernosticismo, sem preocupações de escola, - lê-se esse livro com encanto, tal a precisão, a concatenação dos períodos, a cadência dos pensamentos, até chegar-se à fase final em que tomam papel saliente os dois pequenos heróis anónimos, vindos do sertão do Ceará, deslumbrados pela civilização... 

No ano de 1930, temos notícia sobre a publicação de mais um livro, “Sementes de Virtudes”, acerca do qual podemos ler uma pequena crítica nas páginas do “Diário Nacional” de 4 de Maio: O nosso prezado companheiro de trabalhos, Barros Ferreira, acaba de publicar mais um livro com que retrata alguns aspetos da vida dos santos. São cento e tantas páginas que se lêem com encanto, às quaes deu o autor o título de “Semeadores de Virtudes” (…) Está aqui neste livrinho reunidos vários episódios da vida dos santos, que é o subtítulo adotado pelo autor. Não é um livro de religião no sentido estrito e rigoroso ainda que o pudesse parecer pela intenção, mas não faltará de heterodoxia. Seja como or é livro de piedade e amor, escrito como se fosse uma série de contos literários. (…) O Sr. Barros Ferreira conseguiu desenhar com toda a verdade humana muitos dos carateres e personagens dos “Semeadores de Virtudes”. Acresce a essa qualidade intrínseca e substancial o encanto das suas narrativas. Com efeito, não lhe faltam nem imaginação, nem estilo, nem outros dons que soem caraterizar as produções literárias de mais fino labor”. 

No jornal “Correio de São Paulo”, na edição de 13 de Setembro de 1933, conta-se que perdeu um filho chamado Arthur. 

Em 1934, Barros Ferreira, então redator do jornal “Diário da Noite” foi nomeado sócio honorário do Clube Português “como prémio pelos serviços prestados por ele em prol do engrandecimento do clube”. 

 Em 1935, voltou a Portugal, onde ficou até 1939. Voltou ao Brasil nesse ano e só voltaria ao seu país em 1957, numa breve passagem e em serviço.  

O regresso ao seu país em 1935 estará relacionado com uma herança que terá recebido em PortugalSe atentarmos num pequeno apontamento crítico acerca do seu livro “Terra sem Mulheres”, publicado no magazine “Vamos Ler” de 4 de maio de 1939, podemos ler que: ”...recebendo, mais tarde, uma herança, o Sr. Barros Ferreira sentiu saudades de Portugal e realizou o seu sonho de voltar à sua terra de origem...” Esta herança de que fala a notícia deveria ser proveniente de seu avô materno Agostinho de Barros que estava em fim de vida e que viria a falecer em 27 de Abril de 1937, em Vila Nova de Gaia. 

Talvez tenha sido nesse período de permanência em terras lusas que tenha encontrado inspiração para escrever dois dos seus livros, dos poucos publicados em Portugal. Além de “Maris dos Tojos”, publica também “Terra sem ”, atrás citado. Sobre essas obras, Mário de Andrade escreve no “Diário de Notícias de 4 de Junho de 1939: “...preciso ao menos referir que andei percorrendo os livros do Sr. Barros Ferreira (“Maria dos Tojos”, ed. Educação nacional, Porto, sem data; “Terra sem Mulheres”, mesma editora, 1938) que faz alguns dos seus contos viverem no Brasil. Confesso que a estes preferi a “maria dos Tojos”, que não terá grandes complicações psychologicas, nem nos faz minimamente pensar no problema estético do romance. Em todo caso se lê distraidamente, e parece mostrar que o autor tem bom conhecimento da região que descreve. Na “Terra sem Mulheres” nem senti a Amazónia naquellas tragédias um bocado fáceis e muito menos São Paulo... 

Entretanto, regressaria ao Brasil, conforme escrito no magazine “Vamos Ler” de 4 de maio de 1939: “A forte vocação intelectual do Sr. Barros Ferreira, entretanto não permitiu que ele se entregasse ao gozo de um ócio repousante de anteriores períodos de grande labor. (…) Mostrando que não se esquece do Brasil, e que a nossa paisagem, “permanece na sua lembrança, o Sr. Barros Ferreira acaba de publicar, na Série vermelha da Livraria da Educação Nacional de Lisboa, Terra sem Mulheres”, novela cuja ação decorre no palpitante e misterioso cenário amazónico. As novelas do Sr. Barros Ferreira são bem urdidas, o enredo transcorre com grande número de surpresas e o conjunto vale por uma interpretação psicológica dos tipos amazonenses sem dúvida alguma perfeita. A selva amazónica (….) encontra agora no Sr. Barros Ferreira um pintor maneiroso e amável, cujos dotes literários aí se apuram de modo bastante significativo. 

No regresso ao Brasil, vai integrar os quadros dos “Diários Associados” de Assis Chateaubriand, ao mesmo tempo que continua uma produção literária, abrangendo a ficção, a História e a crónica, num total que viria a somar mais de três dezenas de obras (VAZ, 1997). 

Da obra extensa de Barros ferreira, entre nós, ficou marcado, sem dúvida, o romance “Maria dos Tojos”. Neste livro, verdadeira homenagem ao modo de vida das gentes de Castro Laboreiro e dos povos serranos do Alto Minho, publicado em 1938, Miguel Ângelo de Barros Ferreira centra a intriga de um violento drama amoroso em plena serra, numa aldeia em Castro Laboreiro, onde o povo vivia, nos anos trinta, entre as lides nos campos de semeadura, o pastoreio comunal e a dolorosa emigração sazonal. Nómadas do trabalho assalariado, os que partiam, se menos ambiciosos para se atreverem a demandar as Astúrias, Catalunha ou França, iam só até Trás-os Montes ou Beira Alta, “em peregrinação a pé, por exiguidade de recursos (...), varando serras sem noção de fronteiras”, que os limites da sua freguesia morriam na Ponte Velha ou, pouco além, na “Ameijoeira, no Ribeiro de Baixo, que dividia a fronteira portuguesa da espanhola”. Partiam as levas no Outono, “mal os primeiros frios anunciavam a aproximação do Inverno” e, “quando voltava a Primavera, regressavam alegres, aos lares humildes, com um pecúlio amassado de privações e submissão à ganância dos mestres de obras que, à custa do suor alheio, ganhavam o descanso das suas velhices”. Alguns mais moços resignavam-se a ficar, mas sempre inconformados com este “viver na serra, entre mulheres que arroteavam as terras, na ausência dos maridos e dos irmãos, e homens decrépitos, que viviam das recordações da sua mocidade trabalhosa”. 

As Astúrias, no início dos anos trinta, eram terras que atraiam os raianos do sítio com dois duros pagos por dia, quando na serra em que viviam mal dava para comer. A passagem do gado para a Galiza, modo de vida para alguns, não constituía, bem vistas as coisas, “uma desobediência, mas uma imposição da miséria” – que o lucro de dois tostões, com “risco de apanhar um tiro” mal lhes dava “para sustentar os filhos no dia seguinte”. O longo capítulo “O contrabando”, do romance “Maria dos Tojos”, é expressivo e de abundante pormenorização acerca do tráfico de bovinos, nesse tempo de antes da guerra civil, aproveitando os campos contíguos das faldas da serra com as pastagens galegas. Os ventos pareciam varridos de mudança e não transparecia o motivo: “os géneros alimentícios eram generosamente pagos em Espanha, como se a fome houvesse alastrado por aquelas províncias fartas da Galiza, que antes lhes forneciam com barateza os raros mimos dos seus cardápios de dias de festa”. Como erva em chão húmido, assim alastrava a aranha contrabandista. Barros Ferreira descreve assim o panorama da época: Aumentava o custo de vida em Portugal, mas o lucro do contrabando tudo compensava. Depois, cada junta de bois rende mais do que nas feiras. O antigo valor aquisitivo das sonoras moedas de coroa, muitas das quais ainda ostentavam ainda a égide de D. Luiz , rei de Portugal e dos Algarves, decaiu para menos de um tostão, e os serranos já não sabiam fazer contas, tomando como base das suas transações a “moeda”. Homens e mulheres, à porfia fizeram subir a escala e a audácia do contrabando: “Do arroz e açúcar, para consumo doméstico, cresceu, tomou impulso, estendeu-se aos tecidos caros, ao calçado e ao azeite, para os comerciantes da “ribeira”, onde iam comprar milho das colónias, a preços reduzidos e entregue por meio de requisições, e que pagavam por bom preço, no outro lado, numa fábrica de destilação de álcool de cereais”. O contrabando organiza-se em empresa “que atraía capitais, pois o lucro compensava largamente os prejuízos e os riscos”.  

A dificuldade maior, quanto ao gado, era “conduzir os bois até ao outro lado do ribeiro”, pois se os carabineiros se mostravam complacentes, os guardas-fiscais mostravam-se rigorosos. O tráfico vertia-se em dinheiro e dos lucros saíam comissões para os conhecedores da terra que adquiriam os animais aos camponeses da zona e angariavam compradores na fronteira galega depois de passá-los a vau. 

Contudo, tanto do lado da Galiza, “defronte, na outra margem do ribeiro”, como de Portugal, “a mesma cadeia de montes se abraçava”, não ficando a raia mais que “uma convenção” e a noção de Pátria convertida em fronteira. No lado de lá, havia um posto de carabineiros, para repressão do contrabando; na margem portuguesa, um quartel de guardas-fiscais. Contudo, neste meio pequeno, todos se conheciam e cumprimentavam. Havia uma espécie de confraternização entre os carabineiros de tricórnio de oleado, os guardas-fiscais e os contrabandistas, num tácito reconhecimento de que deviam o pão à existência comum. Evitavam astutamente encontrar-se, para que não houvesse quebra da disciplina nem abuso da tolerância”. Tácito realismo, suficiente para o contrabando ser aceite como um mal necessário.” (MARQUES, 2004) 

O livro “Maria dos Tojos” serviu de argumento para a realização do filme "Serra Brava" do realizador Armando Miranda, que sai para o cinema em 1948. Contudo, aparentemente, a editora vendeu os direitos à produtora do filme sem o consentimento de Barros Ferreira, procurando, mais tarde, este ser ressarcido do abuso. Numa notícia publicada na revista “Cine-Reporter”, na sua edição de 17 de Janeiro de 1948, podemos ler que “Barros Ferreira jornalista e romancista português que exerce suas atividades na capital paulista, está chamando às falas o dono da “Educação Nacional” de Lisboa, com o fim de se ver pago dos direitos de livros que essa editora deu a filmagem por vinte contos. Trata-se de apropriação indevida e abuso de confiança. 

Sobre o caso, o nosso ilustre confrade assim se manifesta: “Tudo teria passado em branca nuvem se o escritor Heitor Campos Monteiro, meu velho amigo, não me tivesse comunicado o facto. O filme acabara de ser feito na serra do Suajo onde se passa a parte final do romance, que focaliza aspetos da vida serrana do norte de Portugal. A personagem principal perde-se no meio de uma nevada, e o produtor do filme, ao que parece, seguiu o enredo do romance e esperou o inverno que na Europa começa em Novembro, para filmar as partes finais. O facto foi noticiado pelo “Comércio do Porto” e assim vim a saber que o realizador fora Armando Miranda, em Lisboa. Em nada fora eu ouvido. Escrevi para Portugal, solicitando informações ao mesmo tempo que pedia a Heitor Campos Monteiro, que, como escritor teatral, vigiasse as legendas, já que o filme estava concluído. 

Passaram-se duas semanas e eis que recebe uma carta de Portugal esclarecendo vários pontos omissos. Armando Miranda, interrogado a respeito, informou que tinha procurado a “Editora Educação Nacional”, que editara o romance, perguntando por mim. Aí lhe disseram que o autor de “Maria dos Tojos” saíra havia muitos anos para o Brasil. 

Armando Miranda disse então que pretendia filmar o romance. Aí o atual dono da livraria respondeu que tinha a propriedade da obra e podia fazer negócio. Recebeu vinte contos e passou a autorização. 

“Ora, acontece que o meu romance “Maria dos Tojos” não fora vendido. Quando o antigo dono da “Educação Nacional”, o pedagogo António Figueirinhas, era vivo, convidou-me para organizar uma coleção para a juventude. Isto em 1936. Um dia soube que eu tinha terminado um romance e propôs-me editá-lo. Desisti dos direitos autorais para a primeira edição mas não cedi os direitos de propriedade. Já o segundo romance meu foi publicado com os direitos de 20 por cento sobre o preço da capa. António Figueirinhas morreu. E nunca mais me prestaram contas. Só o ano passado, o sucessor me escreveu numa carta alegando que tudo estava uma barafunda e se lhe podia dizer as datas das compras dos meus livros. Ora como não os vendera, estranhei tal pedido e informei o homenzinho do equívoco em que estava. Já nessa altura ele havia embolsado os vinte contos como se fosse o dono do meu romance”. 

Curiosamente, o título do filme ”Serra Brava” daria também nome à edição do mesmo livro no Brasil no ano de 1951Numa notícia publicada no “Jornal de Notícias” de 18 de Fevereiro desse ano, podemos ler que “Serra Brava é o título que recebeu, na sua edição brasileira, o romance “Maria dos Tojos”, de Barros Ferreira...”. 

No mesmo artigo, acrescenta-se que “antes de mais, Barros Ferreira é um jornalista. Percorreu várias redações, entre elas a do Correio Paulistano, no tempo em que a integravam Menotti del PicchiaGenolino Amado, Cassiano Ricardo e Hermes Lima, e desde 1928, pertence ao corpo redatorial do Diário da Noite”. Bem grande é a bibliografia de Barros Ferreira, cuja obra tem sido fartamente elogiada pela melhor crítica... 

Em 1957, viria a Portugal numa viagem rápida integrado numa delegação da Câmara de São Paulo para agraciar pessoalmente o presidente Craveiro Lopes como “Cidadão Paulistano”. Podemos conferir pela leitura da notícia no jornal “Diário da Noite” de 24 de Outubro de 1957: “A Câmara Municipal [de São Paulo] devia proceder, na sessão de hoje, à entrega ao Consul de Portugal, do título de “Cidadão Pulistano”, conferido ao General Craveiro Lopes, presidente de Portugal, por ocasião da sua recente visita ao Brasil. Ontem, porém, o presidente Elias Shammas cancelou essa solenidade, informando ao plenário que o referido título será entregue pessoalmente ao estadista português, pelo vereador José Aranha e o jornalista Barros Ferreira, que seguirão brevemente para Portugal... 

Regressaria a Portugal em 1967, como enviado do jornal “Diário Popular” às comemorações do cinquentenário das aparições de Fátima. 

No jornal “Comarca de Arganil”, na sua edição de 1 de julho de 1967 encontramos um apontamento sobre a carreira de Barros Ferreira até então: “Exercendo o jornalismo há mais de trinta anos, Barros Ferreira tem colaboração valiosa e dispersa pelas colunas dos melhores diários paulistas: “Diário Nacional”, “Correio Paulistano”, “O Estado de São Paulo”, “A Gazeta”, “Diário de S. Paulo”, “Diário da noite”, tendo trabalhado também para o “Jornal do Brasil” e para o “Jornal do Comércio”, do Rio do Janeiro, assim como para a revista “O Cruzeiro”. Presentemente, divide as suas atividades por duas empresas jornalísticas: as dos “Diários Associados” (“Diário de São Paulo” e “Diário da Noite”) e do “Diário Popular”. 

Figura respeitosa nos meios da imprensa, Barros Ferreira é também um notável ensaísta e ficcionista, com livros publicados em Portugal e no Brasil. Uma editora portuense publicou três dos seus romances: “Maria dos Tojos” (história que foi cinematizada em Portugal com o título “Serra Brava”, realização de Armando Miranda, na interpretação de de alberto Ribeiro, “Tatão”), “Terra sem Mulheres” e “Cadeia Eterna” (o drama do emigrante); as edições Melhoramentos, de São Paulo, lançaram os volumes de ficção “Barba de Bode” (romance), “O Castelo do Mistério” (contos), as biografia de “Emílio Ribas, o vencedor da Peste”, “Fernão Dias Pais, o governador das esmeraldas” e, para a juventude, “A cidade do deus amarelo” (novela), “Lendas da península”, Semadores da virtude”, “O filho do trovão” (a lenda de Caramuru) e várias adaptações de obras célebres. A editora Saraiva, também de São Paulo, publicou uma nova edição de “Maria dos Tojos”, que no Brasil apareceu com o título do filme, “Serra Brava” e os romances “Filhos de Adão” e “Borba Gato” (biografia). Finalmente, o Clube do Livro de São Paulo apresentou os seguintes livros de ficção: “A herança”, “Rainha do meio dia”, “Cinzas da Esperança”, “Romance da Madeira-Mamoré”, “Os lobos” (contos) e editará proximamente “Verdade e encanto da Amazónica”. 

Poucos escritores portugueses exibem tão vasta bibliografia quanto a de Barros Ferreira. E são raros também os que no Brasil tem prestado tão assinalados serviços em favor da presença da cultura portuguesa – causa a que devotamente se consagrou. Espírito culto, profundo conhecedor da História do Brasil e, sobretudo, das suas raízes lusíadas, Barros Ferreira é ainda um conversador emérito. O padre António Pedro dos Santos, que com ele recentemente contactou e de quem o jornalista luso-brasileiro fala na sua reportagem sobre Coimbra, deve ter ficado com excelente impressão de Barros Ferreira – um homem simples, modestíssimo, mas de grande estatura moral e intelectual...” 

A herança literária de Miguel Ângelo Barros Ferreira é imensa. Num vastíssimo leque de obras publicadas, destacamos algumas: 

  • Crónica de um Deus amarelo (1929); 

  • O vendaval: romance (1930); 

  • Lendas da Península (1931); 

  • O Caçador sem Medo (1936); 

  • Terra sem mulheres (1938); 

  • Maria dos Tojos (1938); 

  • O Rei Imprudente (1950); 

  • Serra Brava (1951), reedição de “Maria dos Tojos” no Brasil; 

  • Filhos de Adão (1952); 

  • Emidio Ribas, o vencedor da peste (1953); 

  • Barba de Bode (1955); 

  • Borba gato (1955); 

  • Meio século de São Paulo (1954); 

  • A Herança (1956) 

  • Cinzas de Esperança (1960); 

  • O romance da Madeira-Mamoré (1963); 

  • Os lobos (1965); 

  • Verdade e mistérios sobre a Amazónia (1967); 

  • O viajante Ullisses (1970); 

  • O nobre e antigo bairro da Sé (1971); 

  • Terra sem caminhos (1973); 

  • A flauta mágica (1976); 

  • Amazónia arrasada (1980); 

  • Tordesillas: Um pingo no mapa, um borrão na História (1982). 

Entretanto, continuou a escrever os seus artigos em vários jornais que percorriam desde temas de atualidade como outros ligados à História e que frequentemente se centravam na sua cidade de São Paulo, que se nota que amava muito. Várias das suas obras, valeram-lhe prémios. Damos como exemplo a obra “O Antigo e Nobre Bairro da Sé”, assinado por Dionísio Alvim, pseudónimo de Barros Ferreira. Esta obra foi galardoada com o primeiro prémio do Concurso de Monografia dos Bairros, promovido pela Prefeitura do Município de São Paulo em 1971. 

Participou, também, em eventos públicos como palestras ou conferências. A título de exemplo, damos conta de uma palestra noticiada em 6 de Agosto de 1973 no “Jornal do Brasil” que nos conta que “... O Instituto Histórico e Cultural Pero Vaz de Caminha reunirá sócios e público na Biblioteca Municipal Mário de Andrade [São Paulo] (…) A palestra está a cargo do historiador Miguel Ângelo Barros Ferreira e pretende ser uma análise do famoso documento de Caminha, fechado a sete chaves durante três séculos e apenas valorizado após a independência do Brasil... 

Miguel Ângelo Barros Ferreira faleceu na sua amada cidade de São Paulo no dia 16 de Dezembro de 1996, deixando uma enorme herança literária. Na sua terra natal, Melgaço, é bastante desconhecido. Este é um modesto contributo para um merecido reconhecimento pelos seus conterrâneos. 

 

 

 

Fontes: 

- MARQUES, João Francisco, (2004) - O Contrabando no Romance Contemporâneo Português - Contextos Espacio-Sociais e Histórico - Económicos. Estudos em homenagem a Luis António de Oliveira Ramos, FLUP, Porto. 

ROCHA, Joaquim (1997) - “Longe e Perto” In: A Voz de Melgaço n.º 1068, de 15/3/1997. 

VAZ, Júlio (1997) - Padre Júlio apresenta Mário. Edição de autor.  

- Diversas notícias citadas no texto.