sexta-feira, 31 de julho de 2020

A antiga e desaparecida paróquia de Santa Maria do Campo (Melgaço)




Em tempos muito recuados, o território da atual paróquia da Vila de Melgaço repartia-se por três diferentes paróquias: as de Santa Maria da Porta, São Fagundo e Santa Maria do Campo. Destas, as duas últimas desapareceram há cerca de 500 anos para darem lugar a uma única chamada de Santa Maria da Porta que incorporou o território das restantes. 

Centremo-nos na antiquíssima paróquia de Santa Maria do Campo. Esta ocuparia o parte do lado poente da atual paróquia da Vila de Melgaço e a sua igreja paroquial seria um pequeno templo no local onde se encontra atualmente a Igreja da Misericórdia. 

Segundo PINTOR, Bernardo (1975), Santa Maria do Campo seria, de facto, muito antiga e já existia no século XII, “porque nunca seria preciso dizer que a outra (Santa Maria da Porta) estava junto da porta, se não houvesse esta”.  

Ambas as igrejas de Santa Maria e ambas em Melgaço, não poderia saber-se a qual a gente se referia ao dizer apenas Santa Maria de Melgaço. Por isso, temos dificuldade em compreender os repetidos documentos do mosteiro de Fiães que nos apresentam os convénios da Câmara e moradores de Melgaço com o D. Abade e monges de Fiães. 

A primeira vez que encontramos esta igreja devidamente especificada foi nas inquirições de D. Afonso III feitas em 1258. Delas apenas verificamos que existia a freguesia de Santa Maria do Campo, sem nos darem outras particularidades. 

Em 1320, no reinado de D. Dinis, era a igreja de Santa Maria do Campo de recursos menos que medianos, embora houvesse outras mais humildes. As suas rendas foram calculadas em 30 libras ao passo que as de Santa Maria da Porta o foram em 110. 

Não se encontram mais referências documentais até ao princípio do século XVI em que nos aparece no Igrejário D. Diogo de Sousa (arcebispo de Braga) com a nota de ser de livre escolha do arcebispo, o seu pároco. 

Nos primeiros tempos da nossa nacionalidade, a igreja de Santa Maria do Campo ficava fora da fortaleza, bem como a de Santa Maria da Porta, porquanto o castelo de Melgaço era constituído pela torre de menagem e reduto fortificado em volta. No tempo de D. Afonso III e D. Dinis é que a povoação foi protegida por uma segunda muralha e ambas as igrejas ficaram dentro da cintura de muralhas.  

Segundo ESTEVES, A. (1957), fundamentando-se em elementos claros, este demonstra que a antiga igreja de Santa Maria do Campo é a atual igreja da Misericórdia com modificações no decorrer dos tempos. Mais acrescenta que o seu território se estendia, a poente da vila e ao correr do regato que vem de Fiães até entestar no rio Minho.  

Sabemos ainda que em 2 Julho de 1432 é concretizada a confirmação por parte do bispo de Tui sobre o padroado da igreja de Santa Maria do Campo, pertencente a leigos, sendo, à data, a apresentação do abade feita por Geraldo Miguel e seu filho Geraldo, moradores no castelo de Melgaço. O pároco apresentado, Rui Lourenço, já era reitor da igreja de São Facundo, na vila.  

No século XVI, o padroado já pertencia ao arcebispado de Braga. Entre 1514 e 1532, no sensual de D. Diogo de Sousa, esta igreja de Santa Maria do Campo rendia ao arcebispo 78 reais. Nas mãos deste prelado, Lopo da Cunha renunciou a igreja de Santa Maria do Campo, juntamente com as outras onde era abade. 

Sabemos que em 1523, a 5 Fevereiro, o abade da Igreja de Santa Maria do Campo foi substituído por Aires da Costa, que, poucos dias depois, também renunciou. Em 23 Abril seguinte, foi nomeado António de Castro, Clérigo de Ordens Menores para esta Igreja. 

Em Dezembro de 1564, foi publicado o diploma de extinção da paróquia de Santa Maria do Campo, juntamente com a de S. Fagundo, pelo arcebispo de Braga, Frei Bartolomeu dos Mártires, passando toda a vila de Melgaço a pertencer à paróquia de Santa Maria da Porta. 

Em finais do século XVI, aparecem os primeiros registos em tombo onde esta igreja é designada como sendo da Misericórdia de Melgaço. Contudo, não possuímos documentos que nos atestem a data exata em que este templo passou para a posse desta instituição. De uma coisa, estamos certos: o facto de, na época, a igreja passar para a custódia da Misericórdia de Melgaço terá evitado que por completo tivesse desaparecido como aconteceu à igreja de S. Fagundo, também na vila de Melgaço.


Fontes consultadas: 

- ESTEVES, Austo C. (1957) - Melgaço - Sentinela do Alto Minho. Tipografia melgacense, Melgaço.

- PINTOR, Bernardo (1975) - Melgaço Medieval. Augusto Costa & Cia., Braga.

domingo, 26 de julho de 2020

S. Paio - Melgaço (início do séc. XVIII) - As últimas vontades dos fregueses e os usos e costumes nos rituais fúnebres



Em tempos antigos, a forma como se preparava a chegada da morte era vista de forma completamente diferente da atualidade. Especialmente, as pessoas com recursos, antes de falecer, tinham o hábito de redigir ou mandar redigir o testamento no qual expressavam as suas últimas vontades.  
Geralmente, as pessoas tinham o cuidado de indicar no testamento, nas suas últimas vontades, o forma como desejam que decorra o seu próprio funeral e expressavam pormenores como por exemplo o tipo de mortalha em que devia estar exposto o seu corpo nas exéquias, o tipo de ofício fúnebre, o número de padres em que iam participar nas cerimónias ou então o número de missas que deixavam pagas bem como as oferendas para as confrarias ou pobres da paróquia, tudo isto na esperança que ajudasse a abrir as portas dos Céu à sua própria alma. 
Os valores ou bens envolvidos poderiam variar muito dependendo da condição social do defunto. 
Tomamos como exemplos para análise três assentos de óbito com menções às suas últimas vontades. Em final de Março de 1702, faleceu o pároco de S. Paio (Melgaço), de seu nome João Amaral Castelbranco, pessoa de condição social favorecida como a generalidade dos párocos na época que se traduz nos montantes citados. Reparemos no teor do seu assento de óbito e testamento“Aos trinta e um dias do mês de Março de mil setecentos e dois annos, pelas quatro para as cinco horas da tarde se levou Deus Nosso Senhor da vida prezente com todos os sacramentos ao Reverendo João Amaral Castelbrancoabbade desta igreja de S. Payo, o qual faleceu com testamento e no primeiro dia dos mês de Abril foi sepultado depois das cinco horas da tarde na Capella mayor desta igreja. Deixou por sua alma três offícios cada um de vinte padres e mais trezentas missas rezadas por sua tensão, cada uma de esmola de sessenta réis, e os padres dos offícios a duzentos e vinte (réis) de esmola, e mais três missas rezadas à hora da morte e cinco das chagas de Cristo Nosso Senhor e que se daria de esmola por cada uma cém réis e uma pelo dia de Natal (…) Às confrarias da freguezia deixou: à do Santíssimo Sacramento, setecentos e cincoenta (réis); a das Santíssimas Almas, quatrocentos e oitenta (Réis); à do mártir S. Sebastião, seicentos réis e às cinco confrarias pequenas, cada uma a duzentos e quarenta réis.  
De obradação (oferenda) do corpo prezente, deixou dois mil e quatrocentos (réis) com uma vela de meyo arrátel (corresponde a cerca de 230 gramas de cera) e no segundo e terceiro offício de obradação em cada um, quatrocentos e oitenta (réis) com vela de meyo artel..” 
Contudo, se atentarmos numa pessoa de condição social inferior, reparamos que os valores envolvidos no testamento são bem inferiores. Por outro lado, as oferendas traduzem-se mais em bens da vida agrícola tais como o pão, o vinho, o presunto e um carneiro, elementos que fazem parte dos usos em voga na freguesia na época. Por outro lado, embora expresse que se façam também três ofícios fúnebres, cada um teria apenas três padres. Embora se acreditasse que o número de clérigos que tomavam parte nos ofícios fúnebres fosse importante para a salvação da alma, este fator era também um evidente fator de demonstração do estatuto social do defunto. Assim, apresento como exemplo o assento de óbito de uma senhora de nome Isabel Afonso que faleceu na freguesia de São Paio, moradora no lugar do BarralAos catorze dias de Outubro do anno de mil setecentos e três se faleceu de vida prezente com todos os sacramentos, Isabel Afonso, viúva que ficara do Alferes do lugar do Barral desta freguezia, a qual fez testamento (…) na maneira seguinte: de obradação, no dia do corpo prezente, dois almudes de vinho, duas broas, um carneiro, um prezunto e três vinténs de pão branco”. Acrescenta no seu testamento “três offícios de nove lições (ritual com nove leituras) cada um com sete padres. Mandou dizer por suas obrigações oito missas rezadas. Às confrarias deixou o seguinte: à do Senhor 30 réis e às de mais 20 réis... 
Contudo, se repararmos neste outro assento, verificamos que por vezes, além deixar missar pela própria alma, também se manda rezar missas por outras pessoas, nomeadamente parentes. É curioso que a defunta tenha deixado a vontade de que se dissesse uma missa pela própria no Santuário da Nossa Senhora da Peneda: Aos vinte e quatro dias do mês de Julho de 1703 se faleceu da vida prezente Catherina Domingues, mulher de Pedro Domingues de Cavaleiro Alvo desta freguezia com todos os sacramentos. Fez testamento na maneira seguinte: deixou três offícios de nove lições, o primeiro com nove padres, e o segundo e terceiro com oito padres cada um. Deixou de obradação (oferenda) dois alqueires de pão, dois almudes de vinho, duas broas, dois vinténs de pão, um prezunto e um carneiro. Deixou seis missas rezadas por seu pai e mãe, e por seu marido Sebastião Rodrigues, e sogro e sogra e por sua tia do Ameal, doze missas. À Senhora da Peneda, disse que lhe dissessem uma missa (…) e uma missa no altar privilegiado. Deixou às confrarias, à do Santíssimo meio alqueire de pão, à das Almas duzentos reis e as de mais a vinte reis e não dizia mais o dito testamento no tocante ao bem da alma...”
Em que consistiam estes ofícios fúnebres? Segundo TRIGUEIROS, A. (2015), são normalmente cantados, ou apenas recitados, em alternância por dois coros de sacerdotes (daí a necessidade da presença de pelo menos 20 padres para constituírem dois coros) e compõe-se de um hino, dois salmos e um cântico, uma leitura breve (normalmente de uma epístola), um responsório breve, um cântico evangélico (o Benedictus nas Laudes e o Magnificat nas Vésperas), umas preces seguidas da recitação do Padre Nosso e uma oração conclusiva. 
O Ofício de nove lições correspondia apenas ao ofício de Matinas, o actual Ofício de Leitura (após o Concílio Vaticano II) e designa-se deste modo porque era composto por nove leituras. Era rezado pelos monges de madrugada antes do romper da alva. Nas exéquias, e com o costume de velar o defunto por toda a noite, começava-se com esse ofício de nove lições o dia do seu enterramento. 

Geralmente rezava-se ou cantava-se apenas uma destas horas litúrgicas, dependendo da hora a que se procedia às exéquias. Mas nas pessoas de maior qualidade e especialmente nos sacerdotes era frequente fazer-se todo o ofício. Nem sempre o ofício se fazia no dia das exéquias, podendo muitas vezes por conveniência dos sacerdotes ser celebrado depois. 
As últimas vontades eram confiadas a alguém de extrema confiança, um familiar, o pároco, ou outra pessoa, que ficaria encarregue de cumprir ao pormenor as últimas vontades do testador.


Fontes consultadas: 
- ADVC - Assentos de óbitos, freguesia de S. Paio (Melgaço), 1692 - 1727; 
- TRIGUEIROS, A. (2015) - Ofícios Fúnebres. In: https://genealogiafb.blogspot.com/2015/11/oficios-funebres.html?m=1