sexta-feira, 30 de novembro de 2018

A imagem de S. Teotónio da Igreja de Paderne (Melgaço): algumas notas de interesse




O Mosteiro de Paderne foi extinto em 27 de Setembro de 1770. Aquando da extinção da sua comunidade monástica, foi elaborado um inventário onde se faz uma descrição sumária do convento na época: “O Mosteiro de S. Salvador de Paderne que consta de huma igreja que contem sinco altares, hum na capela mor, dois da capelas fundas, e dois a face debaixo de grade, e tem de huma casa de grades para a pixa (pia) do Baptismo e de huma sacristia junto do claustro para os religiozos. (…) Item uma casa de que serve de sacristia para os clérigos de fora paramentada pello Mosteiro para os dois altares”.
No dito inventário, é feita referência ao rico recheio da igreja e do convento, entre o qual constam várias imagens de santos, algumas das quais ainda hoje ocupam lugar de destaque da bonita igreja de S. Salvador de Paderne. No citado inventário de 1770, entre essas imagens, há uma singela mas linda imagem de S. Teotónio de origem bastante antiga, certamente anterior a meados do século XVIII. Sem se conhecer a data da sua feitura, sabemos que já existia em 1758. De facto, nas Memória Paroquiais redigidas nesse mesmo ano, o padre António Rodrigues de Morais escreve que a dita imagem se encontrava no altar-mor, e quando se refere a esta igreja, menciona que “O orago da freguezia é São Salvador e tem cinco altares: o altar-mor com o painel do Salvador, e duas imagens de Santo Agostinho e de São Teotónio. Contudo, sabemos que esta imagem de S. Teotónio, anos mais tarde, em 1770, permanecia no altar-mor em lugar de destaque. Assim, neste mesmo altar, além da mencionada imagem de S. Teotónio com resplendor de prata que pesava 30 oitavas, e segundo o inventário, encontrava-se ainda uma cruz em estanho prateada, com a imagem de Cristo, uma imagem grande de Santo Agostinho, estofada e uma campainha de bronze.
A presença da imagem de São Teotónio na igreja de S. Salvador de Paderne, além de uma outra que se encontra na capela Crastos, é de um enorme simbolismo. Porquê? Para responder a esta questão, temos que ter presente quem foi S. Teotónio.
Na verdade, S. Teotónio nasceu nesta região, mais particularmente em Ganfei, concelho de Valença. Corria o ano de 1082, sendo mais tarde confiado aos cuidados do seu tio-avô Crescónio, à época, bispo de Coimbra. Mais tarde, formou-se em Teologia e Filosofia, tendo-se tornado Prior da Sé de Viseu em 1112. No contexto da independência portuguesa, S. Teotónio tornou-se um dos importantes aliados do jovem infante Afonso Henriques, tendo-se tornado mais tarde seu conselheiro.
Em 1132, foi um dos fundadores, em Coimbra, do Mosteiro de Santa Cruz, adotando a regra dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho, tendo-se tornado no seu prior. Ora, o Convento de Paderne, inicialmente beneditino, adotou, algures a partir do primeiro terço do século XIII igualmente a Regra dos Cónegos de Santo Agostinho. Assim sendo, é merecido o destaque que a imagem de São Teotónio, com as típicas vestes de Cónego Regrante, detinha no altar principal a par da imagem de Santo Agostinho. Neste sentido, o ilustre investigador melgacense José Marques, em MARQUES J. (1991), considera que “entre essa devoções, sobressaem a da Santa Cruz, presente em todas as cruzes dos altares, que, sendo comum a todos os fiéis, assume especial sentido num mosteiro de religiosos crúzios, sendo, igualmente expressiva a presença das imagens de Santo Agostinho, que ocupava lugar de honra no altar-mor, como padroeiro que era, tal como acontecia com a de São Teotónio, primeiro prior eleito de Santa Cruz de Coimbra, convindo apurar também até que ponto a presença de outras imagens corresponde a devoções comuns a outros mosteiros da mesma Congregação. Interpretação idêntica se poderá tomar em relação às imagens e respetivas devoções à Senhora das Dores e da Senhora da Soledade, cujas representações, por vezes, se identificam que não é fácil separar da espiritualidade crúzia, por certo imbuída do espírito com que S. Teotónio visitou e meditou na Paixão de Cristo, durante a segunda peregrinação à Terra Santa, de que o seu biógrafo nos deixou preciosos testemunhos.”
Há várias décadas que esta valiosa imagem tem as mãos partidas, conforme se pode ver na fotografia antes, e tem estado arredada do lugar que foi seu durante um largo tempo, no altar principal lado a lado com Santo Agostinho. Dizem-me que a dita imagem esteve, em tempos, na casa da fábrica, talvez esperando um pequeno restauro que devolva toda a sua excelência simbólica nesta igreja, estando atualmente na sacristia. Note-se que S. Teotónio é o santo português mais antigo, tendo sido o primeiro a ser canonizado, em 1163 pelo papa Alexandre III, um ano após a sua morte.
Talvez um dia esta importante imagem de S. Teotónio possa recuperar o seu merecido lugar na História desta igreja… Porque é parte inseparável do passado deste antigo convento.


Fontes consultadas:
- MARQUES, J. (1991) - O Mosteiro de Paderne em 1770. II Congresso Internacional do Barroco.
- Memórias Paroquiais de 1758 - Paderne.

sexta-feira, 23 de novembro de 2018

Melgaço, 1937 - Tempos de fome e um Plano de Melhoramentos da Câmara Municipal para o concelho



Na década de 1930, Melgaço atravessava uma profunda crise onde o convívio com a fome e a miséria faziam parte do quotidiano. A Câmara Municipal, querendo minorar os efeitos desta crise, decide lançar um amplo conjunto de obras no concelho a nível das instalações escolares, estradas e fontanários bem como lavadouros públicos nas freguesias onde ainda ocorriam frequentes surtos de tifo.
Assim em 23 de Julho de 1937, a Câmara Municipal de Melgaço decide endereçar ao Ministério das Finanças um pedido de autorização para contrair um empréstimo de 500 contos para financiar estas obras bem como para amortizar dívidas antigas. No documento endereçado pela Câmara Municipal de Melgaço ao Ministério das Finanças pode ler-se “A Comissão Administrativa desta Câmara, em sessão de 15 do corrente Julho de 1937), deliberou contrair um empréstimo de 500 000$00 (quinhentos mil escudos), destinado a:
1º Pagar as quantias que ainda deve aos empréstimos anteriores contraídos com a mesma Caixa.
2º Pagar as dívidas do município ocasionadas pela execução da estrada à periferia da vila e pelo desfalque efetuado pelo tesoureiro da Câmara na importância correspondente à última medição efetuada (vinte e cinco mil escudos) pela Direção de Melhoramentos Rurais, importância que lhe foi entregue pelo Pagador das Obras Públicas em Viana do Castelo, mas que não foi entregue à Câmara pelo que se encontra entregue ao poder judicial o referido tesoureiro.
3º Pagar as dívidas ocasionadas pelo facto de as freguesias onde se efetuaram as reparações em edifícios escolares as não terem comparticipado com importância suficiente que diminuísse os encargos da Câmara, devido às ampliações de que as obras foram beneficiadas.
4º – Executar a construção de fontanários e lavadouros nas freguesias do concelho onde se verificam, periodicamente, epidemias de tifo.
5º – Comparticipar a construção dos caminhos rurais Pomares – Penso, Sá – Paços e Vila – Cabana.
6º – Desenvolver o plano de melhoramento das condições gerais do concelho.
Tendo a referida deliberação sido aprovada pelo Conselho Municipal, em sessão de 21 do corrente, vem (…) pedir a Vossa Excelência a necessária aprovação.
A Bem da Nação.”
Contudo, o pedido não recebeu aprovação imediata pelo Governo tendo o Ministério das Finanças pedido informações adicionais e o processo prolongou-se por muitos meses com trocas de missivas entre o Município e o Governo. Desta forma, o presidente da Câmara de Melgaço, João de Barros Durães, endereça uma carta ao Chefe de Gabinete do Ministro das Finanças onde expõe o seu impaciência para com a morosidade do processo e as suas consequências para a precária situação de Melgaço traçando um quadro negro da realidade melgacense na época. Na missiva datada de 2 de Março de 1938, pode ler-se:
Melgaço, 2 de Março de 1938.
Ex.mo Sr. Chefe do Gabinete de Sua Excelência e Sub-Secretário das Finanças
Permito-me vir expor e chamar à atenção de Vossa Excelência para os factos seguintes, ciente que a eles V. Ex.a se dignará dar o devido valor e providenciar no sentido de ser deferida a pretensão desta Câmara que venho de novo expor a V. Ex.a.
1º – Este concelho atravessa uma crise pavorosa de desemprego em todos os ramos de trabalho, devido a circunstâncias variadas, em especial à situação anormal de Espanha, à insuficiência de capitais particulares, à repatriação de emigrantes que no estrangeiro trabalhavam, principalmente na Espanha, França e Brasil, a anulação de remessas de rendimentos e produto de salários do estrangeiro.
2º – Esta crise possui a maior agudeza no concelho, pelo que há um grande número de famílias debatendo-se na mais contristadora miséria, não sendo raros os casos em que os seus elementos sofrem as torturas da fome.
3º – A fim de atenuar as graves proporções deste estado de calamitosa miséria do operariado de todas as categorias, a Câmara vem lutando pela execução de algumas obras que possam, dando-lhe trabalho, fornecer-lhe meios de honradamente viver: há alguns anos que a Câmara desenvolve notável ação no sentido de serem realizados os melhoramentos fundamentais – viação, higienização das águas, construção e reparação de edifícios escolares – para o que tem obtido o auxílio do Estado.
4º – Alguns factos anormais, já expostos a V. Ex.a e a necessidade de continuar a realização do plano de ação da Câmara, esta solicitou há meses autorização para contrair um empréstimo de 500 contos com a Caixa Geral de Depósitos.
5º – Apesar de todas as solicitações feitas, ainda lhe não foi concedida a autorização pedida embora os motivos justificativos sobejamente demonstrassem a necessidade daquela operação ser realizada com a maior urgência.
6º – Esta demora tem causado ao Concelho os maiores prejuízos: além de não terem sido integralmente pagos alguns encargos devido à reparação de edifícios escolares e ao roubo que o ex-tesoureiro efetuou, a Câmara vê-se obrigada a não realizar algumas obras de grande importância para as quais já lhe foram concedidas comparticipações pelo Estado, e a não desenvolver o projeto de melhoramento das condições gerais do concelho.
7º – Por este facto estão quasi completamente imobilizados 363.246$18 que representam os valores orçamentais de obras para que a Câmara possui projetos organizados e para quase todas as comparticipações concedidas, embora para a realização delas apenas despendesse 109 379$72; por estas razões não poderá realizar a construção de novos edifícios escolares, por cuja construção já se responsabilizou, cujo valor orçamental atinge 319 930$00, embora para a construção apenas necessite de 79 982$00.
8º – Em síntese: a Câmara vê-se obrigada não realizar obras em todo o concelho cujo valor orçamental atinge 683 176$00, embora para elas apenas necessite de 189 362$22.
9º – A realização destas obras viria a contribuir largamente para o melhoramento das condições de vida do operariado do concelho, que se encontra na maior miséria, e, concomitantemente, para dotar todo o concelho com uma série de melhoramentos que muito o beneficiariam.
Tomo a liberdade de chamar à atenção de V. Ex.a para os factos expostos e de solicitar que, com a máxima urgência, seja concedida autorização a esta Câmara para contrair o empréstimo projetado, visto que a demora muito prejudica o concelho e a ação social da Câmara.”
O empréstimo seria autorizado finalmente em Maio de 1938 em Portaria do Governo:
PORTARIA
Manda o Governo da República Portuguesa, pelo Ministro das Finanças, ouvido o Conselho Municipal de Melgaço e tendo em atenção o fim de elevado interesse da obra a realizar, autorizar esta Câmara Municipal, a contratar na Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência, um empréstimo até ao montante de 417 499$37, amortizável em 15 anos, destinando 245 409$86 para pagamento do saldo do empréstimo em débito à Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência e o restante, em comparticipação com o Estado com as obras de construções escolares e de um fontanário, reconstrução do caminho do Lugar de Sá e reparações no caminho de Pomares e da estrada da vila.
Ministério das Finanças, em 19 de Maio de 1938.”

sexta-feira, 16 de novembro de 2018

A Bandeira Real da Misericórdia de Melgaço: algumas notas históricas



No passado domingo, dia 11 de Novembro, voltou à sua casa, a Santa Casa da Misericórdia de Melgaço, a sua Bandeira Real, um dos símbolo máximos da iconografia desta instituição. Trata-se de um pequeno tesouro histórico com mais de 300 anos de antiguidade e que foi alvo de um importante processo de restauro e agora está de volta ao seu lugar.
Temos perante nós um pequeno tesouro do património melgacenses do qual não temos forma de datar com exatidão ainda que seja certo que terá três a quatro séculos de existência. Depois de uma pesquisa ao espólio documental desta instituição, fomos encontrar o registo mais antigo de um ajuste para feitura de uma Bandeira Real da Misericórdia de Melgaço, como esta. De facto, a 2 Fevereiro de 1591, é feito um contrato entre a Misericórdia, sendo provedor Gil Gonçalves Leitão, e António de Figueiroa, para este pintar o retábulo da Igreja, fazer umas grades e fazer a Bandeira Real, pelo preço de 56.5000 reais. Recebeu apenas 43.520 reais em dinheiro, dada a falta de recursos da Misericórdia, pelo que se decidiu "dar-lhe em satisfação do remate de pagua huma cruz que a Casa tinha a qual foi pesada nesta vila na feira por hos hourives de Salvaterra que a ela costumão vir e pesava (rendeu) doze mil novecentos e oitenta reais", segundo anotação documental.
Na Bandeira Real desta confraria, encontramos dois painéis pintados em tela que assenta sobre a estrutura de madeira, um na parte frontal e outro no verso. Na parte frontal, encontra-se representada a imagem de Nossa Senhora da Misericórdia, com um vasto manto azul celeste, aberto por mãos de anjos, sob o qual se abrigam representantes de vários poderes terrenos e grupos sociais.
Sob o manto, encontramos representados do lado direito, em primeiro plano, o papa com a tiara papal pousada ao seu lado como autoridade máxima da Igreja Católica na Terra. Imediatamente nas suas costas, podemos ver um cardeal como a mais alta autoridade religiosa no Reino. Num plano secundário, podemos ver vários clérigos e uma discreta personagem masculina de vestes de cor cinzenta da qual não conseguimos descortinar o seu significado com certeza. Poderá representar o povo ou então um mendigo.
Na Bandeira Real da Misericórdia de Melgaço, ao contrário da generalidade das bandeiras de outras confrarias, não aparece representado o rei. Uma possível explicação para tal seria o facto de a bandeira ter sido feita e pintada durante o período filipino, não querendo a confraria perpetuar a figura de um rei espanhol numa das peças com maior significado na confraria melgacense.
Curiosamente, enquanto que as personagens masculinas aparecem do lado esquerdo, nesta bandeira, do lado direito, aparecem apenas figuras femininas. Em primeiro plano, aparecem duas mulheres, que pelas vestes, seriam de uma elevada posição social, provavelmente nobres. Em plano secundário, podemos ver uma freira e diversas figuras femininas com menor definição.
Nas margens da parte frontal aparecem inscrições em latim que apresentam algumas incorreções: MISERICORDIA DOMINI PLENA EST // TERRA VIRGO ESUNCULARIS INTER UMVES. MITES. ES // SUB TUUM PRESIDIUM CUMFIGIMUS // MON S. TRA AE S. T. MOTREM SUMAT PORTE PRECES. Tais inscrições significam: “A Terra está cheia da misericórdia do Senhor (margem superior); Virgem única, de entre todas a mais gentil (margem direita); Sob a tua proteção nos recolhemos (margem inferior); Mostra que és mãe fazendo chegar-lhe as preces (margem inferior).
No verso da bandeira, existia uma outra pintura onde aparece representada a Senhora da Piedade na cena “Lamentação sobre Cristo deposto da Cruz”. No lado esquerdo, vemos S, João que secunda a Virgem Maria e ampara o corpo do Filho morto, com o braço pendente paralelo ao da Mãe. Junto a Cristo, Maria Madalena, de manto amarelo, é secundado por duas outras mulheres que fazem gestos de lamentação. Por trás da cruz, que pontifica ao centro e em cujos braços se vê pendurado o lençol usado na deposição, vê-se o céu preenchido por nuvens escuras.
A Bandeira Real era em tempos antigos o maior símbolo da confraria nas maiores celebrações que a Santa Casa promovia: A Festa da Visitação e a Procissão da Quinta Feira Santa, também chamada dos Penitentes ou dos Fogaréus, com muita tradição em Melgaço nos séculos XVI, XVII e XVIII. Em relação a esta última, temos registos documentais que descrevem a forma como tudo decorria. Assim, na Quinta Feira Santa, às oito horas da noite, saía da igreja a procissão com todos os irmãos da Misericórdia, uns de opa preta, outros de fato preto em símbolo de luto. À frente ia o escrivão com a Bandeira Real da Confraria, ladeado por dois mesários, cada um com tocha acesa ou com pinhas a arder, daí chamar-se Procissão dos Fogaréus. Atrás vinha o provedor do ano findo com o crucifixo (quando estava ausente ou não podia comparecer, era o provedor em exercício), ladeado por dois irmãos com tochas acesas. Depois seguia o andor do "Ecce Homo" acompanhado por duas ou quatro lanternas acesas. Os penitentes entrecortavam as insígnias da Paixão do Senhor, que eram conduzidas por irmãos da Misericórdia entre a bandeira e o crucifixo. Os irmãos envergando opas e portando tochas acesas, contornavam o centro da vila, onde se juntavam encapuçados, depois de andarem pelas ruas do percurso e muito à frente da procissão cantando, em voz de falsete, os mexericos e segredos da terra de um ano inteiro. Caminhavam a seguir os capelães da Misericórdia, de sobrepeliz e atrás, de fato preto, os irmãos que não tinham capa e os homens estranhos à confraria, segurando todos eles velas na mão direita. Os padres rezavam a ladainha de todos os santos e o grupo ia respondendo.
Agora esta valiosa peça do património da Misericórdia melgacense está de volta mas impecavelmente restaurada.

sexta-feira, 9 de novembro de 2018

Livro "Melgacenses na I Grande Guerra (e outras guerras do século XX)"



Domingo, dia 11 de Novembro de 2018, assinala-se um século sobre a assinatura do Armistício que punha fim à Primeira Grande Guerra, um conflito onde combateram dezenas de melgacenses e onde alguns deles tombaram em combate.
Da investigação de Joaquim A. Rocha e Valter Alves, nascerá, muito em breve, um livro onde os autores pretendem perpetuar a memória destes valentes combatentes filhos desta nossa terra. No prefácio desta obra, pode ler-se: “Foi há pouco mais de 100 anos que os primeiros soldados do contingente que Portugal enviou para combater em França na I Guerra Mundial chegaram à Flandres. Em África, já combatiam os alemães desde 1914.
Com base nos dados de que dispomos, de Melgaço, partiram para a Flandres, 73 homens, oriundos das diversas freguesias. Estes homens foram autenticamente “roubados” às suas vidas e obrigados a ir para uma guerra para a qual não estavam preparados. Paderne, com 14 homens, Penso, com 12 homens e Vila, com 14 homens são as freguesias melgacenses que mais contribuíram em termos de número de efetivos. Estes homens da nossa terra, feitos soldados, tinham todos à data do embarque, idades entre 22 e 27 anos completos (nascidos entre 1891 e 1895), à exceção dos oficiais que eram um pouco mais velhos.
Assim, entre Janeiro e Novembro de 1917, partiram estes homens do Cais de Alcântara, rumo ao porto de Brest (França) numa viagem de navio de vários dias. Daí seguiram de comboio até à zona sul da Flandres francesa perto de Armentières, nos vales dos rios Lys e Aire.
Depois de uma curta estadia em Brest, porto de desembarque das tropas portuguesas, seguia-se o transporte, de comboio, até à região de “Aire”, zona destinada às tropas do Corpo Expedicionário Português.
E foi num clima agreste, de neve, chuva e frio, língua e costumes tão diferentes dos seus, que estes homens da nossa terra e as tropas portuguesas tiveram de suportar mais de um mês de treino complementar, junto do exército britânico, para se poderem “familiarizar” com as armas inglesas com que iam combater e com as novas formas da guerra que iam conhecer de perto.
Na frente europeia, dos 73 homens naturais de Melgaço que partiram, 10 morreram caídos em combate ou devido a outras causas como doenças. O primeiro melgacense a morrer em combate foi o soldado António Alberto Dias, natural do lugar da Verdelha (Paderne) que faleceu a 9 de Outubro de 1917 na Flandres (França).
Quatro dos caídos em combate, faleceram durante a Batalha de La Lys (9 de Abril de 1918). Foram eles os soldados José Cerqueira Afonso, de Paços (Melgaço); José Narciso Pinto, de Chaviães; João José Pires, de Paços e o segundo sargento António José da Cunha, natural da freguesia da Santa Maria da Porta (Vila de Melgaço). O último pertencia ao 6.º Grupo de Baterias de Metralhadoras e os três primeiros eram soldados que pertenciam à 4ª Brigada de Infantaria do CEP, Regimento de Infantaria n.º 3 (Viana do Castelo). Esta era conhecida como a Brigada do Minho, a que pertenciam a grande maioria dos soldados melgacenses, e já tinha conquistado uma reputação de bravura na frente de batalha muito antes de lhe ser confiada, em Fevereiro de 1918, a defesa do sector de Fauquissart, em Laventie, na Flandres francesa, perto da fronteira com a Bélgica, onde ainda se encontrava nesse fatídico dia 9 de Abril de 1918, quando foi dizimada pelos alemães na dita batalha de La Lys.
Os soldados da Brigada do Minho tinham passado a noite de 8 para 9 de Abril a arrumar armamento, munições e outros equipamentos e seus pertences. Iam ser rendidos por batalhões ingleses no dia 9 e hoje em dia acredita-se que os alemães sabiam disso. Sabiam também que a infantaria portuguesa não estava preparada para aquela guerra e que tinham sido treinados à pressa numa falácia vendida pelo regime republicano que apelidaram de “Milagre de Tancos”. Os soldados de Melgaço e de outras regiões eram lavradores, pedreiros e de outros ofícios. Muitos deles nunca tinham saído da sua terra. A grande maioria nem sabia ler e escrever. Um soldado não se faz num par de meses. Esta batalha foi, por essas e outras razões, um dos maiores desastres de toda a História Militar portuguesa. No dia seguinte, chegara a hora de contabilizar as baixas: 398 mortos (369 praças e 29 oficiais) e uma esmagadora maioria de prisioneiros (6585, dos quais 6315 eram praças e 270 oficiais). Na 4ª Brigada de Infantaria, à qual pertenciam maioria dos melgacenses, as baixas situam-se em cerca de 60% entre mortos, feridos e prisioneiros. No Regimento de Infantaria 3 (Viana do Castelo), as baixas cifram-se em 570, de um total de 700 homens que estavam em posição naquela noite. Deste total de baixas, houve registos de 91 mortos (4 de Melgaço), 155 feridos, 7 desaparecidos e 317 soldados feitos prisioneiros. Deste total de prisioneiros de guerra, nove soldados eram melgacenses. Inicialmente, estes homens foram dados como “desaparecidos em combate” e esse facto foi comunicado às famílias. Vários meses mais tarde, após o fim da guerra, em Novembro de 1918, a Comissão dos Prisioneiros de Guerra, comunicou que estes homens se encontravam em campos de prisioneiros na Alemanha, pondo fim a meses de sofrimento dos soldados e das suas famílias que os julgavam mortos. Na realidade, estes melgacenses foram todos capturados durante a Batalha e levados para campos de prisioneiros na Alemanha. Eram eles os soldados Mário Afonso, de Santa Maria da Porta; António Fernandes, de Penso; Abílio Alves de Araújo, da Gave; Avelino Fernandes, de Alvaredo; António José Rodrigues, de Paderne; Inocêncio Augusto Carpinteiro, de S. Paio; Justino Pereira, de Cubalhão; António dos Reis, da Rua Direita (Santa Maria da Porta) e António Pires, de Rouças, tendo ficado dispersos por vários campos de prisioneiros na Alemanha.
Depois de La Lys, o C.E.P. não mais participou em operações militares relevantes ficando na dependência dos ingleses e relegado para tarefas secundárias.
Os que tombaram, repousam para sempre no Cemitério Militar Português de Richebourg l`Avoué (França). Os que regressaram, muitos deles voltaram com os traumas próprios de um conflito que a humanidade nunca tinha conhecido ou com os problemas de saúde que os acompanharam durante o resto das suas vidas.
Por tudo isto, estes homens foram heróis e merecem a nossa homenagem. Para que nunca sejam esquecidos!"

sexta-feira, 2 de novembro de 2018

Sobre uma célula comunista no Ribeiro (Castro Laboreiro) em tempos de repressão




Nos tempos da guerra civil espanhola e nos anos seguinte ao conflito, afluíram a terras de Castro Laboreiro, centenas de refugiados galegos e de outras regiões de Espanha. Alguns deles eram ativistas políticos anti-franquista pertencente a forças de esquerda como o Partido Comunista Espanhol e contam com a colaboração de operacionais de esquerda do lado de cá da fronteira, além do precioso encobrimento que a população castreja lhes deu. Inclusivamente se fala que no Ribeiro (Castro Laboreiro) chegou a existir uma célula ativa do Partido Comunista Espanhol.
Num trabalho de investigação publicado em 2007, Angel Rodriguez Gallardo fala-nos dessa realidadeNo fim da guerra civil, na Serra de Castro Laboreiro, o Partido Comunista Espanhol mantinha um ponto de apoio de entrada em território espanhol controlado por vários dos refugiados que ali operavam e que tinham  como base de operações as aldeias do Ribeiro de Baixo e Ribeiro de Cima (Castro Laboreiro), muito próximas das aldeias galegas de Pereira e Olelas, no concelho galego de Entrimo. Estes lugares eram na época habituais pontos de passagem duma secular rota de contrabando. O grupo de refugiados estabelecido nestas terras serranas diversificou durante vários anos as suas atividades, pois dedicaram-se não só a atividades políticas ou de guerrilha, mas também ao contrabando e à obtenção de documentação para conseguir que alguns desses refugiados saíssem de Portugal em direção ao México ou outros países da América Latina.
Em 1940, o Partido Comunista Espanhol conclui a montagem da sua estrutura no norte de Portugal, graças à presença de quadros enviados de países da América Latina. Em 5 de Março de 1941, aconteceu um episódio na cidade do Porto, em que um grupo de comunistas galegos e vários polícias portugueses se enfrentaram, de que resulta a morte de um legionário e um soldado da Guarda Fiscal e um agente da PVDE gravemente ferido. Se antes deste episódio, as autoridade portuguesas vinham intensificando o controlo sobre os refugiados galegos e outros espanhóis no norte de Portugal, a partir deste incidente recuou a disposição repressiva sobre essa comunidade de exilados, que terminou com várias detenções. Apesar de a partir de Julho de 1941, o Partido Comunista Espanhol continuará com o objetivo de manter uma estrutura sólida em Portugal, os erros de organização e as caídas de quadros em diferentes pontos da Península Ibérica acabarão destruindo essa possibilidade. Tudo isto num contexto de militantes sitiados em diferentes locais com deslocações ilegais e contínuas em penosas condições no meio de uma guerra mundial e dentro de um país que tinha uma ditadura pro-nazi.
Os grupos de refugiados e de guerrilheiros que utilizavam Portugal como lugar de proteção começaram a ter problemas com essa cada vez mais numeroza presença de forças policiais portuguesas pela área de fronteira, especialmente aqueles que permaneciam com contactos estáveis na zona de Montalegre, Chaves e Vila Verde de Raia.
O enfrentamento em setembro de 1945, entre membros do grupo de Demetrio Garcia Álvarez, O Pedro, e Juan Salgado Riveiro, O Juan, moradores de Oimbra – Verin, com apoios em Cambedo e no Barroso, quando tentavam praticar um assalto e foram supreendidos por uma patrulha da Guarda Civil, fez piorar a situação dos refugiados espanhóis em Portugal. A partir desse episódio, intensificou-se o efetivo de controlo sobre a fronteira, que culminou nesta região com o cerco a Cambedo, em que se aconteceram as mortes de Juan Salgado Rivero e Bernardino Garcia, e a detenção de Demetrio Garcia Alvarez, em 22 de dezembro de 1946. Foi esse o mesmo ano em que Manuel Perez Rodriguez, galego que tinha estado refugiado duas vezes no norte de Portugal, a segunda em Castro Laboreiro, regressou à sua aldeia natal depois de ser apanhado em 1944 no Ribeiro de Baixo e ser conduzido a Madrid por estar implicado num processo militar. Dez anos depois de começar a guerra civil espanhola, Manuel Pérez Rodriguez podia contemplar desde a sua casa natal a ressaca de anos de efervescência na raia castreja, com a paulatina desaparição dos grupos de refugiados instalados no norte de Portugal. Ainda hoje, aos seus noventa e quatro anos, pode continuar a olhar para a raia, o pedaço de brumosa raia, perguntando-se pelas razões pelas quais um homem como ele, um silencioso protagonista da História, havia de ser vítima de dois fenómenos repressivos peninsulares do século XX, transformando-se assim, como tantos outros, num galego em fuga de Franco e da Repressão, num galego vítima de Salazar."




Extraído de: GALLARDO, Angel Rodriguéz (2007) - Refuxiados e Fuxidos nos Montes de Laboreiro. Cuaderno Arraiano, Verão 2007.