quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Castro Laboreiro descrito por um jornalista há cerca de 140 anos

 



Desde a segunda metade do século XIX que a singularidade de Castro Laboreiro atraiu à terra etnógrafos e jornalistas portugueses e estrangeiros. Esta terra é, sem qualquer dúvida, a mais estudada do ponto de vista etnográfico do nosso concelho. Contudo, por vezes, algumas reportagens jornalísticas sobre terras castrejas denotam alguma falta de compreensão pelos seus usos e costumes e mesmo ignorância. No artigo de hoje, partilho com vocês um trabalho jornalístico dedicado a Castro Laboreiro redigido em 1882 e publicado no jornal brasileiro "O Economista" em 1 de Setembro de 1882: 


"Monção, 29 de Agosto de 1882 

Quando um dia visitamos o Gerez e percorrermos uma outra vez os planaltos tristes de Montemuro, julgamos que não existisse em Portugal coisa que maior impressão nos causasse. Enganamo-nos, porém, a um canto sombrio da antiga Lusitânia e como que a despedir-se da Pátria que lhe foi berço, existe um povo, um tristíssimo povoado solitário e quasi nu, que os séculos têm contemplado, sem lhe doar sequer o menor vestígio de progresso e de civilização. 

Esse povo, conhecido nos mapas e na História pelo nome de Castro Laboreiro, vive ainda hoje como viveu nas pretéritas eras da sua origem. Ali não há luz que dissipe a treva densa da ignorância, ali campeia a sombra da aridez e tudo é ermo! 

Colocada ou assente na chapada de um monte e dominada por todos os lados pelo granito lúgubre das suas penedias escalvadas e inacessíveis, Castro Laboreiro dista de Melgaço treze kilómetros na direção sudeste, e de S. Gregório, catorze na direção sul. Sua cota de nível em relação às águas do mar regula por 932 metros, sendo a sua diferença de nível às águas do Minho, de 896 metros, no ponto em que o rio Trancoso limitando o paiz se torna confluente daquele. 

Doou-lhe a natureza um rio denominado Pedrozo (deve estar-se a referir ao rio Laboreiro) (...) O Pedroso aflui ao Lima, recebendo talvez perto de mil riachos no seu curso, mas o seu talvegue é medonho, como medonho é o murmúrio, ou melhor o barulho incessante da sua corrente. Apertado entre fragas, e tendo de vencer em pequenas catadupas a sobranceria dos rochedos, o rio Pedrozocomo que semeia o trovão, no vertiginoso correr das suas águas. E é triste! Nem um salgueiro, nem um álamo mergulham ali as radiculas, mas ténues da sua utilidade! Os passarinhos fogem espavoridos de tanta nudez, e quando muito, ao longe ouve-se o piar lúgubre das águias e dos bufos. 

Quem vive em Lisboa, ou viaja apenas em confortáveis, não sabe, nem conhece bem as agruras do paiz. Ao ler-se um livro de Verne, extasia-se o espírito desses, como extasia também a contemplação duma paisagem suiça. Pois muito bem, Portugal ostenta na sua orografia, exemplares altivos e esboços tão grosseiros, que satisfazem à avidez da mais completa curiosidade. Portugal tem em si elementos naturais que, com certeza, satisfarão a mais exigente imaginação. 

Fala-se nos esquimós, nos homens primitivos... Portugal tem tudo isso e talvez pior. 

Em Castro Laboreiro, freguesia com 500 fogos espalhados e com habitações diferentes segundo as estações, vive um povo, cujos usos e costumes não diferem da sua tradição. Suas moradias de pedra solta e cobertas de giestas, onde os troncos são dispostos em forquilha, têm quase sempre a forma retangular, mas também a têm circular, servindo as frestas de portais quando a neve lhe cobre em parte os peitoris e as cancelas. Esse povo debruçado sempre num abismo de ignorância e com o sorrir alvar de quem nada compreende, veste de saragoça e burel, semelhando as mulheres as verdadeiras tapuyas do Brasil. 

Não se forma ideia, só percorrendo esta Noruega portuguesa, se aproxima a gente do verdadeira tipo do gentio. (...) 

Todos eles, mais ou menos, tiveram façanhas com os lobos do monte, mataram javalis, venceram montezes (cabritos) e, ou por efeito dessa jucta, que é constante no inverno, ou porque os hábitos pegureiros os tornem mais senhores de grandes liberdades. O que é facto é, que em muitos pontos se levanta solitária uma cruz, indicando a vindouros o túmulo de alguém que agonizou vítima de um crime, e que sofreu morte de canibais. 

Mas tem uma virtude esta gente, no inverno, os homens emigram para terras de Hespanha e para o Alto Douro e não há trabalho que os amedronte. Uma vez emigrados, contraem uma dívida com o reitor, entregam-lhe a mulher e os filhos, e quando voltam, ralados sempre de fadiga e privações, são pontualíssimos nos seus compromissos em gazulhado doméstico e, saldando todas as dívidas, julgam-se bem com Deus e com o próximo!... 

O reitor para os castrejos é o seu anjo da guarda, vale-lhes nas ocasiões críticas da vida, serve-lhes de amparo na desgraça, e velando pelo bem estar das sua famílias, é verdadeiramente o seu anjo da guarda!... Quem o saúda, rende preito sincero, à virtude e ao bem. 

Castro Laboreiro – vulgarmente conhecido por Crasto – que outrora foi vila, tem a sul um castelo em verdadeira ruína, e mesmo não teria utilidade senão nos tempos das escaladas e dos piques. A povoação é toda dominada, como dissemos, e até o próprio castelo em verdadeira ruína, e mesmo não teria utilidade senão nos tempos das escaladas e dos piques. A povoação é toda dominada como dissemos e até o próprio castello  fica a duzentos metros inferior às penedias fronteiras. Mais ao norte, o terreno, que, à primeira vista, parece plano que o não é, e excede mesmo a classificação de ondulado. O terreno presta-se mesmo pouco ao cultivo e mais se prestaria e mais se prestaria se as camadas esbranquiçadas de neve não repousassem ali seis a sete meses em cada ano. Nesse local denominado por uns a chã da Portela e por outros a chã do Rodeiro, e aproveitando o talvegue dos ribeiros, semeia-se o centeio, o colmo, a erva e a batata, mas em castro Laboreiro não se colhe um só grão de milho, nem de trigo, não há hortaliça de casta alguma, à exceção de couve galega que se encontra em grandíssima quantidade. Vinho não se produz, e nem uma árvore frutífera projeta a sua sombra no descampado... Árvores, não vi, apenas o vidoeiro com o seu tronco claro e a prumo, me pareceu a sentinela do vale. Aves não ouvi, e apenas um melro fugia coitadinho em busca de uma guarida mais cara. Ninhos também não vi, encontrei ao acaso as tocas da raposa e os covis dos lobos mas nem sequer o uivar destas saudaram de passagem a minha visita. 

No lavor do campo, como no arranjo dos lares, em que há pouco desvelo vimos as mulheres – verdadeiros morcegos de alpendre – com as caras tisnadas pelo sol, pelo fumo das giestas e pelo pó ardente das calçadas e uma coisa nos admirou: as crenças não lhes embaraçarem os movimentos. No tal mantel de saragoça, ou num pedaço de burel envolvem o inocente e por tal sorte o prendem a si, que não precisam ampará-lo, nem protege-lo das intempéries. Eis aqui outra imagem do sertão, e certamente se os exploradores do solo africano tivessem contemplado a castreja-mãe, não se admirariam das pretas trazendo às costas os filhinhos. 

Em castro Laboreiro, também as mulheres fazem de sacristãs. São elas que cuidam os altares e as lâmpadas, e são elas ainda que dobras a defuntos e se ocupam de todos os toques e repiques festivos (…) 

A atmosfera de Castro Laboreiro é mais ou menos densa e húmida. Mesmo nos dias de muito sol, às quatro horas da tarde, sente-se frio e o fato parece humedecer com o refrescar da brisa. As manhãs parecem sempre tenebrosas e raro é o dia em que o povoado acorda sem nevoeiro. Pouco a pouco a nevoa levanta, os vapores dissipam-se no espaço, a povoação cobra ânimo para o trabalho desse dia, toca à missa, saem os rebanhos (…) e este é o quadro bucólico de todos os dias..."


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Extraído de: Jornal "O Economista", edição de 1 de Setembro de 1882.

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