segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

Memórias de outros tempos

 



Há cerca de 20 anos, a Câmara Municipal de Melgaço editou o livro “Retalhos de Vidas”. Trata-se de um conjunto de textos de memórias partilhadas por idosos melgacenses em que os mesmos nos contam as suas experiências em tempos mais recuados. Partilho aqui uma dessas estórias que integra esta publicação e que nos fala de Cristoval: 

 

A FÉ É A QUE NOS SALVA 

O povo de Cristóval foi sempre hospitaleiro e crente, amigo do diálogo e acolhedor. Gosta de conviver e do diálogo. Eu lembro com muita saudade os conselhos dados pelos mais idosos, que nós ouvíamos com atenção e depois púnhamos em prática. Eram grupos de pessoas que se juntavam atrás dum muro tosco nas Arroteias, que lhes impedia o vento de lhes tirar o lenço da cabeça que, a fazer de boné, puxando para a testa, não permitia que o sol lhes queimasse o rosto. Que saudades eu tenho desses tempos, Deus meu! O povo de Cristóval era humilde e trabalhador. Porque não havia fábricas nem qualquer indústria, dedicavam-se os seus habitantes ao cultivo da terra e do contrabando. Semeava-se milho, feijão, centeio, batata, cultivava-se o linho, etc. Porém, em anos de prolongada seca e quando os lavradores viam as suas colheitas ameaçadas, chorando, imploravam a protecção Divina e, em profundo silêncio, organizavam a Procissão de Penitência. Então, era tirado o Senhor dos Passos e a Senhora das Lágrimas – que só saiam dos altares em ocasiões de grandes crises – , e cada imagem, ao ombro de quatro homens valentes, saiam da Igreja acompanhados de enorme multidão, formada por jovens e adultos, homens e mulheres, todos descalços, que seguiam em procissão por caminhos difíceis desde Cristóval até S. Gregório, donde seguiam depois pela estrada, que os conduzia de novo à igreja. Eu era ainda criança porém recordo que, numa dessas procissões, saímos da igreja com sol escaldante e, quando regressamos, já chovia copiosamente. Que milagre, Deus meu! Admiráveis tempos esses, em que uma sardinha era partida para quatro (isto foi apreciado por mim em alguns vizinhos) e se ia para o monte, saboreando com o naco de broa, na sacola, e uns cachos de uvas, roçar o mato para a corte do gado. A vida era difícil, mas todo o trabalho era feito ao som de alegres cantigas. O contrabando de ovos, galinhas, sabão, café, pentes, etc., levado para Espanha, também era modo de vida que ajudava os mais necessitados a viver com mais conforto. Porém, era difícil e arriscada a vida do contrabandista. Recordo pelo menos dois vizinhos meus que naqueles tempos se dedicavam a passar contrabando para Espanha e que morreram baleados por um carabineiro espanhol. De Melgaço para S. Gregório não se podia transportar nada, sem a licença da Guarda Fiscal. Então uma pobre mãe de dois filhos, arriscou-se a trazer uma galinha de Melgaço até casa. Foi porém vista por um guarda fiscal que a obrigou a acompanhá-lo até ao Posto de Cevide, a 2 Km de distância, onde havia de pagar uma multa ou ir para a cadeia. A pobre vítima, com a galinha debaixo do braço, seguia a autoridade. Porém, quando chegou ao Posto onde se encontrava o Sargento que iria dar a sentença, a galinha ia morta, porque a portadora, muito silenciosamente, tinha-lhe retorcido o pescoço. Tempos difíceis sem dúvida, mas que apesar de tudo, se ultrapassavam as mágoas, cantando e rindo. 

  

                                                                         Cristóval – Betty"

 

Extraído de:  Retalhos de Vidas (2002)

Edição: Câmara Municipal de Melgaço.


 

sábado, 14 de janeiro de 2023

Castro Laboreiro no livro "Festas e tradições portuguesas"

 



Os traços culturais das gentes de Castro Laboreiro tem sido, nos últimos dois séculos, tema para diversos escritos ou vários livros. Notamos que nem sempre os autores de diversas obras compreendem verdadeiramente a genuinidade etnográfica das gentes castrejas. Partilho com vocês um apontamento sobre Castro Laboreiro que consta no livro “Festas e Tradições Portuguesas” (2002) da autoria de Soledade Costa e que refere o seguinte: “É nos meses rigorosos do Inverno em Castro Laboreiro, Melgaço (a 956 metros de altitude), e nas pequenas povoações minhotas vizinhas, espalhadas pela serra da Peneda, ainda hoje em casas umas vezes habitadas, outras desertas, conforme a época do ano, que, em anos ainda recentes, se fiava e tecia a lã. 

Desde Abril até aproximadamente ao mês de Dezembro, enquanto a temperatura o permite, os seus habitantes, não já na sua totalidade, como antigamente, mas ainda castrejos dos lugares de Bago, Curveira, Bico e Cainheiras, continuam a utilizar as “brandas”, ou seja, a habitar as casas situadas no cimo da freguesia – outrora de paredes de pedra solta, grosseiramente aparelhada, e telhados de colmo (palha de centeio). 

As “inverneiras” correspondem às casas que se encontram na parte baixa da freguesia, habitadas nos três restantes meses do ano, quando o frio se torna mais rigoroso e a neve cobria toda a serra. 

Actualmente a apresentarem melhoramentos na construção, visto em épocas passadas serem compostas (e algumas ainda o são) por um andar térreo, onde se recolhia o gado (cujo calor aquecia a casa), e um piso constituído por quartos e cozinha, a maioria das casas possui já as chamadas «cortes», destinadas ao gado, ao lado das habitações, ainda que, em algumas delas, se continue a utilizar esse mesmo piso térreo para os animais – as «lojas».                         

Quando os castrejos permanecem nas “brandas” e os rebanhos pastam no planalto, entre sete a vinte cabeças, uma vez que o gado bovino desapareceu também por completo, cultiva-se a batata, o centeio (pouco), os nabos, as couves e outros produtos hortícolas, apenas para consumo doméstico. Quando se encontram nas “inverneiras”, principalmente o feijão e o milho, este destinado aos animais. 

Entre fins de Abril e princípios de Maio efectua-se o «rapar» (tosquia) do gado lanígero. Cada família em Castro Laboreiro possuía, ainda há poucos anos, além do gado bovino, pelo menos um rebanho, aproximadamente de vinte animais, embora não se verifiquem ali rituais do gado. 

Esta tarefa obedece a cinco fases distintas: lavar e «carpiar» (abrir a lã); fiar (com a roca e o fuso a transformar a lã em fio); dobar («tocando» a dobadoura ao fazer girar com a mão o objecto quadrangular em madeira, onde o fio é enrolado em meadas, ou utilizando o «sarilho», peça também ela de madeira para enrolar a lã em novelos); encher com meadas ou novelos os teares caseiros e tecer a lã, que apresenta, depois de tecida, um metro ou cerca de metro e meio de largura. 

Hoje, os poucos teares que restam deixaram, praticamente, de tecer a lã (outrora misturada, por vezes, com o linho ou, na escassez deste, com o algodão, em trabalhos artesanais considerados autênticas relíquias), limitando-se as tecedeiras, extinta a tradicional laboração de antigamente, a tecer uma ou outra peça destinada ao uso caseiro. 

Em tempos mais recuados, com a lã branca, reservada para trabalhos mais finos, executavam-se, principalmente, as meias, os calções ou polainas (espécie de meias ou coturnos, abaixo dos joelhos) e as mantas «ásperas mas muito quentinhas». Hoje, a lã é vendida sem ser tratada, não a dinheiro, mas por troca de cobertores que os compradores, vindos, sobretudo, da Beira Litoral e Beira Baixa, trazem em carrinhas para efectuarem o negócio. 

Nos dias actuais, em Castro Laboreiro (cuja origem provável terá sido um castro romano, daí lhe nascendo o nome), nos longos serões de Inverno, com o frio a fazer companhia ao silêncio dos caminhos, algumas mãos femininas continuam a fiar a lã, utilizada na execução, para uso pessoal, de tapetes, tecidos nos velhos teares, ou destinada à confecção, também manual, de camisolas ou outras peças de vestuário – porque só mesmo a lã é capaz de fazer frente às baixas temperaturas que se fazem sentir naquela medieval aldeia serrana, tal como só mesmo os cães castro-laboreiros eram, por aqueles lugares, a segurança dos gados contra os ataques dos lobos.   

Da lã é tecida a «seriguilha» ou «serguilha» e o «rascadilho» (de cor castanha salpicada com pintas esbranquiçadas, quando se trata de lã negra), tecido grosso e áspero, muito empregue, em tempos idos, nos fatos de trabalho (calças e coletes dos homens e meias, mandis (aventais), saias e corpetes das mulheres), ainda hoje requisitado às tecedeiras ou artesãos, destinado à confecção dos trajos regionais dos grupos folclóricos. 

Com o mesmo fim, são usadas a «saragoça» (lã de textura mais fina), destinada às capuchas e a «baeta» (mais fina ainda), a servir para a execução das saias das mulheres.  

Capas ou capuchas (também de «burel», lã mais grossa) que continuam a ser muito utilizadas, quer em Castro Laboreiro, quer nas comunidades rurais situadas em zonas com climas mais rigorosos no Inverno.” 

 

 

Extraído de:  

COSTA, Soledade M. (2002) - Festas e Tradições Portuguesas, Vol. VIII; Ed. Círculo dos Leitores.