Entre os muitos
santuários levantados pela devoção dos portugueses à Virgem Mãe de Deus, ocupa
um lugar distintíssimo, se não pela arte, de certo pela posição pitoresca, e
mais ainda pela afluência de piedosos romeiros, que de todo o norte e Galiza,
durante o ano, vão cumprir as promessas mais difíceis, e incómodas, a Nossa
Senhora da Peneda, cujo santuário muito bem descreve o escritor José Cândido
Gomes na sua obra As Terras de Val-de-Vez, de onde extraímos o artigo que
segue, em que o erudito autor relata o que presenciou em Setembro de 1897 na
romaria.
"As impressões
recebidas durante a romaria de Setembro davam assunto para escrever volumes de
prosa se o autor destas linhas tivesse talento e arte. Infelizmente falta-lhe
tudo isto. Todos os dias tomei notas porque todos os dias recebi impressões
dignas de crónica. No primeiro dia, ainda os raios de sol não alumiavam os
píncaros das serras e sentindo um frio de Dezembro, subi ao terreiro do templo
e sentei-me próximo contemplando o enorme cordão de povo que, de rosário na
mão, circulava em redor da igreja, rezando em voz alta.
Ninguém pode, fria e
indiferentemente, contemplar aquelas turbas no seu devoto júbilo, louvando a
Virgem com um fervor notável.
Mais tarde saiu da
igreja nova chusma de povo e após ela, algumas mulheres e homens de joelhos,
seguindo o caminho dos quais de pé faziam romaria. Aquela penitência, umas
vezes em satisfação de um voto, outras para pedirem uma graça que esperam da
senhora, é custosíssima. Um amigo meu que prometera dar uma volta de joelhos,
ao fim dela, declarou-me que não tinha força para mais. Estava fatigado.
Às 10 horas, ouvi tocar
o sino e fui ao templo. Começava a novena e o templo estava repleto. O povo que
ocorreu era o escolhido, o verdadeiramente devoto, porque aos olhos do
observador tornava-se notável a devoção com que oravam homens e mulheres de
todas as condições. Após a novena, recolheram a mulheres a quartéis a cuidar do
jantar e arrumar as enxergas.
Visitei casualmente um
quartel próximo do meio dia. Aos cantos da sala e em tábuas suspensas do tecto
ou pregadas na parede estavam baús e saquiteis com roupas e comestíveis. A um
dos cantos, numa lareira, ardia lume tendo em volta panelas de barro ordinário
fervendo com iguarias diversas. Estavam nesse quartel 19 pessoas pertencentes a
uma só freguesia. Uns estavam de novena e outros de meia novena. Duas mulheres
estavam a pão e água e não mostravam na aparência custar-lhes muito tal
sacrifício.
De tarde, saiu o Terço,
que percorreu as capelas todas do santuário e recolheu ao templo. É uma das
devoções melhor entendidas e muito concorrida, causando ao visitante a melhor
das impressões. À noite, até cerca das 10 horas, houve movimento no terreiro
mas dali a pouco tudo recolhia ao descanso.
No segundo dia, muito
antes do romper da alva, começava no terreiro o movimento acostumado. Uns
lavavam o rosto no chafariz, outros acarretavam água para o almoço, e outros
aproximavam-se dos botequins ambulantes. De Tibo e de Riba de Mouro, chegavam
as vendilhonas de pão de trigo e de milho e algumas delas traziam frutas.
Às 6 horas, o terreiro
do santuário parecia uma feira em povoação de grande movimento. Grande número
de pessoas dirigiam-se ao templo, onde vários sacerdotes celebravam. Durante o
dia não houve qualquer circunstância digna de nota, a não ser uma bátegas de
água que, pela tarde, vieram desanimar um pouco os romeiros.
No terceiro dia, logo de
manhã, retirou muito povo que estava de meia novena. Por algumas horas, o
santuário esteve sem movimento. Era o que se chama em português – uma
pasmaceira. Cerca do meio dia, um aluvião de povo, vindo dos Arcos, Barca e mais
povoações a sul, invadiu o recinto. Enquanto um de cada grupo procurava
quartel, os outros conservavam-se sentados nos parapeitos e escadórios. O grupo
chegado que mais se distinguiu foi o das bacalhoeiras de Darque. Numeroso,
alegre, bem vestido, apenas chegou, imprimiu no terreiro um tom mais alegre.
Longe de aparentarem cansaço, pelo contrário pareciam chegadas duma pequena
jornada, tal era o desembaraço com que bailavam ao som das violas e harmoniuns.
No quarto dia, logo
desde manhã, milhares de romeiros, sem distinção de classes, chegavam de todos
os lados. No alto da fraga, estralejavam foguetes anunciadores da chegada de
numerosos bandos, procedentes de Melgaço, Monção, Valença, Cerveira, Caminha e
Coura. Na serra que fica a levante, a colónia espanhola anunciava-se igualmente
com girândolas. Causava prazer e entusiasmo contemplar aqueles enormes
cordões de povo, com as suas borrachas a tiracolo, os seus instrumentos de
música tocando alegremente, os seus açafates e baús à cabeça e entre eles um ou
outro amortalhado, com vela ou conduzindo um touro, uma vaca ou um carneiro.
Todo esse povo descia correndo, cheio de satisfação, por ver enfim o termo de
uma tão longa e incómoda jornada. Até às 10 horas, calculei terem descido as
duas serras nada menos de mil e duzentos peregrinos. E esse cálculo foi-me
fácil fazê-lo pelo número de ranchos que pediram quartel.
Às 11 horas, o movimento
na casa da mesa e na igreja eram enormes. Pelo escadório, via-se constantemente
passar mulheres e homens de joelhos, muitas vezes sem que ninguém os amparasse.
Uma das mulheres conduzia ao colo uma criança de dois anos e que tinha
prometido aquela penitência pela mesma criança, sua filha, que esteve às portas
da morte.
Todo o dia chegou gente
a ponto de à noite estarem os quartéis repletos. Alguns comportavam 40 pessoas
e nas varandas ainda ficou muito povo.
No quinto dia, logo de
manhã, nova invasão de povo que acabou de ocupar tudo o que havia devoluto. Não
ficou uma varanda de vago e de tarde a casa da mesa, a despeito de todas as
invasivas dos dignos mesários que ali se achavam de serviço, teve de ser aberta
a muitas pessoas recomendadas. Na casa das mortalhas, que é o rés-de-chaussée
do edifício, aquartelavam-se mais de quarenta pessoas que dormiam sobre palha.
Durante o dia, o movimento de promessas na igreja e na casa da mesa foi enorme.
Amortalharam-se mais de trezentas pessoas, fora as que vinham amortalhadas de
suas casas. Alguns dos penitentes iam em caixões, com o lenço tapando o rosto,
tal qual iriam para a sepultura e eram conduzidos por quatro amigos. Atrás,
alguns companheiros tocavam em diversos instrumentos várias músicas festivas.
Romaria da Peneda - Ritual de promessa no qual uma pessoa é conduzida
num caixão aberto
(Fonte: Revista Serões (Novembro de 1907)
De tarde, vi uma moça
esbelta, parecendo de família abastada, ir aos pés de Virgem e ali tirar todos
os seus ornamentos e ouro, brincos, colar e anéis e depositá-los no altar. Dali
levou-os para a casa da mesa onde os entregou. A pobre donzela, que teria talvez
16 anos, chorava copiosamente aos pés do altar.
Um moço de bela
aparência e estatura muscular também conduziu aos pés da Virgem um touro que
prometera por se livrar de soldado. Outros amortalhavam-se e percorriam todo o
santuário de joelhos, o que leva mais de uma hora.
Contei de uma vez 27
homens e mulheres todos a um tempo percorrendo o escadório. Também neste dia,
esteve na romaria o Dr. José Maria Rodrigues, lente da Universidade de Coimbra,
que me disseram ser um visitante assíduo do santuário.
Ao fim da tarde, o
terreiro grande era a coisa mais bela que tinha visto. Mais de dez mil pessoas
dançavam, cantavam ou tocavam. O barulho era ensurdecedor. A variedade de
tipos,a diversidade de trajos, as maneiras de bailar, os descantes, tudo enfim
era soberbo, arrebatador. À noite, iluminou a casa da mesa e o coreto da música
que tocou até cerca da meia noite. Às 10 horas, queimou-se algum fogo.
No dia 6, ouvi, logo de
manhã,dois sermões de promessa na igreja e dando-me ao trabalho de contar os
sacerdotes que então se achavam no santuário, notei 29, entre os quais um
espanhol, que retirou nesse mesmo dia de manhã. Pelo número de padres, e estou
certo que não os contei todos, já se pode calcular o povo que eles
arrabanharam. Houve muitas confissões e comunhões na igreja e um ofício de
defuntos por alma dos irmãos falecidos. Durante o dia, ainda veio muito povo,
quase todo de perto, e nada mais vi digno de nota especial porque, por deveres
contraídos, estive, como no dia anterior, mas um tanto mais assíduo, coadjuvando
os mesários no consistório da irmandade.
À noite, na companhia de
um sacerdote mesário, a quem conheci na Peneda e de cuja companhia tenho ainda
saudades, percorri o arraial em todas as direções e fiquei maravilhado. Todos
dançavam e cantavam, mas as espanholas, ocultas nos recantos, ouviam-se
distintamente no meio daquele brouuhaha ensurdecedor. As suas canções à
Senhora da Peneda, que muita gente não ouve ou despreza propositadamente, são
dignas de arquivar-se.
No dia seguinte, o da
festa, logo de manhã, retirou muita gente a ponto de quando saiu a procissão,
já não haver no santuário 2000 pessoas. Retiraram de madrugada muitos romeiros.
Dia já alto, entraram
bastantes ranchos que traziam pequenas ofertas. Num destes ranchos vinha um
moço militar espanhol amortalhado, acompanhado da mãe. Prometera mortalha se
regressasse incólume da campanha das Filipinas. E cumpriu.
Depois da festa solene
na igreja, saiu uma pequena procissão na qual se incorporaram bastantes irmãos
e clérigos. Atrás do pálio, seguia um indivíduo, talvez com 50 a 60 anos,
conduzindo ao ombro um enorme círio. Prometeu-o pela esposa que teve à morte e
afirmou em pleno consistório, de maneira a que todos o ouvissem, que era à
Virgem da Peneda que devia a
saúde da esposa que o acompanhava.
No dia seguinte, não
havia no recinto mais de 300 pessoas. Estava tudo acabado."
Extraído de:
- Revista "A Voz de
Santo António", revista mensal ilustrada, nº 17, 5ª Série, 10º Ano, Braga.
A Peneda e o Santuário na 1ª metade do século XX em postais da época
(clique para ampliar)
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