sábado, 11 de abril de 2015

Viagem à Romaria da Peneda de 1897



Entre os muitos santuários levantados pela devoção dos portugueses à Virgem Mãe de Deus, ocupa um lugar distintíssimo, se não pela arte, de certo pela posição pitoresca, e mais ainda pela afluência de piedosos romeiros, que de todo o norte e Galiza, durante o ano, vão cumprir as promessas mais difíceis, e incómodas, a Nossa Senhora da Peneda, cujo santuário muito bem descreve o escritor José Cândido Gomes na sua obra As Terras de Val-de-Vez, de onde extraímos o artigo que segue, em que o erudito autor relata o que presenciou em Setembro de 1897 na romaria.
"As impressões recebidas durante a romaria de Setembro davam assunto para escrever volumes de prosa se o autor destas linhas tivesse talento e arte. Infelizmente falta-lhe tudo isto. Todos os dias tomei notas porque todos os dias recebi impressões dignas de crónica. No primeiro dia, ainda os raios de sol não alumiavam os píncaros das serras e sentindo um frio de Dezembro, subi ao terreiro do templo e sentei-me próximo contemplando o enorme cordão de povo que, de rosário na mão, circulava em redor da igreja, rezando em voz alta.
Ninguém pode, fria e indiferentemente, contemplar aquelas turbas no seu devoto júbilo, louvando a Virgem  com um fervor notável.
Mais tarde saiu da igreja nova chusma de povo e após ela, algumas mulheres e homens de joelhos, seguindo o caminho dos quais de pé faziam romaria. Aquela penitência, umas vezes em satisfação de um voto, outras para pedirem uma graça que esperam da senhora, é custosíssima. Um amigo meu que prometera dar uma volta de joelhos, ao fim dela, declarou-me que não tinha força para mais. Estava fatigado.
Às 10 horas, ouvi tocar o sino e fui ao templo. Começava a novena e o templo estava repleto. O povo que ocorreu era o escolhido, o verdadeiramente devoto, porque aos olhos do observador tornava-se notável a devoção com que oravam homens e mulheres de todas as condições. Após a novena, recolheram a mulheres a quartéis a cuidar do jantar e arrumar as enxergas.
Visitei casualmente um quartel próximo do meio dia. Aos cantos da sala e em tábuas suspensas do tecto ou pregadas na parede estavam baús e saquiteis com roupas e comestíveis. A um dos cantos, numa lareira, ardia lume tendo em volta panelas de barro ordinário fervendo com iguarias diversas. Estavam nesse quartel 19 pessoas pertencentes a uma só freguesia. Uns estavam de novena e outros de meia novena. Duas mulheres estavam a pão e água e não mostravam na aparência custar-lhes muito tal sacrifício.
De tarde, saiu o Terço, que percorreu as capelas todas do santuário e recolheu ao templo. É uma das devoções melhor entendidas e muito concorrida, causando ao visitante a melhor das impressões. À noite, até cerca das 10 horas, houve movimento no terreiro mas dali a pouco tudo recolhia ao descanso.
No segundo dia, muito antes do romper da alva, começava no terreiro o movimento acostumado. Uns lavavam o rosto no chafariz, outros acarretavam água para o almoço, e outros aproximavam-se dos botequins ambulantes. De Tibo e de Riba de Mouro, chegavam as vendilhonas de pão de trigo e de milho e algumas delas traziam frutas.
Às 6 horas, o terreiro do santuário parecia uma feira em povoação de grande movimento. Grande número de pessoas dirigiam-se ao templo, onde vários sacerdotes celebravam. Durante o dia não houve qualquer circunstância digna de nota, a não ser uma bátegas de água que, pela tarde, vieram desanimar um pouco os romeiros.
No terceiro dia, logo de manhã, retirou muito povo que estava de meia novena. Por algumas horas, o santuário esteve sem movimento. Era o que se chama em português – uma pasmaceira. Cerca do meio dia, um aluvião de povo, vindo dos Arcos, Barca e mais povoações a sul, invadiu o recinto. Enquanto um de cada grupo procurava quartel, os outros conservavam-se sentados nos parapeitos e escadórios. O grupo chegado que mais se distinguiu foi o das bacalhoeiras de Darque. Numeroso, alegre, bem vestido, apenas chegou, imprimiu no terreiro um tom mais alegre. Longe de aparentarem cansaço, pelo contrário pareciam chegadas duma pequena jornada, tal era o desembaraço com que bailavam ao som das violas e harmoniuns.
No quarto dia, logo desde manhã, milhares de romeiros, sem distinção de classes, chegavam de todos os lados. No alto da fraga, estralejavam foguetes anunciadores da chegada de numerosos bandos, procedentes de Melgaço, Monção, Valença, Cerveira, Caminha e Coura. Na serra que fica a levante, a colónia espanhola anunciava-se igualmente com girândolas. Causava prazer e entusiasmo contemplar aqueles enormes cordões de povo, com as suas borrachas a tiracolo, os seus instrumentos de música tocando alegremente, os seus açafates e baús à cabeça e entre eles um ou outro amortalhado, com vela ou conduzindo um touro, uma vaca ou um carneiro. Todo esse povo descia correndo, cheio de satisfação, por ver enfim o termo de uma tão longa e incómoda jornada. Até às 10 horas, calculei terem descido as duas serras nada menos de mil e duzentos peregrinos. E esse cálculo foi-me fácil fazê-lo pelo número de ranchos que pediram quartel.
Às 11 horas, o movimento na casa da mesa e na igreja eram enormes. Pelo escadório, via-se constantemente passar mulheres e homens de joelhos, muitas vezes sem que ninguém os amparasse. Uma das mulheres conduzia ao colo uma criança de dois anos e que tinha prometido aquela penitência pela mesma criança, sua filha, que esteve às portas da morte.
Todo o dia chegou gente a ponto de à noite estarem os quartéis repletos. Alguns comportavam 40 pessoas e nas varandas ainda ficou muito povo.
No quinto dia, logo de manhã, nova invasão de povo que acabou de ocupar tudo o que havia devoluto. Não ficou uma varanda de vago e de tarde a casa da mesa, a despeito de todas as invasivas dos dignos mesários que ali se achavam de serviço, teve de ser aberta a muitas pessoas recomendadas. Na casa das mortalhas, que é o rés-de-chaussée do edifício, aquartelavam-se mais de quarenta pessoas que dormiam sobre palha. Durante o dia, o movimento de promessas na igreja e na casa da mesa foi enorme. Amortalharam-se mais de trezentas pessoas, fora as que vinham amortalhadas de suas casas. Alguns dos penitentes iam em caixões, com o lenço tapando o rosto, tal qual iriam para a sepultura e eram conduzidos por quatro amigos. Atrás, alguns companheiros tocavam em diversos instrumentos várias músicas festivas.
  
Romaria da Peneda - Ritual de promessa no qual uma pessoa é conduzida num caixão aberto
(Fonte: Revista Serões (Novembro de 1907)

De tarde, vi uma moça esbelta, parecendo de família abastada, ir aos pés de Virgem e ali tirar todos os seus ornamentos e ouro, brincos, colar e anéis e depositá-los no altar. Dali levou-os para a casa da mesa onde os entregou. A pobre donzela, que teria talvez 16 anos, chorava copiosamente aos pés do altar.
Um moço de bela aparência e estatura muscular também conduziu aos pés da Virgem um touro que prometera por se livrar de soldado. Outros amortalhavam-se e percorriam todo o santuário de joelhos, o que leva mais de uma hora.
Contei de uma vez 27 homens e mulheres todos a um tempo percorrendo o escadório. Também neste dia, esteve na romaria o Dr. José Maria Rodrigues, lente da Universidade de Coimbra, que me disseram ser um visitante assíduo do santuário.
Ao fim da tarde, o terreiro grande era a coisa mais bela que tinha visto. Mais de dez mil pessoas dançavam, cantavam ou tocavam. O barulho era ensurdecedor. A variedade de tipos,a diversidade de trajos, as maneiras de bailar, os descantes, tudo enfim era soberbo, arrebatador. À noite, iluminou a casa da mesa e o coreto da música que tocou até cerca da meia noite. Às 10 horas, queimou-se algum fogo.
No dia 6, ouvi, logo de manhã,dois sermões de promessa na igreja e dando-me ao trabalho de contar os sacerdotes que então se achavam no santuário, notei 29, entre os quais um espanhol, que retirou nesse mesmo dia de manhã. Pelo número de padres, e estou certo que não os contei todos, já se pode calcular o povo que eles arrabanharam. Houve muitas confissões e comunhões na igreja e um ofício de defuntos por alma dos irmãos falecidos. Durante o dia, ainda veio muito povo, quase todo de perto, e nada mais vi digno de nota especial porque, por deveres contraídos, estive, como no dia anterior, mas um tanto mais assíduo, coadjuvando os mesários no consistório da irmandade.
À noite, na companhia de um sacerdote mesário, a quem conheci na Peneda e de cuja companhia tenho ainda saudades, percorri o arraial em todas as direções e fiquei maravilhado. Todos dançavam e cantavam, mas as espanholas, ocultas nos recantos, ouviam-se distintamente no meio daquele brouuhaha ensurdecedor. As suas canções à Senhora da Peneda, que muita gente não ouve ou despreza propositadamente, são dignas de arquivar-se.
No dia seguinte, o da festa, logo de manhã, retirou muita gente a ponto de quando saiu a procissão, já não haver no santuário 2000 pessoas. Retiraram de madrugada muitos romeiros.
Dia já alto, entraram bastantes ranchos que traziam pequenas ofertas. Num destes ranchos vinha um moço militar espanhol amortalhado, acompanhado da mãe. Prometera mortalha se regressasse incólume da campanha das Filipinas. E cumpriu.
Depois da festa solene na igreja, saiu uma pequena procissão na qual se incorporaram bastantes irmãos e clérigos. Atrás do pálio, seguia um indivíduo, talvez com 50 a 60 anos, conduzindo ao ombro um enorme círio. Prometeu-o pela esposa que teve à morte e afirmou em pleno consistório, de maneira a que todos o ouvissem, que era à Virgem da Peneda que devia a saúde da esposa que o acompanhava. 
No dia seguinte, não havia no recinto mais de 300 pessoas. Estava tudo acabado."


Extraído de: 

- Revista "A Voz de Santo António", revista mensal ilustrada, nº 17, 5ª Série, 10º Ano, Braga.




A Peneda e o Santuário na 1ª metade do século XX em postais da época
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