sexta-feira, 24 de abril de 2015

Melgaço e o Alto Minho no Reino Encantado do escritor Mário Cláudio

Na vila de Melgaço, nos anos 90


Numa das crónicas escritas no jornal "Expresso", o escritor Mário Cláudio abre-nos as portas do seu Reino Encantado: "O Alto Minho é um punhado de terra húmida, talhado por penedias, pontuado por latadas, por prados e por milheirais, atravessado por cursos de água de toda a descrição. A oeste, espraia-se o Atlântico, em dobras dessa espuma que a nortada, às vezes, vem desgrenhar, mirado por fortes e por fortins, o do Lagarteiro, o da Gelfa, o do Cão e o da Ínsua, com que se procurou compensar a vulnerabilidade do litoral. Nas áreas do interior pousam os nevoeiros, esbatendo o velo dos rebanhos, rompidos pelo espanto das flores da giesta, do tojo e da mimosa. E ampara este país, dentro do País, uma teoria de montanhas que o têm defendido de deixar de ser ele, se chamam Peneda e Soajo e Gerês, e eis que apontar isto significa explicar o coração do Norte mais norte de Portugal.
A minha província inicia-se, sem sombra de dúvida, com a talha do tecto da Matriz de Caminha, digna da excelência de gosto de uma princesa da Renascença, como Isabella d’Este, amiga de Leonardo e mecenas sem desconto tributário. Trata-se de um esplendor de madeira coberta a ouro, concebida em caixotões, apto a proteger o advento de uma embaixada pontifícia.
Valença, propõe-me alguma reflexão, sobre os tempos que correm, cingida pelo poliedro digníssimo das muralhas, votada a um miserando comércio de atoalhados, de louças e de cutelarias ao serviço dos forasteiros oriundos da nação contígua. Para a fachada da Misericórdia local, poucos o saberão, projectaria Amadeo de Souza-Cardoso, mobilizando os companheiros Sonia e Robert Delaunay, e apoiando-se nos bons ofícios de um tio ligado ao Município, um belíssimo painel, que jamais seria concretizado.
Nas proximidades de Monção aguarda-me o templo de São João de Longos Vales, remanescente de um cenóbio que testemunhou a Idade Média anterior à Nacionalidade, quando se não tinham extinguido as batidas da pandeireta, que acompanhavam as estrofes dos cantares galaico-portugueses. E, a meia-dúzia de passos dele, as ruínas do mosteiro de São Fins de Friestas, a que só por caminhos tortuosos se pode aceder,descerram para mim uma crónica de frades reinadios, apreciadores de donzelas, empanzinando-se com tachadas de trutas de escabeche, fulminados enfim por uma bula de Paulo III, que lhes verberaria a desonestidade dos costumes.
Mais para leste, em lugar aonde não chega a brisa marítima, andou certo monge, beneditino e barroco, frei José de Santo António Vilaça, a aformosear a Igreja da Lapa, em Arcos de Valdevez. E, logo na margem defronte, o Paço da Giela, o que sobra de uma residência fortificada, ainda há pouco se achava transformado em celeiro, guardado por um ganapo que se garantiria fazer parte da caterva de pajens de um qualquer Rei de Leão.
Se me aborreço do Mundo, o que sucede mais vezes do que aquilo que me agrada, iludo-me com uma excursão a Castro Laboreiro e retomo uma história de gente truculenta que ergueu um castelo pronto a competir com o dos velhos Átridas. O solo mostra-se duro, como as cerdas dos canídeos, as vizinhas antigas, entrouxadas em xailes, assomam a uma janela que se assemelha a uma fresta de vigia, e perguntam se não compro o pote de ferro, onde medram as dálias. Ajunta-se uma horda de turistas de Campo de Ourique, diante do escaparate dos produtos autóctones, declarando que o camembert, ao fim de contas, constitui o único queijo que provam, e que o artesanato, vamos lá ver, não passa, todo ele, de insuportável piroseira.
Há quem considere este trecho pátrio, convém lembrar, coutada predominantemente gastronómica, no que transparece uma adiantamento do estômago aos mecanismos que servem os sobejantes sentidos vitais. A mesa a que me sento, nestas paragens, não vejo razão para o esconder, guarda pequeníssimos, porventura inofensivos segredos, e a minha escolha, perdoe-se a imodéstia, tornou-se rápida e certeira. Se pretendo lampreia, vou ao Panorama, em Melgaço, se desejo vieiras subo à Estalagem, no Monte de Faro, se me apetece pataniscas de bacalhau fico pelo Conselheiro, em Paredes de Coura, se aspiro a um arroz de cabidela rumo a uma locanda sem nome, no São Roque, onde se encomenda a melhor confecção do dito, em todo o Mundo e arredores. O alvarinho está à mão de semear e, se o doce me falta, não me inibo de galgar a fronteira, e de tocar à sineta das Descalças de Tui, fabricantes de uns peixinhos insuperáveis, que utilizam, como ingredientes, o açúcar, as amêndoas e os ovos, conforme se prevê.
Este espaço é de festa, quando não de terrores nocturnos, alimentados pelas bruxas e pelos trasgos, de céltica inspiração, pelos lobisomens, pelas avantesmas e pelas procissões dos mortos. E falar de funções, recreativas e religiosas, equivalerá a convocar uma grinalda de inumeráveis romarias, na qual se destaca o brilho das Senhoras da Peneda e da Cabeça, do São Bento da Porta Aberta, da Santa Luzia e do Santo Ovídio. Enfurecem-se os párocos, arrebatados por um desnorteado esclarecimento pós-conciliar, a prevenir o paganismo dos emigrantes devotos, que espantosamente adornam, com notas de banco, o andor do orago milagreiro. A banda resfolega, a cada passada, como um monstro domesticado, o suor empapa as regueifas, enfiadas no braço, e a prima dos Estados Unidos parece muito casual, olhando numa distracção, através dos óculos escuros, de aros fosforescentes.

Mas não conseguiu erguer-ser literariamente a região, se descontarmos o contributo de dois originários de outra banda, além do que pertence às brumas da poesia trovadoresca. Pedro Homem de Mello, natural do Porto, criaria determinada forma, não suficientemente analisada até à data, de celebrar as núpcias da paisagem e do corpo, numa dança susceptível de ascender ao plano das metáforas da condição humana. Quanto a Aquilino Ribeiro, beirão que aproveitaria certa seiva do chão courense, geradora de infindáveis estirpes de nobres destemperados, produziria ele a nossa única saga familiar, A Casa Grande de Romarigães, merecedora de confronto com os Buddenbrook, de Thomas Mann."

Fonte: Jornal Expresso.

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