No
passado domingo, dia 11 de Novembro, voltou à sua casa, a Santa Casa
da Misericórdia de Melgaço, a sua Bandeira Real, um dos símbolo
máximos da iconografia desta instituição. Trata-se de um pequeno
tesouro histórico com mais de 300 anos de antiguidade e que foi alvo
de um importante processo de restauro e agora está de volta ao seu
lugar.
Temos
perante nós um pequeno tesouro do património melgacenses
do qual não temos forma de datar com exatidão ainda que seja certo
que terá três a quatro séculos de existência. Depois de uma
pesquisa ao espólio documental desta instituição, fomos encontrar
o registo mais antigo de um ajuste para feitura de uma Bandeira Real
da Misericórdia de Melgaço, como esta. De facto, a
2 Fevereiro de 1591, é feito um contrato entre a Misericórdia,
sendo provedor Gil Gonçalves Leitão, e António de Figueiroa, para
este pintar o retábulo da Igreja, fazer umas grades e fazer a
Bandeira Real, pelo preço de 56.5000 reais. Recebeu apenas 43.520
reais em dinheiro, dada a falta de recursos da Misericórdia, pelo
que se decidiu "dar-lhe
em satisfação do remate de pagua huma cruz que a Casa tinha a qual
foi pesada nesta vila na feira por hos hourives de Salvaterra que a
ela costumão vir e pesava (rendeu)
doze mil novecentos e oitenta reais",
segundo
anotação documental.
Na
Bandeira Real desta confraria, encontramos dois painéis pintados em
tela que assenta sobre a estrutura de madeira, um na parte frontal e
outro no verso. Na parte frontal, encontra-se representada a
imagem de Nossa Senhora da Misericórdia, com um vasto manto azul
celeste, aberto por mãos de anjos, sob o qual se abrigam
representantes de vários poderes terrenos e grupos sociais.
Sob
o manto, encontramos representados do lado direito, em primeiro
plano, o papa com a tiara papal pousada ao seu lado como autoridade
máxima da Igreja Católica na Terra. Imediatamente nas suas costas,
podemos ver um cardeal como a mais alta autoridade religiosa no
Reino. Num plano secundário, podemos ver vários clérigos e uma
discreta personagem masculina de vestes de cor cinzenta da qual não
conseguimos descortinar o seu significado com certeza. Poderá
representar o povo ou então um mendigo.
Na
Bandeira Real da Misericórdia de Melgaço, ao contrário da
generalidade das bandeiras de outras confrarias, não aparece
representado o rei. Uma possível explicação para tal seria o facto
de a bandeira ter sido feita e pintada durante o período filipino,
não querendo a confraria perpetuar a figura de um rei espanhol numa
das peças com maior significado na confraria melgacense.
Curiosamente,
enquanto que as personagens masculinas aparecem do lado esquerdo,
nesta bandeira, do lado direito, aparecem apenas figuras femininas.
Em primeiro plano, aparecem duas mulheres, que pelas vestes, seriam
de uma elevada posição social, provavelmente nobres. Em plano
secundário, podemos ver uma freira e diversas figuras femininas com
menor definição.
Nas
margens da parte frontal aparecem inscrições em latim que
apresentam algumas incorreções: MISERICORDIA DOMINI PLENA EST //
TERRA VIRGO ESUNCULARIS INTER UMVES. MITES. ES // SUB TUUM PRESIDIUM
CUMFIGIMUS // MON S. TRA AE S. T. MOTREM SUMAT PORTE PRECES. Tais
inscrições significam: “A Terra está cheia da misericórdia do
Senhor (margem superior); Virgem única, de entre todas a mais gentil
(margem direita); Sob a tua proteção nos recolhemos (margem
inferior); Mostra que és mãe fazendo chegar-lhe as preces (margem
inferior).
No
verso da bandeira, existia uma outra pintura onde aparece
representada a Senhora da Piedade na cena “Lamentação sobre
Cristo deposto da Cruz”. No lado esquerdo, vemos S, João que
secunda a Virgem Maria e ampara o corpo do Filho morto, com o braço
pendente paralelo ao da Mãe. Junto a Cristo, Maria Madalena, de
manto amarelo, é secundado por duas outras mulheres que fazem gestos
de lamentação. Por trás da cruz, que pontifica ao centro e em
cujos braços se vê pendurado o lençol usado na deposição, vê-se
o céu preenchido por nuvens escuras.
A
Bandeira Real era em tempos antigos o maior símbolo da confraria nas
maiores celebrações que a Santa Casa promovia: A Festa da Visitação
e a Procissão da Quinta Feira Santa, também chamada dos Penitentes
ou dos Fogaréus,
com muita tradição em Melgaço nos séculos XVI, XVII e XVIII. Em
relação a esta última, temos registos documentais que descrevem a
forma como tudo decorria. Assim, na Quinta Feira Santa, às oito
horas da noite, saía da igreja a procissão com todos os irmãos da
Misericórdia, uns de opa preta, outros de fato preto em símbolo de
luto. À frente ia o escrivão com a Bandeira Real da Confraria,
ladeado por dois mesários, cada um com tocha acesa ou com pinhas a
arder, daí chamar-se Procissão dos Fogaréus. Atrás vinha o
provedor do ano findo com o crucifixo (quando estava ausente ou não
podia comparecer, era o provedor em exercício), ladeado por dois
irmãos com tochas acesas. Depois seguia o andor do "Ecce Homo"
acompanhado por duas ou quatro lanternas acesas. Os penitentes
entrecortavam as insígnias da Paixão do Senhor, que eram conduzidas
por irmãos da Misericórdia entre a bandeira e o crucifixo. Os
irmãos envergando opas e portando tochas acesas, contornavam o
centro da vila, onde se juntavam encapuçados, depois de andarem
pelas ruas do percurso e muito à frente da procissão cantando, em
voz de falsete, os mexericos e segredos da terra de um ano inteiro.
Caminhavam a seguir os capelães da Misericórdia, de sobrepeliz e
atrás, de fato preto, os irmãos que não tinham capa e os homens
estranhos à confraria, segurando todos eles velas na mão direita.
Os padres rezavam a ladainha de todos os santos e o grupo ia
respondendo.
Agora esta valiosa peça do património da Misericórdia melgacense está de volta mas impecavelmente restaurada.
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