sexta-feira, 16 de novembro de 2018

A Bandeira Real da Misericórdia de Melgaço: algumas notas históricas



No passado domingo, dia 11 de Novembro, voltou à sua casa, a Santa Casa da Misericórdia de Melgaço, a sua Bandeira Real, um dos símbolo máximos da iconografia desta instituição. Trata-se de um pequeno tesouro histórico com mais de 300 anos de antiguidade e que foi alvo de um importante processo de restauro e agora está de volta ao seu lugar.
Temos perante nós um pequeno tesouro do património melgacenses do qual não temos forma de datar com exatidão ainda que seja certo que terá três a quatro séculos de existência. Depois de uma pesquisa ao espólio documental desta instituição, fomos encontrar o registo mais antigo de um ajuste para feitura de uma Bandeira Real da Misericórdia de Melgaço, como esta. De facto, a 2 Fevereiro de 1591, é feito um contrato entre a Misericórdia, sendo provedor Gil Gonçalves Leitão, e António de Figueiroa, para este pintar o retábulo da Igreja, fazer umas grades e fazer a Bandeira Real, pelo preço de 56.5000 reais. Recebeu apenas 43.520 reais em dinheiro, dada a falta de recursos da Misericórdia, pelo que se decidiu "dar-lhe em satisfação do remate de pagua huma cruz que a Casa tinha a qual foi pesada nesta vila na feira por hos hourives de Salvaterra que a ela costumão vir e pesava (rendeu) doze mil novecentos e oitenta reais", segundo anotação documental.
Na Bandeira Real desta confraria, encontramos dois painéis pintados em tela que assenta sobre a estrutura de madeira, um na parte frontal e outro no verso. Na parte frontal, encontra-se representada a imagem de Nossa Senhora da Misericórdia, com um vasto manto azul celeste, aberto por mãos de anjos, sob o qual se abrigam representantes de vários poderes terrenos e grupos sociais.
Sob o manto, encontramos representados do lado direito, em primeiro plano, o papa com a tiara papal pousada ao seu lado como autoridade máxima da Igreja Católica na Terra. Imediatamente nas suas costas, podemos ver um cardeal como a mais alta autoridade religiosa no Reino. Num plano secundário, podemos ver vários clérigos e uma discreta personagem masculina de vestes de cor cinzenta da qual não conseguimos descortinar o seu significado com certeza. Poderá representar o povo ou então um mendigo.
Na Bandeira Real da Misericórdia de Melgaço, ao contrário da generalidade das bandeiras de outras confrarias, não aparece representado o rei. Uma possível explicação para tal seria o facto de a bandeira ter sido feita e pintada durante o período filipino, não querendo a confraria perpetuar a figura de um rei espanhol numa das peças com maior significado na confraria melgacense.
Curiosamente, enquanto que as personagens masculinas aparecem do lado esquerdo, nesta bandeira, do lado direito, aparecem apenas figuras femininas. Em primeiro plano, aparecem duas mulheres, que pelas vestes, seriam de uma elevada posição social, provavelmente nobres. Em plano secundário, podemos ver uma freira e diversas figuras femininas com menor definição.
Nas margens da parte frontal aparecem inscrições em latim que apresentam algumas incorreções: MISERICORDIA DOMINI PLENA EST // TERRA VIRGO ESUNCULARIS INTER UMVES. MITES. ES // SUB TUUM PRESIDIUM CUMFIGIMUS // MON S. TRA AE S. T. MOTREM SUMAT PORTE PRECES. Tais inscrições significam: “A Terra está cheia da misericórdia do Senhor (margem superior); Virgem única, de entre todas a mais gentil (margem direita); Sob a tua proteção nos recolhemos (margem inferior); Mostra que és mãe fazendo chegar-lhe as preces (margem inferior).
No verso da bandeira, existia uma outra pintura onde aparece representada a Senhora da Piedade na cena “Lamentação sobre Cristo deposto da Cruz”. No lado esquerdo, vemos S, João que secunda a Virgem Maria e ampara o corpo do Filho morto, com o braço pendente paralelo ao da Mãe. Junto a Cristo, Maria Madalena, de manto amarelo, é secundado por duas outras mulheres que fazem gestos de lamentação. Por trás da cruz, que pontifica ao centro e em cujos braços se vê pendurado o lençol usado na deposição, vê-se o céu preenchido por nuvens escuras.
A Bandeira Real era em tempos antigos o maior símbolo da confraria nas maiores celebrações que a Santa Casa promovia: A Festa da Visitação e a Procissão da Quinta Feira Santa, também chamada dos Penitentes ou dos Fogaréus, com muita tradição em Melgaço nos séculos XVI, XVII e XVIII. Em relação a esta última, temos registos documentais que descrevem a forma como tudo decorria. Assim, na Quinta Feira Santa, às oito horas da noite, saía da igreja a procissão com todos os irmãos da Misericórdia, uns de opa preta, outros de fato preto em símbolo de luto. À frente ia o escrivão com a Bandeira Real da Confraria, ladeado por dois mesários, cada um com tocha acesa ou com pinhas a arder, daí chamar-se Procissão dos Fogaréus. Atrás vinha o provedor do ano findo com o crucifixo (quando estava ausente ou não podia comparecer, era o provedor em exercício), ladeado por dois irmãos com tochas acesas. Depois seguia o andor do "Ecce Homo" acompanhado por duas ou quatro lanternas acesas. Os penitentes entrecortavam as insígnias da Paixão do Senhor, que eram conduzidas por irmãos da Misericórdia entre a bandeira e o crucifixo. Os irmãos envergando opas e portando tochas acesas, contornavam o centro da vila, onde se juntavam encapuçados, depois de andarem pelas ruas do percurso e muito à frente da procissão cantando, em voz de falsete, os mexericos e segredos da terra de um ano inteiro. Caminhavam a seguir os capelães da Misericórdia, de sobrepeliz e atrás, de fato preto, os irmãos que não tinham capa e os homens estranhos à confraria, segurando todos eles velas na mão direita. Os padres rezavam a ladainha de todos os santos e o grupo ia respondendo.
Agora esta valiosa peça do património da Misericórdia melgacense está de volta mas impecavelmente restaurada.

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