sábado, 6 de junho de 2020

A lenda da aparição da Senhora das Neves (Peneda) contada há mais de 300 anos




O santuário da Nossa Senhora da Peneda localiza-se na freguesia de Gavieira, em terras de Arcos de Valdevez. O culto à Senhora da Peneda tem origem numa lenda de uma aparição de Nossa Senhora a uma menina que guardava o gado naquele local que terá ocorrido há cerca de 800 anos. A dita lenda é-nos contada num livro publicado há mais de 300 anos, onde o autor também nos fornece alguns pormenores interessantes acerca de como seria aquele lugar na época.
No dito livro, “Santuário Mariano”, da autoria de Frei Agostinho de Santa Maria, podemos ler: "Na Província de Entre Douro e Minho, para a parte da Galiza, fica o Concelho do Soajo na Comarca de Valença, cinco légoas de Ponte de Lima para o Nascente, terra tão fragosa, e de tão ásperas montanhas e rochedos, que vivem ali os homens, pelo inculto e inacessível de seus penhascos, como gente levantada, e assim são poucos os tributos, que pagam, fiados no forte e seguro de sua habitação, isenta de que lhos vão a pedir, e somente pagam a El Rey cinco cães sabujos. Neste Concelho, está uma freguesia, ou lugar a que chamam São Salvador de Gavieyra. Entre este lugar, e o de Crasto, fica uma montanha altíssima (distante cinco légoas do Soajo) de penedos muyto grandes, à vista soltos, e mal arrumados, entre elles se vêm três, que entre si formam uma lapa; porque estão dois divididos e em cima deles outro atravessado, de tamanha grandeza, que he visto em distância de huma légoa. Neste sítio apareceu a milagrosa imagem da Senhora da Peneda, ou das Neves, cujo antigo aparecimento se refere nesta forma.
Em cinco de Agosto do anno de 1220, pouco mais ou menos, que é o tempo em que parece, somente se pode chegar àquele sítio, pelas neves de que está coberto a mayor parte do anno, pastoreava por entre aquellas penedias huma serraninha algumas cabras, quando em cinco do mesmo mês lhe apareceu a Senhora, e dizem que fora em forma de huma pomba branca voando ao redor della, e que lhe mandara que dissesse aos do seu lugar da Gavieyra, lhe edificassem naquelle lugar uma ermida.
Referiu a pastorinha a seus pais, a embaixada da Senhora. Mas sem efeito, porque lhe não deram deram crédito. Em outro dia, voltando a pastorinha com as suas cabras por aquella mesma paragem, lhe tornou a apparecer a mesma Senhora em a sua lapa , não como na primeyra vez, em forma de pomba, (como ella referia) mas na mesma
forma em que hoje se vê e lhe disse:
- Filha, já que te não querem dar crédito ao que eu mando, vai ao lugar de Rouças (que fica na mesma Freguesia de Gavieyra, e no mesmo termo do Concelho do Soajo, aonde está huma mulher entrevada há dezoyto annos, diz aos moradores do lugar que a tragam à minha presença, para que nela cobre perfeyta saúde, e assim te darão crédito ao que eu te ordeno.
Fê-lo assim a venturosa pastorinha, e trouxeram a mulher, que se chamava Domingas Gregório. Tanto que ella chegou à vista daquela Sagrada Imagem da Rainha dos Anjos, logo alcançou huma perfeyta saúde, e ficou livre, e sã de todos os achaques que padecia, louvando a Virgem Senhora pelo singular beneficio, que lhe havia feito.
À vista deste grande milagre se comoveram todos, e
acesos na devoção da soberana Rainha da glória, deram logo ordem a lhe edificar a Casa, como a Senhora pedia. Ma s como o sítio da lapa não era capaz, ao que lhe parecia, se resolveram a fundá-la em outro, que pareceu mais acomodado em distância de dois tiros de mosquete, junto a huma ribeyra, que se vay meter no rio Lima. Mas a Senhora, que havia escolhido aquella lapa, para se manifestar nella, e para theatro das suas maravilhas, quis que junto à mesma lapa se lhe erigisse a sua igreja; porque não quis estar naquella que se lhe começava a edificar junto à ribeyra. E como por várias vezes desaparecesse e fosse achada sempre no primeyro lugar de sua manifestação, se resolveram a desistir de todo da obra, em o sítio da ribeyra e que a igreja se fizesse aonde a Senhora mostrava que a queria, pois ella era, a que havia de vencer as dificuldades, que se reconheciam em aquele monte. E assim em pouco distância da lapa, se fez sítio capaz, aonde se pudesse edificar uma fermosa igreja, como se fez, capaz de recolher em si mais de trezentas pessoas, com sua Capella mor.
Acabada a igreja, se lhe fez hum excelente retábulo muyto bem dourado e para isto tudo acudiu a divina providência, porque com as suas esmolas que os fiéis davam para a obra da Senhora, se tornou a igreja de sorte, que está com muito asseio e perfeição.
Outra tradição refere o Padre António Carvalho da Costa na sua Corografia e idz que a descubrira um criminoso, natural de Ponte de Lima, que acossado da justiça, passava miserável vida entre aquelles solitários bosques e rochedos, servindo-lhe as feras de companhia. E nestes termos, bem se pode presumir que passava a sua vida muyto triste e desconsolado e como a vexação abre o entendimento reconhecendo a sua culpa, recorreria a Deus, pedindo-lhe perdão da sua culpa, interpondo o favor e o patrocínio daquela Senhora que nunca desampara aos pecadores e que sempre roga e intercede por elles. E faria estas suas súplicas com tanta dor e lágrimas que mereceu com ellas que a Senhora lhe aparecesse e o confortasse. Ele seria o primeyro que a viu depois de muitos annos, que alli a teriam ocultado dos christãos; senam é que os mesmos anjos a formaram, dispondo-o assim Deus, para consolação e remédio daquellas gentes.
A imagem da Senhora é tão pequenina que não passa de um palmo de altura e daqui se pode entender que nem os homens a obraram nem em aquelle solitário sítio a esconderam. Mas que foi formada pelos anjos, para acudir a remediar aos pecadores. É formada em pedra e tem em seus braços ao doce fruto do seu ventre. E porque se não atreveram a mandá-la pintar, (nem era razão que as mãos dos homens a tocassem) lhe vestem umas roupinhas ao estilo antigo, que a cobrem toda e se lhe não vê mais que o rosto que é muito lindo e muyto agradável. A cor é trigueira, em que se mostra muita antiguidade. Está em um nicho no meyo do altar mor, sobre uma peanha. E melhor fora que estivesse em um precioso sacrário, fechado com vidraças, por onde pudesse ser melhor vista e assim estaria com mais veneração e respeito.
Os milagres que obra são inumeráveis e à mesma medida é o número de dovotos e romeyros, que concorrem à sua Casa no verão, que, como no inverno é aquelle distrito mutyo frio e agreste, não é possível então lá ir.
Começam as festas da Senhora em cinco de Agosto, dia próprio seu e dia em que se manifestou (Como fica dito). Em dia de S. Lourenço, concorre muyta gente da Galiza e de outras muytas partes; porque já o verão dá lugar, para se acomodarem por entre aquelles matos e rochedos, que naquelle tempo são bem vistosos e alegres, pels muytas fontes que nascem entre elles. Todo o povoado lhe fica muyto distante e o que está mais perto, é a freguesia de Gavieyra, a que a Casa da Senhora é anexa, que lhe fica em distância de uma légoa.
Nas costas da Capella mor desta igreja da Senhora, se vê um grande castanheiro e junto às portas da igreja um fermoso freixo: estas duas árvores, que são de estranha grandeza, afirmam terem mais de trezentos annos. Ambas formam um fermoso docel, como mostrando a grande veneração que se deve ter àquella Santa Casa da Senhora. Acima da igreja, em distância de um tiro de pedra, nasce uma fonte de excellente água, que faz aquelle sítio mais agradável e apetecido. Também se conserva a lapa, em que a Senhora apareceu e do penedo de cima se vê, estarem caindo umas gotas de água como lágrimas e se tem por maravilha da Senhora, o serem contínuas e permanentes, maiormente ficando tão levantado e afastado da terra. Estas gotas de água, que aquella pedra destila, recolhem os romeyros com os lenços e com ella se ungem em as partes em que padecem as queixas e pela intercessão da Senhora, se vêm livres de todas."





Extraído de: SANTA MARIA, Frei Agostinho (1712) - Santuário Mariano e História das Imagens Milgrosas de Nossa Senhora. Tomo IV. Officina de António Pedroso Galram, Lisboa.

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